Um salto no escuro
Retalhos da memória VI
Por Izaías Almada.
Sonhar era preciso. Pedro voltou ao Brasil após uma temporada de quase seis anos no exterior, entre 1990 e 1996, onde viveu em Lisboa, cidade que, em muitos aspectos, o iria marcar para o resto de sua vida.
Viajou casado e com dois de seus filhos, Ana Luísa e Vinícius, deixando um terceiro no Brasil, o André, filho que era de seu primeiro casamento, com a cantora Marília Medalha.
A viagem foi uma tentativa, entre tantas outras, que fez para esquecer ou mesmo apagar da memória traumas e sofrimentos adquiridos durante o tempo em que foi um militante da esquerda revolucionária e prisioneiro político nos finais dos anos ’60 e início dos ‘70.
Mais ainda: adquiriu a necessidade plena, visceral, insubstituível, de fugir a um sentimento permanente de frustração e inquietude que sentia ao pensar na sua terra e na sua gente, por ver no que havia se transformado o seu país, o país que sempre amou e continuava a amar; a miséria e a humilhação imposta à sua gente simples e trabalhadora; nos amigos e nos antigos companheiros de militância, todos divididos entre viver a dura realidade dos novos tempos neoliberais, globalizados e informatizados, que se impunha com a força de um vendaval sobre os trópicos.
A realidade do mercado, como diziam os comentaristas na tevê, nos jornais, no dia-a-dia era a cereja do bolo. O tal “mercado”, sem ética e disciplinador das relações humanas pelo que elas têm de pior, a mercantilização, a filosofia do lucro a qualquer preço, a corrupção a serviço do lucro a qualquer preço, a competição impulsionada pelo lucro a qualquer preço. E também da sobrevivência, porque não?…
Esqueciam-se os profetas do neoliberalismo de citar, a não ser em casos mais agudos, o aumento do desemprego, o trabalhador brasileiro se transformando cada vez mais em mercadoria descartável.
Jornais, emissoras de rádio, emissoras de televisão, revistas semanais, escolas de primeiro e segundo grau, universidades, religiões e vida familiar, todos a exigirem uma competição irracional como incentivo para o reconhecimento da inteligência e a marca do sucesso, a vitória do egoísmo devastador – confrontando-se a todo o momento com o fim de um sonho, de uma utopia.
Pedro acreditava no socialismo, na solidariedade e na igualdade entre os homens. E ainda lutava para continuar acreditando, mas pelos vistos e para muitos dos que viveram à sua volta, o sonho acabara. Ou se transformara num pesadelo à procura da psicanálise.
Ele mesmo demorou anos para perceber o significado da frase de John Lennon, embora proferida em outro contexto. E quando um sonho dessa natureza acaba, é preciso tempo e, sobretudo, colhões, coragem, para se voltar a sonhar. Se é que valeria a pena, já agora, para alguém como ele, voltar a sonhar…
Muitos tentaram ou ainda tentam, tentam e acabam por não conseguir, restando-lhes – aos de melhor sorte – o irônico patamar social da sobrevivência com dignidade, esse antigo, mas sempre oportuno e sutil axioma filosófico da pós-modernidade. O estoicismo a serviço da hipocrisia.
Outros terminam por descobrir, não sem algum heroico esforço pessoal, uma convivência sem maiores atritos com suas crises existenciais, suas inseguranças e fantasias inconfessáveis, sobrevivendo com a ajuda do álcool ou da droga pesada.
Outros ainda sucumbem com a consciência aliviada de terem carregado durante algum tempo da sua vida o peso de uma ideologia em que na verdade não acreditavam, mas que por esse ou aquele motivo (sabe Deus qual, ou mesmo Marx!) tiveram que carregar.
E nesse caso específico Pedro costumava arrepiar-se quando encontrava em discursos de oportunistas, muitos hoje a comandar a direita brasileira, pontos de identidade entre algumas ideias do fascismo e do comunismo, por exemplo, esses palavrões que marcaram toda a sua geração.
A distância entre o sonho e a realidade, descobriu Pedro, pode ser pura e simplesmente a luta cotidiana pela própria sobrevivência.
Desde que voltara de Lisboa para São Paulo em 1996, obrigado pelas circunstâncias de uma separação nada amigável, Pedro voltou a morar na casa em que já vivera nos arredores de São Paulo.
Uma casa modesta, mas confortável, adquirida com algum dinheiro amealhado nos seus trabalhos em cinema publicitário, sócio que foi durante quase dez anos do produtor Paulo Ulisses Maia Dantas, filho do escritor Paulo Dantas.
Térrea, construção sólida, lajotas no chão e um belo jardim à volta, mas cujo quarto de empregada era concebido para empregadas domésticas com no máximo um metro e meio de altura. Herança, claro, de um passado colonialista, já que parte da elite brasileira ainda considera as empregadas domésticas como simples escravas para o serviço da casa.
Entre outros preconceitos, alguns bem piores até, essa tal elite não perdoa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua política social em favor dos menos favorecidos. E nessa elite se encontram arquitetos e engenheiros construtores que lhes engessam, as empregadas domésticas, em minúsculos cubículos.
Com a geladeira vazia e um permanente gostinho amargo na boca, consequência da vesícula retirada há dez anos, Pedro decidiu comprar algumas coisinhas para comer e, quem sabe, aproveitar a ocasião para escolher alguns presentes de Natal.
A alegria do Natal, falsa ou não, mesmo com os aborrecimentos do divórcio, estava marcada para dali a uma semana e antes que se esquecesse de presentear alguém da sua já diminuta lista de amigos era bom se precaver. Sua ex-mulher, cuja única preocupação na vida era não envelhecer pobre, o abandonara há cinco meses e entrou na justiça com o pedido de divórcio.
Pedro ficou por semanas dando voltas no mesmo lugar, confuso, até perceber que nessas questões de amor sempre comprara gato por lebre. Já não era essa a primeira vez… A vida, com essa enorme variedade de oportunidades e escolhas que oferece a cada um de nós, costuma limitar o discernimento daqueles que sonham de mais ou sonham fora de horas…
Começava a ter a sensação de que sempre escolhera errado. Ou fora escolhido errado, tanto faz. Finalmente entendera na prática um bocadinho o pensamento de Sartre sobre a idade da razão. Das escolhas e da responsabilidade das escolhas. Da existência que molda a essência.
Como fizera ele, Pedro, sua travessia até ali? Suas escolhas?… Jamais parou para pensar a respeito.
O Ano Novo entrou sem pedir licença… 1997. Os jornais davam destaque ao desejo explícito do então presidente da república em aprovar no congresso nacional um projeto de lei que permitisse a sua própria reeleição. Ele, o príncipe sociólogo, o antigo professor na USP, o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Com que então o seu ex-professor universitário tinha sido mordido pela mosca azul! Gostava do poder, o malandro, e queria mais quatro aninhos para se divertir… Isso cheirava a sacanagem. Até pagaram por isso.
Mais quatro anos para quê, se ainda não mostrara ao país o porquê fora eleito? Reduziu a inflação? Não fez mais do que a sua obrigação… Aliás, não foi obra sua, apenas assinou papéis… Por outro lado punha o país à venda com as tais privatizações de empresas nacionais, a preço de banana…
Que o homem lutasse pela reeleição, vá lá, mas para o seu sucessor e não para si mesmo. Seria mais ético, mais democrático, menos vil. Mas o país já não ligava para pormenores dessa natureza… E ele, Pedro? Não, não… Não tinha mais nada a ver com isso, merda! Ou tinha?
CONTINUA…
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Muito bom. Continua onde, quando?
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