Brexit à brasileira: quando a barbárie se instala
Os elementos que deram impulso ao Brexit são os mesmos que impulsionam a política anti-diversidade e anti-pluralidade que impera no país, a exemplo do projeto criminoso Escola Sem Partido.
Por Rosane Borges.
Num cenário desbussolado, onde, progressivamente, ganham terreno diagnósticos que apontam o revés civilizatório pelo qual o mundo atravessa, o adeus do Reino Unido à União Europeia deixou o horizonte ainda mais plúmbeo. Entre atônitos e inconformados, britânicos e comunidade internacional reagiram ao resultado do referendo embalados por um tom funesto, buscando dimensionar os impactos de uma vitória inesperada para o establishment. Uma derrota que afetou o coração da política de David Cameron,1 o único líder europeu reeleito que se firmou como um homem habilidoso para transpor crises. Mas não dessa vez.
Reagindo às pressões de parlamentares de seu partido e de membros do UKIP (Partido pela Independência do Reino Unido), o primeiro-ministro britânico prometeu em 2013 que faria a consulta caso vencesse as eleições gerais de 2015. Esses parlamentares e o UKIP insistiram que os britânicos não tiveram a oportunidade de se pronunciar em 1975, ano em que foi decidida a permanência do Reino Unido no bloco. Excetuando londrinos e escoceses, pessoas mais velhas e habitantes do interior optaram pelo Brexit, ao passo que os jovens apoiaram maciçamente o Remain (a permanência na União Europeia).
O resultado da votação ganhou um sabor ainda mais amargo por conta dos motivos que o impulsionaram: um voto antiestablishment, antiglobalização e anti-imigração. O ex-ministro da Educação (sic), Michael Gove, fez inflamada campanha pró-saída insuflando o povo britânico a escolher entre a permanência e a saída de acordo com o “coração e os próprios julgamentos”. Para Grove, as pessoas tinham que desconsiderar as orientações de líderes sindicais, dos empreendedores britânicos, de Barack Obama e das mentes pensantes do mundo. “O povo deste país está farto dos especialistas”, arrematou Gove. A anomalia chamada Donald Trump, fazendo coro à decisão dos britânicos, subscreveu as declarações do ex-ministro da Educação e avaliou o resultado como algo “realmente fantástico”, uma prova evidente de que as pessoas estão “cansadas do mundo inteiro” (Se é bom para Trump, não é bom para o mundo). Até a Holanda, conhecida pelo respeito à diversidade, se rendeu aos partidos xenófobos, adotando o medo contra qualquer coisa que venha de fora, especialmente dos mulçumanos.
A rebeldia de Londres e da Escócia (pelo que se viu o povo londrino e escocês votou com a cabeça) tem razões que se enraízam historicamente: os londrinos habitam a cidade mais cosmopolita do mundo, convivem diuturnamente com estrangeiros e já aprenderam que as “pessoas de fora” são importantes para o dinamismo da economia local e são tão humanas quanto eles. Os escoceses, por sua vez, gozam de um sistema educacional estatal superior ao inglês e desde crianças rechaçam sentimentos xenófobos (a Escócia recebeu uma quantidade expressiva de imigrantes nos últimos anos). Recuperando a frase de Deleuze, com a qual simpatizo muitíssimo: “é preciso pensar em tempos difíceis”. Em ambos os casos, como se vê, a educação foi fundamental para uma tomada de posição mais equilibrada, o que nos faz relembrar outra frase, desta feita do filósofo Theodor Adorno:
“a tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. […] Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade”. (ADORNO, T.W., “A educação contra a barbárie“)
Nacionalismo, xenofobia e racismo: capital da política contemporânea
O pensador francês, Thomas Piketty, autor do clássico O capitalismo no século XXI, disse recentemente em entrevista que, em tempos de extremas desigualdades, nacionalismo e xenofobia são saídas fáceis, porém trágicas, para a humanidade: “Parece que ninguém tinha se preparado para o Brexit. Temos a sensação de que, passada uma semana, todo mundo ainda navega sem instrumentos. Apesar de tudo, é preciso reconstituir a esperança de poder construir algo novo a partir desse desastre”.
Mas o que nós, brasileiros(as), temos a ver com isso? Para além de “perder contra-peso às políticas agrícolas ultra-protecionistas europeias, que afetam negativamente nossas exportações do agro-negócio”, como avaliam os especialistas, o Brasil mergulha numa crise que se apoia em fundamentos semelhantes aos que deram força à saída britânica da UE. Mais do que reflexos do referendo em nosso cotidiano, talvez possamos pensar num “Brexit à brasileira”. Brincadeiras à parte, a expressão carrega algo aplicável às terras tupiniquins: BR (de Brasil) conjugado com uma legislação que dá adeus às conquistas de mulheres, negros, indígenas, gays, lésbicas e trans (antes do golpe, a Câmara dos Deputados retirou os termos “incorporação da perspectiva de gênero” do contexto das atribuições do ainda existente Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. A Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu sancionou lei que veda a distribuição e divulgação de material didático que apresente orientações sobre diversidade sexual, coibindo o combate à homofobia, à transfobia e a ampliação dos direitos de lésbicas, gays e trans).
De fato, acontecimentos recentes são uma mostra bem acabada da vitória parcial do Brexit à brasileira. A ideia estapafúrdia, para dizer o mínimo, da Escola Sem Partido2 junta-se aos casos acima mencionados, como também é parte deles. No último dia 8 de julho, Michel Temer recebeu uma delegação de lideranças evangélicas para discutir “o combate à ideologia de gênero” e “a defesa da família” (a mesma que os nobres deputados defenderam na votação do impeachment). O presidente garantiu que levará a pauta para o ministro da Educação, dando a entender que o pedido será atendido: “o presidente nos recebeu e foi inteiramente solícito com as nossas reivindicações. Acreditamos que vamos ter êxito”, disse, todo pimpão, o bispo Robson Rodovalho, presidente da Concepab (Confederação dos Conselhos de Pastores e Evangélicos do Brasil).
Se estacionarmos um pouco mais no projeto Escola sem Partido (ESP) veremos o quanto a barbárie avança assustadoramente, pois o que se molda no ESP é o confisco da pluralidade, o sequestro da crítica, o rebaixamento do papel do docente, enfim, é a morte do Outro. A polaridade ideológica alcança o epicentro das escolas brasileiras para reafirmar o jogo de interesses em que diferentes visões de mundo são asfixiadas em prol de um país monocultural, orientado por perspectivas que sustentam e legitimam racismos, sexismos, lesbofobia, transfobia….
Tachar o discurso plural (o que traz para a escola novos primas, outras histórias, outras atrizes e atores) como partidário é recorrer à velha operação que traça linhas divisórias entre o que é digno de ser chamado de conhecimento e o que deve ser tachado de ideologia, como se os dois pudessem ser diluídos. A própria noção latina de educação (“educar é orientar para o mundo”) desautoriza o desenho desse traçado. Deleuze já diria que todo enunciado funciona como palavra de ordem, mesmo que nenhuma ordem tenha sido dada, “pois opera como direcionamento, num processo educativo, a tomadas de posição e obrigações sociais”. Da educação infantil ao ensino superior somos orientados acerca do certo ou do errado, melhor ou pior, belo e feio, normal e desviante, adequado e inadequado, próprio e impróprio. Se isso não é tomar partido, que seja inventado um novo léxico.
Esta morte simbólica do Outro, implícita no Escola Sem Partido, se converte em morte real. Vimos escapando de padrões civilizatórios há muito tempo. O Brexit à brasileira pode ser dimensionado nas altas taxas de homicídio da juventude negra, na extinção das etnias indígenas, nas mortes aos borbotões as mulheres negras (o Mapa da Violência de 2015 apontou um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013).
Muito foi dito que o referendo do Reino Unido ocorreu num momento em que os jovens estavam distraídos. A votação ocorreu em pleno Festival de Glastonbury, o mais famoso e lendário evento de rock britânico, que contou com a presença de 180.000 pessoas, a maioria jovens que se divertia coberta com as bandeiras da EU. Num momento em que o espaço público brasileiro se converteu em nitroglicerina pura é preciso brecar esse processo de saída do Brasil dos padrões civilizatórios (o nosso Brexit) antes que aquela advertência dos animadores de circo – “Não tente fazer isso em casa” – ecoe tarde demais, como aconteceu no caso britânico.
NOTAS
1 David Cameron anunciou sua renúncia do posto após a aprovação da saída do Reino Unido da União Europeia. No seu lugar, assumirá a ministra do Interior, Theresa May, que é a primeira mulher a assumir o posto de primeira-ministra do Reino Unido desde Margaret Thatcher.
2 O Escola Sem Partido foi criado há 12 anos por um pai indignado com o professor de história da filha e vem ganhando força com a criação de Projetos de Lei nas Assembleias Legislativas estaduais e na Câmara Federal..
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Sexta-feira, em São Paulo
Rosane Borges participará do ato de lançamento do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil esta sexta-feira, dia 15/7, na Quadra dos Bancários, ao lado do Metrô da Sé, no centro de São Paulo a partir das 18h. Não perca!
TV Boitempo
Vale a pena conferir este debate com Rosane Borges, Silvio Almeida e Dennis de Oliveira que discute a crise política da perspectiva dos movimentos sociais!
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Rosane Borges é mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, pós-doutoranda pela mesma Universidade, professora do curso de especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), autora e organizadora de diversos livros, entre eles, Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (Imprensa Oficial, 2004), Mídia e racismo (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às terças.
Acho que a democracia vai tirar umas férias no Brasil .
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Comparar Brexit e “Escola sem partido” só aprofunda ainda mais o fosso(ou fossa) em que nos encontramos à esquerda. Fico com o KKE, quando veem no referendo uma legítima revolta contra a U.E(que, afinal, está morta) e suas políticas anti-povo. Ou com o esquecido (por estas bandas) John Pilger, que mais facilmente percebeu que a questão da imigração “foi explorada na campanha com perfeito cinismo, não só por políticos populistas da direita como por políticos do Labour que se inspiraram na sua própria venerável tradicional de promover e alimentar o racismo, um sintoma de corrupção não na base e sim no topo. A razão porque milhões de refugiados fugiram do Médio Oriente – primeiro do Iraque, agora da Síria – está nas invasões e no caos imperial provocado pela Grã-Bretanha, Estados Unidos, França, União Europeia e NATO. Antes disso, houve a deliberada destruição da Jugoslávia. E antes ainda houve o roubo da Palestina e a imposição de Israel.
Os capacetes de cortiça podem ter desaparecido, mas o sangue nunca secou. Um desprezo desde o século XIX por países e povos, dependendo do seu grau de utilidade colonial, permanece como uma peça central da moderna “globalização”, com o seu perverso socialismo para os ricos e capitalismo para os pobres: sua liberdade para o capital e negação de liberdade para o trabalho; seus políticos pérfidos e funcionários públicos politizados.” (Porque os britânicos disseram não à Europa).
Ora, e concluamos logo com a também esquecida lucidez do economista indiano Prabhat Patnaik:
“Quase todos os comentaristas que dissertaram acerca do voto do eleitorado britânico a favor do abandono da União Europeia, quer da direita quer da esquerda, deixaram de captar o ponto essencial do mesmo: que se trata de uma revolta maciça contra a hegemonia da finança globalizada. Na verdade, o facto de não terem percebido este ponto é em si mesmo indicativo da omnipresença desta hegemonia entre os literati, dos quais o eleitorado britânico, de modo interessante, parece ter-se libertado substancialmente.
Sem dúvida, alguns, incluindo o presidente Barack Obama, foram suficientemente antecipativos para ver o Brexit como uma rejeição da globalização. Mas eles atribuíram-na a um medo ilegítimo da globalização, o qual precisa ser apaziguado, ao invés de uma cólera legítima contra ele, resultante daquilo que a hegemonia da finança globalizada fez à economia britânica. Eles em suma defendiam a globalização, a qual sustentam ser benéfica, enquanto ignoravam sua principal característica, nomeadamente a globalização do capital financeiro, cujas consequências perniciosas preferiram ignorar.” (Brexit: Uma revolta contra a hegemonia da finança globalizada)
Tá difícil…
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Genial suas idéias são realmente tem visão da atualidade.global,.na verdade a inteligência do Reino unido salvou o mundo, veremos até onde se o dissimulado prêmio Nobel da Paz o Sr das guerras Obama e sucessores irão deixar; os EEUU e U.E nao cairá sem levar o mundo a ruína
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O artigo, que fato são 2, ou 1 quebrado ao meio, dá a impressão que a autora se dispôs a escrever sobre uma coisa e, no meio do caminho resolveu dar um pequeno passeio por outras praças. Acho que uma coisa e outra tem tudo à ver, isto é relacionar a crise europeia, com seu capítulo com a decisão do Reino Unido com o que acontece por aqui. Certo. Afinal, a globalização, através do neoliberalismo, ao se expandir e fazer estragos generalizados por toda parte, também saiu colhendo reações por todos os lados. Aqui, que estamos já acostumados a sofrer os efeitos de tudo o que acontece no centro do sistema, agravado ainda pelas nossas fragilidades, por nossa tradição e pela nossa baixa densidade democrática, então as coisas se agravam. Porém, não se agravam para todos e nem os que são atingidos o são igualmente. Existem aqueles grupos, sobretudo os negros, que se já padecem em chamados tempos normais, nas épocas de crises fortes, em que o sistema procura fazer seus acertos para salvar a chamada parte seleta, então os efeitos tem que recair sobre os mais vulneráveis. Em suma, o artigo na forma, tá meio enviesado porque ela juntou 2 em 1 e não colou bem. Porém, no conteúdo, ficou ótimo.
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Petistas têm a imaginação atrofiada.
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