O Escola Sem Partido e as lições marxistas da CNI

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Por Jorge Luiz Souto Maior.

Por diversas maneiras a democracia, que ainda nem se conseguiu construir de verdade no Brasil, tem sido ameaçada. Haja vista, por exemplo, a solicitação do Supremo Tribunal Federal à Polícia Federal para que investigue, com vistas à consequente responsabilização, quem idealizou e levou a uma manifestação de rua bonecos infláveis com as figuras do Presidente do STF, Ricardo Lewandowski, e do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, no último dia 19 de junho, na Avenida Paulista,1 o que valeu oportuno Editorial da Folha de S.Paulo.2

No plano da educação destaca-se o Projeto de Lei n. 867/2015 – Programa Escola Sem Partido, que pretende incluir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional uma negação à liberdade de expressão dos professores e professoras, nos moldes, inclusive, da Lei da “Escola Livre”, já aprovada no Estado de Alagoas.

Essas iniciativas no campo educacional vêm na linha do movimento reacionário que deu origem ao golpe de Estado em curso no país, favorecendo ao aprofundamento do Estado de exceção permanente, para a tentativa de impor retrocessos à racionalidade social.

Por elas, especificamente, pretende-se extirpar o conteúdo crítico das salas de aulas, servindo, inclusive, como aparelho repressivo, a exemplo do que se passou, recentemente, em uma escola pública no Paraná, quando, de forma atentatória aos mais rudimentares preceitos dos Direitos Humanos e do Direito do Trabalho, se afastou das atividades uma professora que teria realizado, segundo virou moda dizer, uma “doutrinação marxista” em sala de aula.3

O medo que se tem é que a educação sirva à formação do conhecimento, que permite compreender como funciona a sociedade capitalista e quais são, de fato, os obstáculos materiais à superação das desigualdades e à consolidação da justiça social. Mas essa tentativa de negar a evolução do conhecimento humano é uma tarefa irrealizável, que nem mesmo a tortura foi capaz de concretizar e já se sabe disso desde os tempos de Giordano Bruno. No atual estágio da racionalidade humana, ainda que questões econômicas, sobretudo em momentos de crise, quando o individualismo, decorrente do estado de necessidade, fala mais alto, volta e meia façam reviver lógicas de intolerância, egoísmo e soberba, estimulando a barbárie e a bestialidade, representa uma autêntica ilusão considerar que é possível, pela força, impor retrocessos à compreensão humana e aos avanços sociais já verificados (embora ainda embrionários em muitas realidades) nas relações de trabalho e nas questões de gênero, de raça, de meio ambiente, de orientação sexual, e na própria forma de atuação da democracia.

A humanidade, desde o Renascimento, vem em processo progressivo de superação do medo, em especial, do medo do conhecimento, e é cada vez menos possível barrar a capacidade de compreensão por meio da força e da brutalidade, ou pela imposição de medos, como se realizou, em nível mundial, na década de 30, na cruzada contra os “comunistas”, reproduzida no Brasil em vários momentos históricos (1935, 1964 e 2015…).4

A questão é que embora seja verdade que quanto mais se sabe mais se descobre que pouco se sabe, quanto mais se conhece mais se tem condições de conhecer, em virtude das correlações e das contradições reveladoras que vão sendo descortinadas.

Veja-se, por exemplo, o que se passou com a última manifestação da CNI – Confederação Nacional da Indústria, que foi uma autêntica aula de marxismo.

Disse o Presidente da CNI5 que para recuperar a competitividade das empresas seria preciso aumentar o limite do trabalho de 44 para 80 horas semanais. Verdade que depois reconsiderou a fala para esclarecer que fazia menção ao limite de 60 horas semanais.6

Ora, o que o Presidente da CNI fez foi demonstrar que domina muito bem o conceito básico do funcionamento do sistema capitalista, à luz da teoria marxista, da mais-valia absoluta, que representa estender a jornada de trabalho até o ponto em que o valor pago a título de remuneração não alcança a totalidade das horas trabalhadas, permitindo que o trabalhador produza capital excedente, o qual é apropriado pelo capitalista. A mais-valia existirá, por certo, na exploração do trabalho modo de produção capitalista, pois sem ela não se efetiva a mágica do capital de gerar capital, mas quanto menor a jornada menor o excedente, mesmo que com o incremento da mais-valia relativa, que é a intensificação do trabalho dentro da mesma jornada. O fato é que estender a jornada como meio de conferir maior benefício econômico para as empresas, partindo do pressuposto de que o salário não remunera a integralidade do capital gerado pelo trabalho, é um conceito marxista, que, como visto, é bem compreendido pelo Presidente da CNI.

Mas não para aí. O Presidente da CNI demonstra que conhece bem outra categoria básica do marxismo, que é o materialismo histórico dialético, afinal veio com essa proposta no momento preciso em que percebeu haver as condições materiais propícias, dadas as correlações de forças nos planos político e econômico, para conseguir impor uma perda à classe trabalhadora, travestida de colaboração, demonstrando, aliás, que domina também outro conceito importante, que é o da ideologia, consistente na utilização de argumentos falseados para fazer parecer que dizem respeito a todas as classes os interesses que pertencem apenas à classe dominante.

Dentro desse contexto, o Presidente da CNI pode ser visto, inclusive, como um revolucionário, afinal, como dizia Marx, a exacerbação das formas de exploração do trabalho pode constituir – não que deva assim ser projetado – elemento da profusão da consciência de classe, servindo de alimento à atitude revolucionária.

Assim, se pudesse ser levada a sério a tal Lei da Escola Sem Partido, a fala do Presidente da CNI não poderia ser produzida em sala de aula, vez que poderia ser considerada mais “perigosa” que a do próprio Marx, afinal trata especificamente da realidade nacional contemporânea, bem mais fácil de ser assimilada, portanto.

E se o espírito da lei fosse levado adiante, na lógica antidemocrática instaurada, o Presidente da CNI poderia até ser alvo de uma investigação da Polícia Federal, sendo que, na projeção do absurdo, haveria o risco de se ver instaurado um setor policial para apuração de condutas “antinacionais” ou “comunistas”, do qual ninguém escaparia, até porque se como diz o PL 867/15, o ensino deve ter por princípio a “neutralidade política, ideológica e religiosa”, o “pluralismo de ideias” e a “liberdade de consciência”; sendo “vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”, as professoras e professores ao passarem aos alunos uma visão liberal de mundo estariam obrigados a explicar (e sem críticas destrutivas) a esses mesmos alunos a teoria marxista.

Lembre-se, ainda, que como dita o PL, o professor “não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária” e “não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas” e deverá respeitar “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, e muitos pais e mães são marxistas, humanistas ou democratas e poderiam se insurgir contra a recorrente “doutrinação liberal”, que, de fato, nem liberal é, repercutindo apenas valores conservadores, medievais, oligárquicos, racistas, machistas, homofóbicos, egoístas, individualistas, intolerantes e neoliberais. Mas não se imagina que o farão, ao menos por meio da utilização de uma lei autoritária e repressiva, práticas que não devem ser estimuladas sob qualquer pretexto.

De todo modo, de um jeito ou de outro, o conhecimento e o saber continuarão derrotando a brutalidade e bestialidade!


Referências:

1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2016/07/stf-quer-investigacao-da-pf-sobre-quem-inflou-boneco-de-lewandowski.html, acesso em 11/07/16.
2 https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/07/1789999-censura-ao-pixuleko.shtml, acesso em 11/07/16.
3 https://www.brasildefato.com.br/2016/07/08/professora-da-rede-publica-e-afastada-ao-abordar-marx-em-sala-de-aula/, acesso em 11/07/16.
4 Vide, a propósito, o excelente filme, Trumbo: Lista Negra, do diretor Jay Roach, lançado no Brasil em 2016.
5 https://g1.globo.com/economia/noticia/2016/07/cni-elogia-meta-fiscal-de-2017-mas-se-diz-contra-aumento-impostos.html, acesso em 11/07/16.
6 https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/em-nota-cni-tenta-corrigir-declaracao-de-presidente-sobre-80-horas-semanais-de-trabalho-70242/, acesso em 11/07/16.

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Jorge Luiz Souto Maior participou, junto com os juristas Marcus Orione, Flávio Batista e Pablo Biondi, do debate de lançamento de A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, uma análise extemporânea de como o ímpeto revolucionário da classe trabalhadora aprisionou-se na armadilha do direito. Regulamentação da jornada de trabalho, férias remuneradas, reforma da dispensa, direito de greve, reconhecimento da organização sindical… E se todas essas históricas conquistas trabalhistas no âmbito jurídico representassem na verdade momentos fundamentais da captura política da classe trabalhadora? Confira a gravação integral do debate na TV Boitempo abaixo:

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

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