V. Perlo e H. Magdoff: americanos diferentes, americanos notáveis
Estes dois americanos, diferentes e notáveis, permanecem como exemplos para os pesquisadores e intelectuais que, na entrada do século XXI, nos mais diversos cantos do mundo, dispõem-se a contribuir para a solução socialista dos dilemas que hoje ameaçam a existência da humanidade.
Por José Paulo Netto.
No pensamento social crítico norte-americano do século XX, as contribuições do marxismo – em suas distintas vertentes e matizes e em áreas do conhecimento diversificadas – constituem um acervo expressivo, mas de impacto intelectual e sócio-político restrito. Com efeito, na primeira metade do século XX, salvo nos contados anos, entre 1930 e 1945, em que o Partido Comunista (o CPUSA, fundado em 1919) teve alguma incidência no movimento operário e popular, a esquerda e o pensamento radical nos Estados Unidos mostraram-se pouco permeáveis à influência da tradição teórico-política fundada por Marx.
É somente quando o pensamento radical norte-americano, tal como caracterizado pelo sociólogo inglês T. B. Bottomore (1920-1992), renasce com vigor, configurando a emergência da Nova Esquerda, na segunda metade dos anos 1950, é somente então que o marxismo passa a ressoar com mais ponderação na cultura da esquerda norte-americana. E é fato que, dos anos 1960 em diante, inclusive nos dias de hoje, tal ressonância tem se ampliado sensivelmente – ampliação que, todavia, não se expressa em influências significativas nos movimentos sociais (embora seja bem visível nas lutas contra o preconceito racial).
Justamente naqueles distantes anos 1930 formaram-se em Nova Iorque dois intelectuais que, aderindo ao marxismo, haveriam de oferecer, da sua maturidade e até ao final do século XX, um notável contributo seja à análise do capitalismo norte-americano, seja ao desenvolvimento da crítica da economia política. Refiro-me a Victor Perlo (1912-1999) e a Harry Magdoff (1913-2005), autores de obras que, a meu juízo, ainda merecem uma atenção maior por parte dos estudiosos brasileiros.
A produção bibliográfica de ambos, resultante de pesquisas que efetivaram ao largo de décadas, é portentosa; uma sinopse rápida indica que Perlo foi mais precoce e prolífico que Magdoff – escreveu incansavelmente nos meios de comunicação do movimento comunista internacional: além da mais de uma dezena de seus livros, publicados em muitos idiomas, redigiu centenas de ensaios e artigos. Dos seus livros, destaco, como os mais importantes: American Imperialism (1951), Trends in the Economic Status of the Negro People (1952), The Empire of High Finance (1957), Militarism and Industry (1963), The Vietnam Profiteers (1966), Economics of Racism USA: Roots of Black Inequality (1975), Super Profits and Crises: Modern US Capitalism (1988) e Economics of Racism II: The Roots of Inequality, USA (1996). Dentre os vários títulos de Magdoff, ressalto Black America: Economic Shock Absorber (1965), Economic Aspects of U.S. Imperialism (1966), The Age of Imperialism: The Economics of U. S. (1969), Imperialism: From the Colonial Age to the Present (1978); e, em fecunda colaboração, com P. M. Sweezy, estão The Dynamics of U.S. Capitalism (1970), The End of Prosperity (1977), The Deepening Crisis of U.S. Capitalism (1980), Stagnation and the Financial Explosion (1987) e The Irreversible Crisis (1988).*
Muitos são os aspectos que permitem estabelecer um denominador comum entre Perlo e Magdoff. Ambos tiveram uma formação acadêmica de base matemática (Perlo em 1931, na Columbia University, Magdoff em 1933, no City College) e se pós-graduaram como mestres nas mesmas instituições (Perlo em 1933, ainda na matemática, e Magdoff em 1935, mas na área da economia). Ambos se assumiram marxistas quase ao mesmo tempo e ambos prestaram serviços aos governos (1933-1945) de F. D. Roosevelt (1882-1945), na condução do New Deal e no esforço de guerra. E ambos foram atingidos pelas denúncias (1945) da renegada Elizabeth Bentley (1908-1963), que municiaram largamente o grosseiro anticomunismo de que se nutriu o “Comitê de Atividades Anti-Americanas”, base do ominoso macartismo que tanto golpeou a cultura americana: acusados de espionagem a serviço da União Soviética, Perlo e Magdoff deixaram seus cargos governamentais ao fim da década de 1940. Mas não abandonaram a cena política: ainda em 1948, ambos participaram da malograda campanha de H. A. Wallace (1888-1965), do designado Partido Progressista, à Presidência da República.
Esses traços comuns, todavia, não elidem as diferenças entre as trajetórias pessoais de Perlo e Magdoff. No caso de Perlo, a adesão ao marxismo implicou em simultâneo o seu ingresso no Partido Comunista, obviamente ocultado até a abertura dos anos 1950 (quando passou a escrever na imprensa comunista sem utilizar pseudônimos) – só então a sua militância partidária foi amplamente publicitada e ele veio a ocupar, até o fim da vida, a posição de economista-chefe da direção central do CPUSA. Quanto a Magdoff, não se registrou dele nenhuma vinculação orgânica com o Partido Comunista, mesmo que nos anos 1930 tenha apoiado com entusiasmo iniciativas partidárias – como a constituição do “Batalhão A. Lincoln”, que integrou as Brigadas Internacionalistas na defesa da república durante a guerra civil espanhola. Tais diferenças, porém, ultrapassam o âmbito das suas características pessoais (eles tinham referências e preferências culturais muito diversas: Perlo, por exemplo, era um talentoso pianista). Elas cobrem também as suas concepções marxistas: se Perlo sempre se manteve no marco do chamado “marxismo soviético”, Magdoff é qualificado por muitos estudiosos como um “neomarxista”.
Na análise da grande problemática que lhes foi comum, o imperialismo, são claras as diferenças entre os dois: se ambos se detêm no exame da constituição e do desenvolvimento do capitalismo monopolista nos Estados Unidos e suas incidências no sistema da economia mundial, em Perlo verifica-se uma atenção especial às dimensões macro-econômicas e macro-políticas, ao passo que Magdoff ressalta mais, além dessas, as suas implicações sociais e geopolíticas e enfatiza as suas peculiaridades de caráter financeiro. Por outra parte, o trato do que o social-democrata sueco G. Myrdal (1898-1987) designou em 1944 como “dilema americano” – isto é, as relações étnicas na sociedade norte-americana –, foi muito mais aprofundado por Perlo do que por Magdoff, mesmo que este lhe tenha dedicado páginas esclarecedoras. Igualmente, na abordagem da centralidade do militarismo na dinâmica do capitalismo monopolista, de que ambos se ocupam, também é Perlo que lhe confere mais densidade. Em troca, a sensibilidade política em face de processos revolucionários contemporâneos “não clássicos” é mais apurada em Magdoff que em Perlo – não é um acaso que Magdoff tenha se relacionado afetuosamente com Ernesto “Che” Guevara e valorizado o seu pensamento teórico-político.
O rigor com que ambos procuraram compreender exaustivamente o capitalismo monopolista à luz da teoria marxista, a relevância dos seus esforços na análise econômico-política da história contemporânea dos Estados Unidos, o seu radical compromisso internacionalista com as lutas dos trabalhadores – ademais da integridade moral de que ambos deram inequívocas provas –, asseguram a Perlo e a Magdoff um lugar proeminente no pensamento crítico norte-americano da segunda metade do século XX. E estes dois americanos, diferentes e notáveis, permanecem como exemplos para os pesquisadores e intelectuais que, na entrada do século XXI, nos mais diversos cantos do mundo, dispõem-se a contribuir para a solução socialista dos dilemas que hoje ameaçam a existência da humanidade.
* De Perlo, estão traduzidos ao português, ao que sei, além de alguns ensaios circunstanciais, apenas Militarismo e indústria (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969) e O império da alta finança (Lisboa: Estampa, 3 vols., 1976).
De Magdoff, encontram-se vertidos A era do imperialismo (S. Paulo: Hucitec, 1978) e Imperialismo: da era colonial ao presente (Rio de Janeiro: Zahar, 1979); e ainda, da sua colaboração com P. M. Sweezy, O fim da prosperidade: a economia americana na década de 1970 (Rio de Janeiro: Campus, 1978) e A crise do capitalismo americano (Rio de Janeiro: Zahar, 1982). Lembre-se que, após a morte de Leo Huberman (1903-1968), que juntamente com Sweezy (1910-2004) fundou em 1949 a Monthly Review, Magdoff substituiu-o como co-editor deste conhecido e importante periódico norte-americano.
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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
o titulo desta matéria é um horror..
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Lamentável elogiar dois stalinistas como exemplo da luta de classes nos EUA! Na verdade, os únicos que combateram o capitalismo americano foram os trotsquistas, sob a orientação direta de Trotsky que exilado no México, tinha contato constante com os americanos e existem textos dele em que ele dialoga com os americanos e explica de forma exemplar o significado dialético do chamado “Programa de Transição”. Mostra Trotsky aos americanos que não adianta falar em socialismo ou comunismo nos EUA, mas sim, é necessário um programa que aparece como mínimo e na verdade, é máximo: As escalas móveis de salários e horas de trabalho. Como explica Trotsky, esse é um programa irrealizável no capitalismo, acaba com o mercado de trabalho e já é um programa socialista, um programa que termina na dualidade de poder crescente e de forma definitiva nos conselhos operários.
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