Renata Gonçalves escreve sobre a nova antologia de feminismo materialista da Boitempo

"As reconfigurações de gênero, raça e classe repõem a política feminista diante da necessidade de entender os estreitos laços das relações de exploração e de opressão."

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Por Renata Gonçalves

O intercâmbio científico de pesquisadoras/es francesas/es e brasileiras/os deu origem a este livro que aborda as complexas relações, lá e cá, entre trabalho, cuidado e políticas sociais. À luz das teorias feministas, diferentes análises nos colocam mais uma vez frente à desigualdade de gênero, que teima em permanecer rígida.

Em nome da autonomia das mulheres, defendeu-se que o acesso à remuneração monetária corresponderia a um avanço. No entanto, embora as últimas décadas evidenciem que houve mudanças, as pesquisas aqui expostas demonstram que não temos muito a comemorar.

Com a globalização neoliberal surgiram as “mulheres globais” – em sua maioria, migrantes. Babás, faxineiras e “trabalhadoras do sexo” ganham destaque nesse mercado onde as coerções estruturais persistem com forte apelo aos atributos femininos. Assim, clientela “pouco exigente” busca apenas limpeza, carinho e cuidado das trabalhadoras do sexo; aparência e beleza são impostas às/aos trabalhadoras/es dos chamados serviços estéticos. O que explica que nos dois países as mulheres sejam majoritárias a exercer o trabalho do cuidado? Qual a razão para que a nova agenda de combate à violência nas periferias brasileiras incorpore as mulheres aos programas sociais e lhes atribua a tarefa de cuidar dos jovens “em situação de risco”? Como explicar que as mulheres permanecem ampla maioria (92,6%!) no trabalho doméstico remunerado no Brasil? Por que nessa ocupação o percentual de mulheres negras segue maior?

Sem dúvida, as políticas de redução do tempo de trabalho impactaram o uso do tempo das mulheres, permitindo-lhes conciliar o trabalho remunerado com as atividades do lar, o que provocou maior exposição feminina a postos de trabalho cada vez mais precários. Nos dois países, mesmo ao alcançarem lócus de poder, as mulheres tendem a ocupar posições inferiores e de menor prestígio.

As reconfigurações de gênero, raça e classe repõem a política feminista diante da necessidade de entender os estreitos laços das relações de exploração e de opressão. Atualizar essa agenda tem sido o desafio constante das/os pesquisadoras/es aqui reunidas/os, o que faz a novidade deste um livro.


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Entrevista de Helena Hirata sobre a antologia, publicada no suplemento “Eu & fim de semana” do jornal Valor Econômico

“A presença do feminismo nas ruas, redes e roçados indaga por que desigualdades entre mulheres e homens persistem e se recriam. Neste livro, análises sobre mudanças e permanências, similitudes e diferenças entre Brasil, América Latina e França ampliam o olhar sobre a contribuição econômica das mulheres, a injusta organização do cuidado e as resistências por elas enfrentadas em áreas ditas masculinas. Essas leituras moldam ferramentas − conceitos e metodologias − que situam tensões em torno à divisão sexual do trabalho, imbricam gênero, classe e raça, desvelam representações por trás das estatísticas, captam trajetórias individuais e coletivas. São reflexões sobre a realidade compartilhada por autoras e sujeitos que transcendem as fronteiras do trabalho científico e vislumbram transformações.” − Miriam Nobre, na quarta-capa do livro

Entrevistas em vídeo



Leia o texto de apresentação do livro, assinado por Tatau Godinho

Debater experiências do Brasil e da França no mundo do trabalho nos faz refletir sobre a dimensão dos desafios para a construção de igualdade entre mulheres e homens. Os diversos âmbitos abordados neste livro aprofundam a compreensão de como a divisão sexual do trabalho opera nas dinâmicas de alocação, ascensão e remuneração das mulheres no mundo do trabalho nos dois países. Sem dúvida, realidades diferentes, que nos mostram, entretanto, o quanto as amarras das relações patriarcais continuam fortes nas diferentes sociedades.

Os capítulos nos permitem conhecer, comparar e analisar a situação das mulheres nas sociedades brasileira e francesa e revisitar abordagens teóricas sobre a divisão sexual do trabalho, como um fio condutor das relações sociais de desigualdades que conformam o trabalho das mulheres. Trazem o conhecimento atualizado de áreas importantes em que se movem as fronteiras de trabalho das mulheres, como a entrada em carreiras tecnológicas e científicas, processos de terceirização, implicações do acesso à educação e seus reflexos na vida profissional. Oferecem também um olhar crítico e estimulante sobre os cuidados, questão fundamental que hoje ressignifica o conhecimento das análises do trabalho cotidiano e das responsabilidades familiares. Esse tema é central em uma agenda para o presente e o futuro, fundamental para reconstruir paradigmas de uma sociedade em que as mulheres não aceitam mais a responsabilidade prioritária ou mesmo exclusiva sobre a vida familiar e as demandas do privado.

Assim, perceber e reconhecer as desigualdades no uso do tempo, para mulheres e homens, é instrumental definitivo para a proposição de novas relações sociais e um novo desenho para as políticas públicas. As análises são detalhadas, algumas minuciosas, e revelam uma inquietude característica de boa parte da abordagem feminista sobre o mundo do trabalho. Inquietude que, historicamente, desvendou desigualdades não percebidas e, acompanhando o presente, introduz novos temas em nossa pauta. Não se aceitam respostas simples: afinal, as estatísticas precisam ser lidas também nas entrelinhas; as políticas têm de ser questionadas em suas intenções e consequências; as novas dinâmicas de trabalho devem ser interrogadas à luz dos interesses a que respondem prioritariamente. E, se um aumento da participação das mulheres no trabalho assalariado ao longo de décadas introduz fissuras na dependência econômica, também ressalta a permanência de dinâmicas de discriminação que se reatualizam.

Perpassam o conjunto dos textos algumas interrogações sobre como novas configurações do trabalho das mulheres compõem o quadro da reorganização das relações de trabalho contemporâneas. As desigualdades de rendimento, a permanência das mulheres em maior percentual em atividades e empregos precários, o maior contingente em jornadas menores, a alocação ainda concentrada em setores específicos são persistências que parecem indicar que se chegou a um teto. Parece haver um limite para que os efeitos da incorporação das mulheres no trabalho realizado na esfera pública tensionem as desigualdades econômicas entre mulheres e homens nos marcos das sociedades capitalistas contemporâneas. Romper com esses possíveis limites é outro fio que alinhava grande parte dos textos. Seja na compreensão de como se configuram as dinâmicas de desigualdade, seja na análise das resistências coletivas e individuais, ou ainda na crítica aos marcos legais e às políticas que reafirmam relações sociais de subalternidade, cobrando sua alteração. Também é recorrente, nas análises, a imbricação das desigualdades étnico raciais nos distintos âmbitos em que o trabalho das mulheres se organiza.

1 comentário em Renata Gonçalves escreve sobre a nova antologia de feminismo materialista da Boitempo

  1. muito boa essa matéria parabéns pela postagem

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