O aprendiz de guerrilheiro
Retalhos da memória V
Por Izaías Almada.
O dever de todo o revolucionário é fazer a revolução. A frase de Guevara tinha, naqueles dias, 1967/68, o peso de um dogma religioso.
Há um ano, ou pouco mais, Pedro vinha fazendo treinamentos de guerrilha na Serra do Mar durante alguns finais de semana. Exercícios de primeiros socorros e grandes caminhadas pela mata atlântica que começavam com o nascer do sol.
Morria de medo de encontrar cobras venenosas pelo meio do caminho, mas sempre calou diante dos companheiros sobre o pavor que sentia por esses animais repelentes. Numa das caminhadas, quase morreu afogado, pois não sabia nadar bem. Atravessava um rio já perto de Santos, quando perdeu o pé. Ficou se debatendo até que um dos companheiros arrastou-o para a margem.
Gozação, susto, risos. E daí? Guevara tinha asma e nunca ninguém disse nada! Mas afinal, um guerrilheiro com pavor de cobras e que não sabia nadar o suficiente não podia ser orgulho de nenhuma revolução.
Passada a fase da preparação física, dos exercícios na mata, dos tiros ao alvo, transformou-se em militante urbano de uma organização que defendia a luta armada para a tomada do poder e a implantação do socialismo no país. Levara meses para tomar essa decisão, a mais séria da sua vida até então.
Tinha vida legal com profissão e endereço definidos e, como jornalista, fazia parte de uma célula de contrainformação da Organização, grupo ainda sem nome naquele final de 1968, pouco antes do Ato 5..
Para provar sua disposição e sua consciência revolucionárias deveria – no entanto – realizar uma ação armada. Era a regra. Achou isso uma contradição no seu caso, pelo simples fato de levar uma vida legal e não clandestina. E se fosse preso? Abandonaria assim, sem mais nem menos a família, o emprego, os amigos? Essas coisas não se fazem assim, sem mais nem menos…
Resolveu correr o risco e não questionar o procedimento, até porque queria e precisava botar à prova sua própria coragem, sua habilidade numa situação limite. Isso sem contar que era uma oportunidade para avaliar suas próprias convicções ideológicas. Não tomara a decisão, junto com centenas de outros companheiros, de enfrentar a ditadura, fazer a revolução?
Pedro iria conviver com esse conflito nos próximos anos. Provavelmente para o resto da sua vida. Não era uma escolha intelectual qualquer, pensava, mesmo considerando a sua origem proletária, o que também não era lá motivo suficiente para justificar a escolha. Merda! Tinha sempre essa mania de pensar em tudo, duvidar de tudo.
Iria enfrentar um inimigo poderoso e sem piedade. Poderia ser torturado, morrer com um tiro na nuca. Era isso o que mais temia: morrer com um tiro na nuca. Chegou a ter um pesadelo, onde era perseguido pela polícia e levava um tiro nas costas, mas a bala ficava encravada junto à coluna, como a maçã encravada no corpo de Gregor Samsa. Corria e tentava desesperadamente tirar a bala das costas sabendo que, se conseguisse tirá-la, não morreria. Corria, corria, até acordar com o corpo todo suado numa madrugada fria de inverno.
Com mais três companheiros, Pedro foi incumbido de expropriar um carro para ser utilizado num assalto a banco. Encheu-se de coragem e, no dia marcado, quase não conseguiu se concentrar no trabalho do jornal. Trabalhava na “Folha Ilustrada” do jornal Folha de São Paulo, sob o comando de Cláudio Abramo.
Às sete e meia da noite deixou a redação e foi para a Praça Buenos Aires encontrar os companheiros. Desastre total. O companheiro que dirigia o carro, Ladislas Dowbor, assustou-se quando um camburão preto e branco da polícia emparelhou-se com o fusca em que estavam numa das avenidas da zona sul da cidade.
Ladislas avançou o sinal vermelho. Correria, perseguição, tiros. Até que foram todos parar na décima sexta delegacia em Vila Mariana.
Um tira pernambucano, mau como uma cobra, arrancava tufos de cabelo do bigode de Pedro, enquanto os outros levavam golpes de telefone, socos e pontapés.
Conseguiram os quatro, os outros dois eram Wilson Fava e Oswaldo Portuga, a muito custo e graças à ineficiência dos estúpidos policiais, acostumados no trato violento com marginais, conseguiram inventar uma história de que rodavam ali pela cidade à procura de mulheres.
Mas quem iria acreditar numa bobagem daquelas? Quatro marmanjos dentro de um fusca, todos armados, e ainda por cima faltando o rádio/toca fitas. O carro era roubado, diziam os tiras. Não, não é… O fusca é emprestado, retrucavam os guerrilheiros.
Durante essa conversa fiada, os quatro companheiros levaram porradas de todos os lados. Até que chegou a confirmação: Pedro era mesmo jornalista da Folha de São Paulo.
Ninguém sabia o que fazer: nem os guerrilheiros, nem a polícia. O delegado resolveu a questão mandando todos para o DEIC.
O carro, afinal, era mesmo emprestado. Para Pedro e os companheiros havia apenas uma questão de honra: não falar nada sobre política, nada sobre a organização guerrilheira a que pertenciam. Ficaram todos quase uma semana à espera do habeas corpus.
Cada um foi jogado numa cela junto a todo tipo de presos comuns. Nenhuma palavra sobre o que de fato faziam àquela hora da noite. Responderam processo por porte ilegal de armas e pagaram multa de vinte cruzeiros.
Na sua cela, Pedro ainda viu um homem de mais de sessenta anos ser surrado quase até a morte e nada pode fazer. ‘Abuso de menor’, disseram os outros presos, ‘é melhor você ficar quieto’.
As primeiras experiências de Pedro no cumprimento de tarefas políticas geralmente não eram lá muito bem sucedidas. Ainda jovem em Belo Horizonte, quando os comunistas apoiaram a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros, recebeu a tarefa de ir – junto a um companheiro de sua base secundarista do Colégio Estadual – tentar impedir a circulação dos ônibus urbanos, obstruindo as portas de uma garagem da periferia.
Os dois pirralhos não sabiam muito bem como convencer, as quatro da matina, aqueles trabalhadores ainda sonolentos e mal encarados alguns deles. Não conseguiam explicar muito bem qual a relação entre parar os transportes na cidade e a posse do vice-presidente eleito.
Enquanto balbuciavam mal os seus argumentos, discutidos na agitada reunião do partido na tarde anterior, motoristas e cobradores ajeitavam-se em seus veículos, enfileirando-se para deixar a garagem.
Os pequenos agitadores acabaram por se transformar nos dois primeiros passageiros do dia daquela empresa, voltando ambos para o centro da cidade num dos próprios ônibus que, por tarefa política, deveriam parar.
Na delegacia da Vila Mariana, vinte e sete anos depois, enquanto levava tapas e socos do tira pernambucano, Pedro não podia deixar de se lembrar da aventura em Belo Horizonte. Riu, apesar da desgraça momentânea. O pior, no entanto, ainda estava por vir…
CONTINUA…
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Que arraso!!!
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Vamos esperar 15 dias? Não é justo …continua Izaías…
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Esse guerrilheiro é mais um dos denominados “Marxistas de Axilas”. Jovens que carregam sob o braço um exemplar de O Capital e um monte de idéias utópicas na cabeça.
Raymond Aron no seu imperdível “O Marxismo de Marx” confessa logo no início que levou cerca de 46 longos anos para apreender o verdadeiro sentido das propostas do “Mouro” expostas no seu tratado mais importante. Esses “Marxistas de Axilas” na maior parte leram apenas os dois primeiros capítulos do Volume I.
E saem à luta para mudar o mundo.
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Izaías, que surpresa boa te encontrar por aqui, após tantos anos ! Vou ler seus escritos com atenção e interesse, vou procurar seus contos. Parabéns pela trajetória ! Abraço.
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Será a Vera Maier da EAD? Sendo ou não sendo, grato pelas palavras. Bração.
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