E se estou vendo fantasmas?
Resenha de "Cabo de guerra", novo romance de Ivone Benedetti
Por Juliane Vargas Welter.
Em tempos de delações premiadas povoando as páginas dos jornais e da emergência da palavra “golpe” no cenário político, o novo romance de Ivone Benedetti, Cabo de guerra (Boitempo, 2016), vem ao encontro de algumas demandas da nossa jovem e instável democracia. Me refiro aqui a algumas representações ficcionalizadas na obra: a figura moralmente condenável do, em bom português, “dedo-duro”; e o nosso passado recente recalcado, o regime militar (1964-1985). Ambos emergem na nossa atual conjuntura de maneira ambígua, como a figura do delator, que não ganha mais os olhares condenatórios ao, quem sabe, nos livrar de um “mal maior”, como a corrupção (o que atenua o seu caráter anti-heróico). Assim como a memória da ditadura militar brasileira, que vem se mostrando cada vez mais como um campo ainda em disputa, com o caso emblemático do deputado que homenageou um torturador na Câmara[1]. Não é forçoso dizer que, mais do que ir ao encontro desse dado material, o romance de Benedetti é a própria formalização desse horizonte social.
Com uma narrativa em primeira pessoa, acompanhamos nosso narrador não-nomeado durante 3 dias nos quais ele recorda o seu passado de “cachorro”, ou seja, de delator infiltrado nas organizações de esquerda durante a ditadura. Dois dados do espaço-tempo são crucias na construção: o primeiro é que nosso protagonista se encontra acamado (dado crucial da narrativa), sem poder de locomoção, com o espaço restrito a um quarto e contando com a ajuda de uma irmã a quem tem ojeriza. O segundo é que o agora narrativo se passa em uma manhã de 2009, quando o narrador se dá conta que “essa história já tem quarenta anos. É passado. Ou deveria ser”.
É partir dessas premissas que a narrativa é composta, tendo assim como horizonte a reconstrução de um passado via perspectiva de um presente sem saída (sejam elas simbólicas ou reais) e, claro, sem futuro, o que será uma marca estrutural do romance. Será assim no jogo (sempre ardiloso) da rememoração ou, melhor dizendo, no “compacto amontoado de ficções que se ergue diante de mim todos os dias, com o nome de memória”, que ele irá expiar suas culpas. Porém, se o personagem é assinalado de um lado pela pecha de traidor/delator, o que lhe configura uma agência de sua vida, por outro ele é marcado pela inexpressividade de caráter de alguém que adentra nesse universo quase que por acaso. Ou assim ele quer que pensemos.
Para além da narrativa, o romance vem referendado por uma orelha escrita por Bernardo Kucinski, que recentemente caiu nas graças da crítica com a publicação do romance K., relato de uma busca (Companhia das Letras, 2014), par antagônico do romance de Benedetti. Publicado em 2011 e relançando em 2014, a obra ficcionaliza o desaparecimento político de Ana Kucinski (irmã do autor) e a busca do pai pelo corpo nunca encontrado. Com uma narrativa estruturada por certo distanciamento do narrador, alternando primeira e terceira pessoa com reflexões sobre nossas políticas de memórias, o romance se constrói a partir do “desaparecido político”, uma especificidade do nosso regime militar. Dessa forma, o autor realiza um trabalho de luto que é seu (o corpo nunca encontrado da irmã), mas que lida com o dado social que o narrador chama de “mal de Alzheimer nacional”, sendo a literatura um lugar de resistência a esse esquecimento referendado pelo Estado com a lei de Anistia de 1979. O filósofo francês Paul Ricoeur[2] já havia chamado a atenção para a semelhança semântica entre as palavras anistia e amnésia: um contrato que relega parte da memória, simulando um perdão. Ou seja, um esquecimento institucionalizado pelo Estado que deixa de elaborar uma resolução para um passado nacional traumático. Somado a isso, um importante (ainda que tardio) dado: a criação da Comissão Nacional da Verdade (2012)[3]. Não por acaso, é em meio as lembranças dos 50 anos do golpe que o romance é aclamado.
Assim, por um lado temos um romance que narrativiza a perspectiva do algoz; por outro, a perspectiva das vítimas, compondo um retrato do romance brasileiro contemporâneo que, mais de 30 anos depois do fim do regime, parece tentar elaborar o trauma histórico via ficção – dado que diz muito mais do nosso presente do que do nosso passado. No jogo duplo entre os romances, é muito clara a empatia que a figura de uma irmã desaparecida provoca no leitor, bem como a busca de um pai que nunca encontrará esse corpo, ou seja, não solucionará a sua ferida aberta. Em contrapartida, a figura do algoz é duplamente execrável: em parte marcado pela cumplicidade com um regime de violência e em parte pelas traições cometidas. Contudo, seremos surpreendidos por um personagem passivo e patético, que ao mesmo tempo em que expia suas culpas (de maneira cifrada) também se vê como alguém que não era agente da ação repressiva diretamente. Dito de outra maneira: pela sua construção narrativa suas atitudes se dão muito mais por acaso e medo do que por escolha, tal como um cachorro ou como um “cabo de guerra” que é tracionado por lados opostos. O que podemos ler como um artifício narrativo de humanização ou de culpabilização do narrador por ele mesmo. Chama a atenção nessa expiação é que, ao reconstruir esse passado, é somente na perda de Cibele, uma namorada pós vida de “cachorro”, que o trauma é exposto e sentido, ainda que projetado na melancolia da perda amorosa, e não na culpa de seus atos passados.
Se a literatura brasileira é conhecida por não ter escrito muitos romances sobre a ditadura militar, a produção recente parece disposta a sanar esse índice se contrapondo ao “mal de Alzheimer nacional”, com Cabo de guerra se inserindo em uma tradição que está se reconfigurando. Assim, temos de um lado, a não resolução do nosso passado recente e um esquecimento que paira sobre a sociedade; de outro, uma classe artística que o elabora esteticamente com cada vez mais frequência[4]. Em tensão com o dado externo do esquecimento perpetuado desde 1979, os romances, no melhor estilo freudiano, recordam e repetem uma memória recalcada da e na sociedade[5], funcionando assim a literatura como o sonho[6]: ou seja, como espaço de expurgação do inconsciente.
Desse modo, o romance de Benedetti se insere nesse novo momento da literatura brasileira que emerge no nosso presente. Parece inevitável pensar nos diálogos explícitos com romances como Não falei, de Beatriz Bracher (Editora 34, 2004): Gustavo, seu narrador, acusado de delação no passado, vive o presente tentando reconstruir sua vida anos depois. Todavia, se sobressalta a relação com Benjamim, de Chico Buarque (Cia. Das Letras, 1995), com seu protagonista patético de nome homônimo ao romance. Se o primeiro sofre anos depois pela acusação da delação que alega nunca ter feito, o outro sofre por uma única delação (com ares de acaso) cometida. As similaridades com o romance de Chico Buarque são inclusive formais, com um desfecho que aponta para uma narrativa circular, sem futuro possível. Isso sem falar, forçando a nota, no quanto o sumiço de Cibele como deflagrador de traumas não reforça a relação com a “desaparecida” Castana Beatriz de Benjamim, e por que não, com Dulce Veiga de Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu (Agir, 1990). Não por acaso, nosso narrador comenta: “Onde andará Cibele?”…
Diante do aqui exposto, Cabo de guerra me põe a perguntar: estaria eu, como o narrador anônimo de Benedetti, vendo fantasmas? Quem dá a resposta é a própria literatura, pois segundo nosso narrador, essa história que “já tem quarenta anos”, deveria ser passado, mas não é: “Porque o passado não vivido não passa, fica atormentando, querendo ser chamado de presente, ocupando armários, cadeiras, sempre aí, sempre aqui. Então, tentando apagar essa presença deslocada, a gente revive tudo lembrando, mas quem revive não é a gente, e sim o passado, de modo que a gente passa o tempo realimentando o tempo, e isso não acaba nunca”. Aceitando a ideia de que o romance é a própria formalização do nosso dado social, não é de estranhar a fantasmagoria e a reatualização do termo “golpe” na atualidade. Afinal, assim como o narrador de Benedetti, somos levados a todo momento a um passado mal resolvido que não nos permite seguir em frente.
NOTAS
[1] “Discurso de Bolsonaro deixa ativistas ‘estarrecidos’ e leva OAB a pedir sua cassação”. Para maiores detalhes ver: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160415_bolsonaro_ongs_oab_mdb. Acesso: 06 jul. 2016.
[2] RICOEUR, Paul. La memóire, l’histoire, l’oubli. Paris, Editions du Seuil, Points Seuil, Essais, 2000.
[3] Instituída oficialmente em 12 de maio de 2012. Para maiores informações ver: https://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html. Acesso: 10 jul. 2016.
[4] Me refiro aqui aos recém lançados romances de Bernardo Kucinski e Maria Valéria Rezende, Os visitantes (Companhia das Letras, 2016) e Outros cantos (Alfaguara, 2016) e a uma série de romances (sem a intenção de esgotar a lista) que se não centralizam a temática, a tangenciam: Sinfonia em branco e Azul-corvo, de Adriana Lisboa (Alfaguara, 2001 e 2010), Fim, de Fernanda Torres (Cia. Das Letras, 2013), A chave da casa e Paraíso, de Tatiana Salem Levy (Record e Foz, 2007 e 2014) e Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende (Alfaguara, 2014), ou romances nem tão recentes como Antônio e Não falei¸ de Beatriz Bracher (Ed. 34, 2009 e 2004), Dois irmãos e Cinzas do Norte, de Milton Hatoum (Cia. Das Letras, 2000 e 2005), Benjamim e O irmão alemão, de Chico Buarque (Cia. Das Letras, 1995 e 2014), e o primeiro deles, Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu (Agir, 1990).
[5] FREUD, Sigmund. “Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”. In:___. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Volume XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[6] Tomo de empréstimo parte do argumento de Márcio Seligmann-Silva ao se referir ao cinema nacional. Para maiores detalhes ver: SELIGMANN-SILVA, M. Narrativas contra o silêncio: cinema e ditadura no Brasil In: SELIGMANN-SIVAL, M. HARDMAN, F. F.; GINZBURG, J. Escritas da Violência. Volume II. Rio de Janeiro: Editoras 7 Letras, 2012.
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Juliane Vargas Welter é Doutora em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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