Frei Henri: “O Brasil vive um golpe branco”
Entrevista especial com Frei Henri Burin des Roziers.
O corpo do velho guerreiro está cansado e agora deve ficar deitado a maior parte do dia para poupar a saúde. Mas o espírito permanece vivo e a voz clara, especialmente quando se trata de caracterizar o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que se concretizou no dia 31 de agosto de 2016. “Para mim é claramente um golpe de Estado. Um golpe branco”, diz Frei Henri Burin des Roziers, padre dominicano francês e grande figura das lutas camponesas no Brasil que se aposentou em Paris há 3 anos atrás. Este ano, ele publicou pela editora Cerf ‘Comme une rage de justice’.
Esta conversa, conduzida por Daniela Cruz e Frédéric Pagès e traduzida por Luc Duffles Aldon dá sequência à série de entrevistas do Movimento Democrático 18 de Março (MD18) com grandes intelectuais de esquerda publicadas, no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicando aqui, a segunda, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, clicando aqui, a terceira com o historiador Luiz Marques clicando aqui, a quarta, com o cineasta Eryk Rocha, clicando aqui, a quinta, com o filósofo e crítico social Anselm Jappe, clicando aqui e a sexta com o senador francês Antoine Karam clicuando aqui
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Frei Henri, o senhor é um elemento integrante do sistema judiciário visto que também é advogado. Enquanto tal, o senhor pode nos dizer qual era o retrato da justiça nessa parte da Amazônia quando o senhor chegou ?
Quando cheguei a Xinguara, no sul do Pará (na região amazônica) no início de 1990, o lugar era um faroeste. A lei do mais forte e do mais violento vencia. Não havia nenhuma justiça, nem mesmo tribunais, nenhuma infraestrutura judicial. Pouco a pouco, foi se constituindo uma estrutura de poder judicial incontestavelmente mais presente com a chegada da esquerda ao poder em 2002. A Justiça foi ficando enfim ao alcance das pessoas. Era neste contexto que eu trabalhava como advogado cuidando frequentemente de casos muito difíceis, dossiês sensíveis, por exemplo, de sindicalistas rurais assassinados dos quais eu defendia famílias. A justiça muitas vezes não é objetiva. Os que têm o poder judicial nas mãos, nomeiam juízes ou promotores com raras exceções ou completamente corruptos ou ligadas politica ou economicamente aos que os nomeiam.
O senhor conseguiu a condenação de certos mandantes de crimes, por conta dos quais foi ameaçado de morte tendo inclusive que receber proteção da polícia. Como o senhor agia na prática para fazer valer justiça nos casos que defendeu?
Eu gozava de uma certa respeitabilidade o que era um ponto positivo, não necessariamente estima (risos) – por ser um frei, sem dúvida – e, progressivamente, ganhei credibilidade. Eu tinha uma reputação de ser tenaz. Quando eu estava num caso, eu ia até o fim… Eu me aproximava de alguns advogados da área particularmente brilhantes, muitos deste se tornaram tenores da advocacia, e um deles se tornou até Ministro. Com Lula e Dilma, o número de promotores, que correspondem aproximadamente ao que chamamos de procuradores da República na França, um sistema bastante diferente do brasileiro, foi multiplicado. No entanto, esses promotores, geralmente de classes privilegiadas, às vezes tinham dificuldades em conter os seus “reflexos de casta” e entender os problemas dos trabalhadores agrícolas que estavam, em certos casos, quase em situação de escravidão
O senhor lutou muito para que essas situações de escravidão fossem reconhecidas e para que seus critérios fossem definidos. Qual era a sua estratégia ? Qual foi o papel da esquerda nesta luta contra o trabalho escravo ?
Acho até que fui eu quem iniciou essa luta. Para caracterizar e fazer reconhecer situações de escravidão, especialmente em algumas fazendas no sul do Pará, tivemos de apelar até à ONU passando pela OEA (Organização dos Estados Americanos). Eu aproveitei bastante do fato de que, naquele momento, o Brasil estava tentando emergir como um potência internacional, exigia um assento no Conselho de Segurança etc. Nessas condições, a presença do trabalho escravo no território nacional, deixava uma péssima impressão e as autoridades finalmente apoiaram meus esforços, até porque, petições elaboradas e assinadas por ONGs internacionais chegavam do mundo inteiro. Mais uma vez, devemos reconhecer que foi durante os governos de esquerda que a repressão do trabalho escravo se tornou eficaz. O Presidente Fernando Henrique Cardoso tinha reconhecido oficialmente a existência de trabalho escravo em 1995 e tinha expressado preocupação com o problema, mas não tinha feito grande coisa para atacá-lo
O senhor sabe que com a chegada do governo de Michel Temer, a flexibilização dos critérios que definem o trabalho escravo pode se concretizar?
Eu ouvi falar disso, sim. Seria uma tragédia. Mas isso não me surpreende completamente.
O Brasil está sendo vítima de um golpe de estado ?
Para mim é claramente um golpe de Estado. Um golpe branco. Eles estão manipulando argumentos jurídicos que não se aplicam nessa destituição. É um golpe contra a pessoa de Dilma, primeiramente, e depois contra o povo brasileiro. No mais, o que eu conheci da ação política de Dilma, de seu passado heroico de resistente que não condiz em nada com o retrato que certos jornais fazem dela. Eu tenho um grande respeito e admiração por ela.
Como o senhor analisa a ação do PT ao longo destes anos?
No que me diz respeito, por exemplo, a Comissão de Direitos Humanos ligada ao PT e que trabalhava em Brasília fez um bom trabalho nos primeiros anos do governo Lula e eu pude contar com ele. Depois, ao longo do tempo, senti que os membros envolvidos nesta instituição se mostravam sobretudo preocupados com suas reeleições e eram menos entusiastas na linha de frente da defesa dos direitos humanos. Isso é lamentável, mas no que diz respeito a situação social dos mais pobres, não se pode esquecer que o governo Lula tirou da miséria milhões de Brasileiros. É algo espetacular! No entanto, se retirou pessoas da pobreza, mas elas continuaram analfabetas e numa condição sub-proletariana, ou seja incapazes de entender o que acontece no país.
Como o senhor vê a evolução da situação política no Brasil?
O grande problema é que estamos em uma recessão econômica. E, nesses casos, a população ainda tende a tornar o governo, seja ele qual for, responsável pela situação e não tem informações que lhe permitiriam fazer uma análise apropriada do contexto. Dilma suportou o peso desta situação infeliz e talvez não tenha conseguido prever todos os efeitos e reagir a tempo de forma apropriada. Ainda assim, ela tem o meu respeito e confiança e eu realmente não acredito nas acusações que são feitas contra ela.
O senhor vem de uma classe social privilegiada, de uma dessas “grandes famílias” que deram à França ilustres personagens. De onde lhe vem esta “gana por justiça”?
Essa é uma boa pergunta. Algumas coisas me marcaram profundamente. Durante a Segunda Guerra Mundial eu era adolescente e era sutilmente marginalizado na escola, porque alguns dos meus parentes eram próximos da Resistência francesa aos nazistas. Porém, naquela época, a grande maioria da população seguia cegamente o marechal Pétain. Me sentia, digamos “diferente” e bastante revoltado. Mais tarde, eu quis participar das Conferências de São Vincente de Paulo que propunham a jovens diplomados como eu, de intervirem em zonas mais desfavorecidas. Fiquei chocado quando eu descobri as condições em que algumas famílias viviam naqueles anos do pós-guerra. Então a minha vocação de padre se impôs a mim, completamente indissociável, no meu caso, dessa sede de justiça. Foi por isso que eu quis estudar direito. Depois de maio de 68, ao qual eu participei ativamente e com bastante entusiasmo como capelão de estudantes.
Antes de ir para o Brasil, eu trabalhei na Haute Savoie, onde novamente estive em contato com a realidade social das populações mais vulneráveis. Em qualquer circunstância, eu sempre quis me confrontar a situações específicas de injustiça e fazendo as coisas avançarem de forma concreta. Me lembro especialmente de uma noite de vigília de Páscoa, num momento em que estava trabalhando sobre um caso particularmente difícil e sério que exigia toda a minha atenção e capacidade. Normalmente, eu deveria estar na missa naquele momento, mas, ainda assim, me senti em perfeita coerência comigo mesmo – mesmo tendo estado ausente da vigília, estava em pleno acordo com a minha vocação e com o Evangelho.
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O Movimento Democrático 18 de Março (MD18) nasceu da luta contra o golpe de Estado no Brasil. Sediado em Paris, e com grande presença de pesquisadores, professores universitários, artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento propõe ampliar a reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas com intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que visam ampliar o debate sobre as formas de resistência que podem e devem advir. O projeto se inicia com a participação de grandes pensadores da esquerda como Michael Löwy, Boaventura de Sousa Santos, Nancy Fraser e Anselm Jappe, além de contar com a colaboração de inúmeros intelectuais brasileiros. As entrevistas serão disponibilizadas em português e em francês no site do MD18.
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