Caudwell, pioneiro da crítica marxista inglesa
Estranho ao meio acadêmico, Christopher Caudwell inaugurou a reflexão marxista sobre a literatura e a cultura na Inglaterra.
Por José Paulo Netto.
Parece haver um consenso mínimo entre os estudiosos do marxismo inglês: na crítica da literatura (e, mais amplamente, da cultura), há um autor seminal – Christopher Caudwell. Ele é o ponto fundacional de um complexo desenvolvimento balizado sintética e diferencialmente pelas obras de George Thomson (1903-1987), Raymond Williams (1921-1988) e, enfim, Terry Eagleton (1943). Caudwell, estranho ao meio acadêmico, inaugura a reflexão marxista sobre a literatura e a cultura na Inglaterra.
Christopher Caudwell (nome literário de Christopher St. John Sprigg) jamais frequentou cursos universitários, à diferença de seu importante contemporâneo, Ralph Fox (1900-1937). Nascido em Putney a 20 de outubro de 1907 e falecido, na batalha do rio Jarama, ainda antes de completar 30 anos, a 12 de fevereiro de 1937, combatendo pela República na guerra civil espanhola, Caudwell sequer completou formalmente a sua educação básica – foi obrigado a abandonar a escola aos 15 anos para ganhar a vida como publicista, vinculando-se à imprensa popular. Autodidata inteligente e sensível, inquieto e criativo, leitor insaciável, pensou e escreveu com autonomia sobre assuntos os mais diversos – livre dos limites da divisão sócio-técnica do trabalho intelectual, não passou por ser “especialista” em tema algum: entre 1929 e 1933-34, foi um polígrafo que redigiu incontáveis textos que iam da divulgação científica e técnica à poesia e ao romance.
Boa parcela desses textos, escritos ao tempo em que ainda não se aproximara do marxismo, apresenta um interesse simplesmente circunstancial, episódico mesmo. Mas, uma vez apropriando-se das referências marxistas, o pensamento de Caudwell vai desenvolver-se num processo intelectual substantivo: a construção de uma concepção estético-cultural. Concepção assentada numa incorporação muito particular, muito pessoal, da tradição marxista, tradição que Caudwell conheceu e começou a estudar em 1934 e que o levou, no ano seguinte, ao ativismo nas fileiras do Partido Comunista inglês e, em finais de 1936, à solidariedade militante aos republicanos espanhois, com o seu engajamento no Batalhão Britânico das Brigadas Internacionais. Essa concepção estético-cultural, desenvolvida por ele a partir de 1935, explicita-se na sua obra mais conhecida, Illusion and Reality (concluída em 1936 e publicada em 1937; as citações que aqui farei foram extraídas da edição de 1973, da londrina Lawrence & Wishart), e é explorada numa série de ensaios, alguns inconclusos, dados à luz postumamente* – concepção que mereceu reparos críticos e expresso respeito de eminentes teóricos da estética e da cultura (v.g., G. Lukács e o já mencionado R. Williams) e de historiadores consagrados (v.g., E. P. Thompson), mas também de estudiosos marxistas das novas gerações, situados em outros contextos (v.g., J. B. Foster).
Ilusão e realidade é um extraordinário esforço para apreender o processo de nascimento e desenvolvimento da poesia, que Caudwell considera uma das primeiras atividades estéticas do homem. Não é um livro, porém, que se limita, como já se observou, tão somente a fundar “uma poética marxista”, ainda que, dos seus 12 capítulos, 8 sejam formalmente dedicados à investigação da poesia, da Antiguidade à “poesia moderna” (que Caudwell toma como emergente no século XVI ocidental: a poesia que ele circunscreve a partir da emergência do capitalismo). Na verdade, o esforço de Caudwell vai no sentido de construir uma estética abrangente: se ele se empenha numa delimitação específica da poesia (cap. 7), em seguida avança para encontrar determinações próprias a outras objetivações artísticas (cap. 11). Partindo imediatamente da poesia (da literatura), o seu objeto efetivo é a arte como tal. E, no tratamento desta, sua reflexão desenvolve-se em três passos articulados: a) a relação da arte com o trabalho, a mitologia e a religião, b) a relação da arte com a ciência e c) a função da arte.
No primeiro passo, Caudwel – valendo-se de um vasto conhecimento histórico da Antiguidade e considerando formas míticas e religiosas (recorrendo à antropologia/etnologia da época: Ratray e Frazer, mas também de Durkheim) – sustenta a estreita conexão original da arte com o trabalho: na sua gênese, a poesia “é uma emoção coletiva que se origina nas festas do grupo humano”, é “a emoção coletiva de uma resposta condicionada pelas necessidades da associação econômica” (cap. 3, III).
Quanto ao segundo passo, entende Caudwell que, se a ciência oferece um “reflexo da multiplicidade externa da realidade”, propiciando aos homens a “consciência da necessidade da realidade externa”, a arte trabalha o mundo emotivo dos homens, levando em conta o seu substrato inconsciente, os conteúdos antropológicos instintivos (aqui, Caudwell faz, a meu juízo, a primeira leitura crítica da psicanálise – Freud e Jung – para subsidiar a incorporação da sua eventual contribuição a uma estética marxista). Caudwell diferencia claramente arte e ciência: “A ciência […] é o campo específico do conteúdo objetivo, enquanto a poesia […] representa o domínio do conteúdo emocional” (cap. 7, a). Ou, noutra formulação: “a arte é a ciência do sentimento; a ciência, a arte do conhecimento” (cap. 11, V). A diferenciação que Caudwell sustenta é particularmente marcada pela ênfase na especificidade da linguagem própria à arte e à ciência (não é casual a referência, em passagem do cap. 7 e parece que pioneira entre os marxistas, ao texto de C. K. Ogden e I. A. Richards, Meaning of Meaning, de 1923): “arte e ciência são polos opostos da linguagem” (cap. 8, IV) – ciência é discurso lógico-racional, que não serve à poesia, que “é rítmica, intraduzível, irracional, não-simbólica, concreta e se caracteriza por emoções estéticas condensadas” (cap. 7, g).
A firme distinção entre arte e ciência, porém, não impede que ambas se “compenetrem mutuamente” e que operem no “mundo fictício” que elaboram a partir da realidade – em ambas, há um elemento de “ilusão” que, extraído do mundo empírico, não se equaliza a ele. “O ordenamento ou a multiplicidade lógica caraterísticos da linguagem científica constituem a estrutura interna do seu mundo fictício, que é uma projeção das relações da realidade externa. O ordenamento ou a multiplicidade afetiva característicos da linguagem artística são a estrutura interna do seu mundo fictício, que representa uma projeção do conjunto das relações da realidade interna” (cap. 11, IV). Ao longo de Ilusão e realidade, Caudwell deixa claro que esse “mundo fictício” sabe-se como tal: sabe-o a ciência e sabe-o também a arte, na qual a “ilusão estética” distingue-se dos sonhos e devaneios (ele lembra, aliás, que, já para os gregos, a poesia era “uma ilusão consciente” – cap. 2, IV).
O terceiro passo, relativo à função da arte, torna mais nítida a concepção que dela tem Caudwell – está diretamente conexa à questão da liberdade, que, para ele, consiste na “consciência da necessidade” (a epígrafe que abre Ilusão e realidade é inequívoca: na linha de Hegel-Engels, inscreve-se a fórmula A liberdade é o reconhecimento da necessidade). Neste ponto, Caldwell é claríssimo: “A arte é a expressão da liberdade do homem no mundo do sentimento, assim como a ciência é a expressão da liberdade no mundo da percepção sensorial – ambas são conscientes das necessidades dos seus respectivos mundos: o mundo do sentimento, ou da realidade interna, no caso da arte, e o dos fenômenos, ou da realidade externa, no caso da ciência” (cap. 8, I). Porque o “mundo do sentimento” dispõe de substratos inconscientes, a função social da arte é oferecer aos homens “a consciência da necessidade dos instintos” (cap. 8, IV). Mais precisamente: enquanto a função social da ciência é promover a liberdade humana abrindo a via a uma compreensão mais profunda e complexa da realidade externa ao homem, a da arte é adequar a dinâmica cega e irracional dos instintos da naturalidade dos homens às condições que a sua socialização exige para o exercício da liberdade (liberdade que não é um dado natural, mas produto social).
A função da arte, consequentemente, está muito condicionada pelo estágio alcançado pelo processo de socialização da humanidade. O advento e a consolidação da sociedade de classes típica do capitalismo peculiariza não só o desenvolvimento dos conteúdos estéticos, mas ainda a sua forma. No trato da “poesia moderna” (tal como a circunscreveu), Caldwell opera uma análise em que procura conectar os quadros sócio-históricos e econômico-políticos com a especificidade tecnico-literária (caps. 4 a 6). Essa conexão, estendida para a sociedade burguesa inteiramente constituída, vai desaguar na caracterização que Caudwell fará da cultura burguesa da era imperialista como uma cultura agonizante – caracterização explorada em ensaios (Studies & Further Studies in a Dying Culture) que extrapolam Ilusão e realidade e nos quais Caudwell apontará, em destacados escritores (v.g., D. H. Lawrence), as implicações deletérias que lhes foram impostas pelas realidades barbarizantes do imperialismo. Mas, já em Ilusão e realidade, Caudwell não hesita em considerar que, “atualmente, toda a cultura burguesa se debate nos estertores da sua crise final” (cap. 12, I).
Nas décadas que se seguiram à morte de Caudwell, a crítica marxista da arte e da cultura (e, de modo particular, a teoria estética) avançaram significativamente. Muitos dos elementos contidos em sua obra foram objeto de problematizações contundentes, principalmente o potencial irracionalista da sua concepção de arte e o seu juízo catastrofista sobre o conjunto da cultura burguesa.
Contudo, Caudwell permanece uma referência inarredável na análise marxista da literatura e da arte. De um lado, em razão do brevíssimo lapso temporal (cerca de 30 meses) em que operou a sua assimilação do marxismo e elaborou a sua obra pioneira. De outro lado – o mais importante – porque, se na resolução de vários dos dilemas que enfrentou foi superado pelos seus sucessores, na problemática que colocou há perguntas ainda a desafiar a reflexão contemporânea: Caudwell permanece um pensador seminal não pelas respostas que ofereceu, mas pela relevância das questões que formulou.
* Coligidos em Studies in a Dying Culture (1938), The Crisis in Physics (1939), Further Studies in a Dying Culture (1949) e Romance and Realism (1970); os ensaios de 1938 e 1949 foram reunidos, em 1971, pela Monthly Review Press, de Nova Iorque, para marcar a passagem do 75º aniversário da morte do autor: Studies & Further Studies in a Dying Culture. Um texto publicado somente em 1965, “The concept of freedom”, faz parte do único livro de ensaios de Caudwell vertido ao português que conheço: O conceito de liberdade. Para uma teoria marxista da estética (Rio de Janeiro: Zahar, 1968).
A singularidade de Caudwell no interior do marxismo inglês dos anos 1930 foi salientada em estudos apresentados num seminário promovido em Madri pela Fundación de Investigaciones Marxistas/FIM (Vv. Aa., Los marxistas ingleses de los años 1930. Madrid: FIM, 1988). Da bibliografia sobre Caudwell, destaco quatro títulos úteis para uma aproximação inicial à sua obra/vida: D. N. Margolies, The Function of Literature: A Study of Christopher Caudwell’s Aesthetics (New York: International Publishers, 1969); R. Sullivan, Christopher Caudwell (London/Sydney: Croom Helm, 1987); C. Pawling, Christopher Caudwell: Towards a Dialectical Theory of Literature (New York: St. Martin’s Press, 1989) e J. Whetter, A British Hero. Christopher St. John Sprigg aka Christopher Caudwell (Cornwall: Lyfrow Trelyspen, 2011).
Boitempo lança clássico de Raymond Williams, inédito em português!
A Boitempo acaba de lançar o essencial Televisão: tecnologia e forma cultural, do marxista inglês Raymond Williams. Considerado um dos textos fundadores dos estudos sobre o fenômeno cultural, econômico e tecnológico da televisão, a edição vem acrescida de uma série de textos de apoio. Clique aqui para saber mais sobre o livro.
“O texto fundador dos estudos sobre televisão. Um verdadeiro clássico, que vale sempre a pena consultar, por seu estilo, por seu alcance e por seus insights.” − Jostein Gripsrud, University of Bergen
“Este livro é um clássico porque inaugurou formas de pensar uma nova tecnologia − a televisão − como parte da cultura material do dia a dia, o que, atualmente, para nós que entramos na era digital, é ainda mais pertinente.” − Charlotte Brunsdon, University of Warwick
“Williams entendeu que a TV era o teatro do capitalismo, o drama da modernidade. Ele levou a sério tanto o drama quanto o capitalismo, e este livro é o resultado disso: um momento decisivo na formação dos estudos sobre TV como área teórica propriamente dita e uma descrição perenemente útil da forma cultural.” − John Hartley, Queensland University of Technology
“Televisão: tecnologia e forma cultural transformou o modo como as pessoas compreendiam a televisão. Pela primeira vez, um crítico e historiador sofisticado olhou para todos os aspectos desse meio de comunicação – como eletrodoméstico, objeto de política pública, fetiche do capital, uma série de textos e um criador de audiência… Foi o primeiro clássico dos estudos sobre TV.” − Toby Miller, New York University
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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.
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