O Sartre de Silvio Luiz de Almeida

O filósofo Franklin Leopoldo e Silva escreve sobre o novo livro de Silvio Luiz de Almeida, "Sartre: direito e política"

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Por Franklin Leopoldo e Silva.

O leitor não encontrará em Sartre: direito e política algo como uma teoria sartriana do direito, penosamente extraída das entrelinhas ou das meias-palavras do filósofo graças a um esforço para obrigar o texto a dizer aquilo que queremos que ele diga. Pelo contrário, o trabalho de Silvio Luiz de Almeida é absolutamente fiel à letra e ao espírito da obra de Sartre, acompanhando com competência e rigor a argumentação – por vezes árida e tecnicamente intrincada – dos grandes escritos, tais como O ser e o nada e Crítica da razão dialética.

Ao mesmo tempo, o autor nos convence de que, no pensamento de Sartre, o direito está presente em uma dimensão seminal, precisamente aquela em que se encontra com a liberdade e a política. Nesse sentido, a importância do estudo aqui desenvolvido está no resgate da dimensão ético-política do direito, além ou aquém do edifício formal da técnica jurídica, historicamente construído com finalidades e compromissos nem sempre concordes com a justiça.

Trata-se, portanto, de um livro que, além de cumprir com as expectativas acadêmicas nos termos mais completos e elevados, representa o engajamento do autor no restabelecimento da relação entre direito e justiça no seu sentido originário, aquele vinculado à dimensão constitutivamente política do ser humano, na sua condição social e histórica.

Sabemos que o existencialismo já foi acusado de ser uma filosofia da subjetividade formal e da liberdade abstrata, eivado de formulações distanciadas da experiência concreta que se faz na efetividade da vida histórica, determinada por contradições que levam a duvidar da possibilidade de sermos livres. Assim, seria talvez sensato adotar, de modo contrário à radicalidade das teses de Sartre, uma atitude mais realista e consistente no esforço de aprimoramento das instituições e daquilo que habitualmente se entende por vida democrática.

Ora, este livro mostra que, longe de cultivar utopias, a filosofia de Sartre nos coloca decididamente diante da raiz da condição humana, a liberdade à qual não podemos fugir, ainda que possamos por vezes edulcorar e disfarçar, no intuito de ocultá-la, tanto de nosso cotidiano quanto de nossas grandes decisões. Assim, o autor nos convida a revisar hierarquias e prioridades consolidadas pelos nossos hábitos e condizentes com nossa comodidade. Para tanto, Almeida nos mostra que a liberdade não consiste em uma conduta orientada por regras preestabelecidas, logicamente estruturadas, em um arranjo sistêmico que parece intrínseco ao universo humano – aquele das leis e dos preceitos. A liberdade é originária, fato primordial e exatamente concebida contra uma tradição que faz da realidade humana apenas a explicitação de uma essência prévia e determinante.

Nesse sentido, devemos compreendê-la como a indeterminação constitutiva de nossa realidade, condição que as convenções de toda ordem procuram reduzir a um conjunto de regulações a que chamamos moralidade, sociabilidade e outras tantas designações de nossa conformidade às dimensões estritamente objetivas da vida, isto é, à alienação. Daí o caráter absoluto com que as regras aparecem para nós, inclusive a esfera da normatividade jurídica: o que foi instituído pelos homens ganha um estatuto de realidade independente, a-histórica e, não raro, anti-humana. Trata-se do privilégio da forma, que o desejo de estabilidade elege como critério supremo de valoração.

Ora, a filosofia de Sartre possui em seu centro a tese de que a existência precede a essência, e que esta existência é histórica. Isto significa que, não sendo a realidade humana dependente de qualquer forma fixa que a antecederia e a determinaria, seria no mínimo contraditório instituir como ideias reguladoras da existência formas determinantes pretensamente anteriores e independentes do devir histórico. No caso do homem, ser histórico não é acidental; a historicidade constitui a realidade humana. Exercer a liberdade no tempo histórico significa viver fora de si, na forma do desejo e do projeto, isto é, como escolhas sucessivas no processo de constituição da subjetividade. A existência se dá no vir-a-ser, no tempo que está por vir, na distância que o ser humano mantém de si mesmo e que o faz ser uma questão para si mesmo.

Essa questão se coloca de modo contínuo, desde o plano existencial até o contexto social, histórico e político. Como afirma o autor, a filosofia de Sartre não se divide em duas fases: uma em que o filósofo teria a existência como preocupação exclusiva e outra em que as questões históricas ocupariam a sua reflexão. Trata-se da mesma filosofia que, em um primeiro momento, confere ênfase à existência no seu sentido ontológico e, posteriormente, sublinha as questões de ordem histórica e política. Não existe ruptura, apenas diferença na acentuação de um ou outro aspecto. A questão existencial é a questão da existência histórica. Tal caráter interrogativo do pensamento sartriano exclui todos os dogmatismos, e isto explica por que, no tratamento da existência histórica, o marxismo aparece como uma filosofia a ser completada, na medida em que o materialismo histórico ainda não teria encontrado a racionalidade dialética que deveria caracterizá-lo. Daí a maneira singular pela qual Sartre adere ao marxismo: aceita-o como a única filosofia à altura de nossa época, mas não concorda com as cristalizações conceituais inerentes à doutrina na rigidez de sua ortodoxia.

No centro da discussão que o filósofo mantém com o marxismo de seu tempo está a posição da subjetividade e, assim, a questão da liberdade. Afirmado desde o primeiro momento na ontologia fenomenológica de O ser e o nada, o problema permanece na filosofia da história desenvolvida na Crítica da razão dialética. Por mais paradoxal que possa parecer, o empenho de Sartre foi o de afirmar, contra os marxistas, a primazia da liberdade e da história. Isso se explica, entretanto, pela visão sartriana do materialismo histórico: menos um método conceitual, ao modo da tradição, e muito mais uma maneira de acompanhar o movimento histórico em todas as suas modulações e, sobretudo, no que diz respeito à dialética entre a liberdade subjetiva e as condições objetivas em que ocorre a história. É necessário considerar a tensão entre as duas instâncias como constitutiva da realidade humana, já que, conforme Marx, os homens fazem a história e a história os faz, não sendo possível uma escolha do elemento dominante porque não se trata de uma alternativa, e sim de uma relação dotada de uma tensão intrínseca.

A oposição que assim se constitui no próprio núcleo da realidade como uma tensão inconciliável, isto é, verdadeiramente dialética, é importante para entendermos o centro temático do livro de Silvio Luiz de Almeida, pois se trata do “lugar” a partir do qual se irradia todo o questionamento.

A subjetividade é feita de escolhas. Que a sociedade, as instituições e a história também o sejam é um pouco mais difícil de compreender, devido à consolidação objetiva das condições que parecem superar e determinar o domínio que teríamos sobre nossas próprias práticas. A inércia está sempre à espreita, e sua expansão ameaça o que normalmente entendemos por autodeterminação. Mas a filosofia da existência não herda as categorias iluministas de modo passivo e, assim, não sucumbe ao ardil de confundir a liberdade com a soberania da razão. A racionalidade é um projeto a ser realizado, não uma estrutura inata a ser explicitada. Assim, os homens são responsáveis pelas instituições, mesmo quando já não se veem como seus artífices. Isto quer dizer que a ética e a política, isto é, a justiça, são tarefa histórica. Quando as instituições não acompanham o movimento histórico tornam-se formas vazias, e a relação que mantêm com a vida torna-se abstrata. Por isso, toda cristalização sistemática da organização prática é, em princípio, fator de alienação e possibilidade de opressão. O papel das instituições humanas se mostra inteligível na práxis que as constitui e que elas contribuem para orientar. Ao adotarmos essa dialética, entendemos que a justiça não é uma ideia, mas a articulação histórica da práxis.

Nesse sentido, uma crítica profunda das relações entre direito e justiça se faz necessária, para que o sujeito de direito deixe de ser um princípio abstrato e encarne em uma universalidade concreta. É nessa direção que se desenvolvem as reflexões de Silvio Luiz de Almeida acerca da forma jurídica como universalização abstrata da justiça – e as consequências que daí decorrem, tão eloquentemente ilustradas pelo racismo, pelo colonialismo e por outras formas de opressão. Se a justiça existe para os homens como modo de libertação histórica, ela não pode se determinar em formas congeladas de abordagem conceitual das condutas, isto é, ela não deveria manifestar o humanismo restrito da ideologia burguesa. Tal diagnóstico forte e corajoso está na raiz das intenções deste livro e representa a grande contribuição do autor para a efetivação das possibilidades de transformação do direito.

Para tanto, o autor encontrou em Sartre, na sua filosofia da existência vista como uma teoria imanente da ação, os instrumentos para afirmar, a partir da relação entre direito e liberdade, a justiça como ação contínua de realização do projeto humano, por via da criação ética e da liberdade histórica.

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