As ideias imprescindíveis de Angela Davis
O reexame operado pela escrita dessa ativista mundialmente conhecida é indispensável para a compreensão da realidade do nosso país, pois reforça a práxis do feminismo negro brasileiro, segundo o qual a inobservância do lugar das mulheres negras nas ideias e projetos que pensaram e pensam o Brasil vem adiando diagnósticos mais precisos sobre desigualdade, discriminação, pobreza, entre outras variáveis.
Por Rosane Borges.
Um clássico, para o pensador Norberto Bobbio, é um intérprete único de seu tempo, com tamanha reserva de atualidade que cada época e cada geração têm a necessidade de relê-lo e, ao relê-lo, de reinterpretá-lo. Dessa forma, um clássico cria teorias-modelo com vistas à compreensão da realidade, de tal sorte que consegue até mesmo explicar contextos diferentes daquele em que foi gestado.
O livro Mulheres, raça e classe, da intelectual e feminista estadunidense Angela Davis, amolda-se, com precisão cirúrgica, a essa definição. Publicado em 1981, logo se converteu em referência obrigatória para se pensar a dinâmica da exclusão capitalista, tomando como nexo prioritário o racismo e o sexismo. Ordena-se sobre um arco de temas inescapável para compreendermos o modo de funcionamento das sociedades marcadas pela tragédia da escravidão moderna (o papel da mulher negra no trabalho escravo; classe e raça na campanha pelos direitos civis das mulheres; racismo no movimento sufragista; educação e libertação na perspectiva das mulheres negras; sufrágio feminino na virada do século; estupro e racismo; controle de natalidade e direitos reprodutivos; obsolescência das tarefas domésticas).
A perspectiva adotada por Davis realça o mérito do livro: desloca olhares viciados sobre o tema em tela e atribui centralidade ao papel das mulheres negras na luta contra as explorações que se perpetuam no presente, reelaborando-se. O reexame operado pela escrita dessa ativista mundialmente conhecida é indispensável para a compreensão da realidade do nosso país, pois reforça a práxis do feminismo negro brasileiro, segundo o qual a inobservância do lugar das mulheres negras nas ideias e projetos que pensaram e pensam o Brasil vem adiando diagnósticos mais precisos sobre desigualdade, discriminação, pobreza, entre outras variáveis. Grande parte da nossa tradição teórica e política (Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, para ficarmos em poucos exemplos) insiste em confinar as questões aqui tratadas por Davis na esfera privada, como se apenas desta proviesse sua solução.
A iniciativa da Boitempo de traduzir esta obra, ainda não publicada no Brasil, desponta como uma inestimável contribuição para disseminar as ideias imprescindíveis de Angela Davis (sabemos o quanto ela vem sendo estudada e difundida pelo feminismo negro e por setores da academia) e oferecer, assim, angulações e perspectivas pouco ou nada exploradas pelos empreendimentos voltados à compreensão da nossa intrincada realidade. Como aconselha Bobbio, para não sermos induzidos a crer que a história, a cada ciclo, recomeça do zero, é preciso ter paciência e saber escutar as lições dos clássicos. Em tempos sombrios, esse conselho soa como urgência política.
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Onde encontrar?
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Rosane Borges é mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, pós-doutoranda pela mesma Universidade, professora do curso de especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), autora e organizadora de diversos livros, entre eles, Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (Imprensa Oficial, 2004), Mídia e racismo (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às terças.
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