O Brexit, a crise e o pesadelo de Polanyi
O Brexit é um fenômeno ambivalente capaz de revelar as contradições não apenas do capitalismo europeu mas da própria globalização capitalista da últimas quatro décadas. Assim, um recuo para uma época em que tanto o fascismo quanto o Estado social estavam sendo formados talvez ajude-nos a refletir melhor sobre esta complexidade.
[Boris Johnson em campanha para o Leave]
Por Ruy Braga.
O voto britânico do dia 23 de junho superou todos os contratempos anteriores colhidos pela União Europeia às suas iniciativas. Grécia, Irlanda, Holanda, França, Suécia ou Dinamarca, nenhuma derrota anterior pode ser comparada ao Brexit. O voto britânico praticamente acabou com o projeto de integração europeu. Afinal, o Reino Unido não é apenas o segundo maior país da Europa, mas, é também, a principal praça financeira do continente. Os sismos serão sentidos por todos os lados: da Escócia à Catalunha, passando, principalmente, pela Itália.
Sem a presença dos ingleses, a União Europeia ficou parecida com um pacto franco-germânico costurado para impor a austeridade financeira e aprofundar a exploração da força de trabalho dos países do sul e do leste do continente. A sensação de colapso iminente do projeto europeu deixada no ar pela decisão dos britânicos alimenta-se, sobretudo, da encruzilhada na qual o continente se meteu quando decidiu que para garantir a estabilidade do euro qualquer sacrifício era válido, inclusive, destruir o Estado social.
Em grande medida, a vitória do Leave foi interpretada como o resultado da combinação do aumento do ativismo dos “eurocéticos” no interior do Partido Conservador com o crescimento do UKIP. É importante acrescentar que o conservadorismo, neste caso, possui um duplo sentido: preservar o Reino Unido dos efeitos socialmente deletérios trazido pela crise dos refugiados – “retomar o controle das fronteiras”, conforme a expressão usada pelos partidários do UKIP –, mas, também, defender a ilha do desmanche neoliberal do Estado social praticado por Bruxelas – não nos esqueçamos dos milhares de eleitores do Partido Trabalhista oriundos da classe trabalhadora que também votaram favoravelmente ao Leave.
Em síntese, o Brexit é um fenômeno ambivalente capaz de revelar as contradições não apenas do capitalismo europeu, mas, em certa medida, da própria globalização capitalista da últimas quatro décadas. Assim, talvez um recuo no tempo, isto é, para uma época em que tanto o fascismo quanto o Estado social estavam sendo formados ajude-nos a refletir melhor sobre esta complexidade. A popular comparação entre a crise de 2008 com a crise de 1929 nos leva à transição dos liberais anos de 1920 para uma “revolucionária” década de 1930.
Aos olhos de Karl Polanyi, por exemplo, um dos principais analistas do período, o fascismo, o socialismo soviético e o fordismo estadunidense foram respostas da sociedade ao terremoto social produzido pela tentativa utópica do liberalismo de estabelecer um sistema de mercado auto-regulado nas décadas anteriores: “A história da civilização consistiu, na sua maior parte, em tentativas de proteger a sociedade contra a devastação provocada pela economia de mercado.”1
Da mesma forma que Polanyi percebeu o avanço descontrolado da mercantilização sobre as mercadorias “fictícias”, isto é, o trabalho, a terra e o dinheiro, como a grande ameaça à reprodução da humanidade, ele também identificou no contramovimento da sociedade aos avanços do mercado o antídoto para o envenenamento do corpo social. Para Polanyi, as reações regressivas, como os diferentes fascismos europeus, por exemplo, seriam progressivamente substituídas pelo Estado social democrático. Ao fim e ao cabo, a incompatibilidade entre a mercantilização e o contramovimento destruiria a utopia de um sistema auto-regulado pelas forças abstratas do mercado: “Em retrospecto, nossa época terá o crédito de ter visto o fim do mercado auto-regulável.”2
Alegre engano. Sabemos como o advento do neoliberalismo nos anos 1980 e a globalização financeira dos anos 1990 transformaram o sonho polanyiano em um verdadeiro pesadelo. Na verdade, a função principal do intervencionismo estatal identificada pelo sociólogo húngaro, isto é, a de reverter a aniquilação da produtividade do solo e dos produtores trazida pela precificação da terra e do trabalho, teve suas bases sociais solapadas pelo enfraquecimento da regulação estatal trazida pela combinação do neoliberalismo com a globalização econômica.
Por isso, é totalmente impossível que o Brexit represente uma alternativa a esta verdadeira monstruosidade imperialista que é a União Europeia. Apenas um contramovimento em escala global seria capaz de fazer frente aos desafios levantados pelo neoliberalismo, pela globalização e pela financeirização. No entanto, onde buscá-lo? Quais suas características contemporâneas? Evidentemente, não existem respostas simples para estas perguntas. No entanto, se as conclusões às quais Karl Polanyi chegou na década de 1940 estavam erradas, parte considerável de seu diagnóstico crítico a respeito da mercantilização é ainda útil.
Em especial, a tese segundo a qual o contramovimento se propõe a enfrentar a mercantilização dos fatores de produção, isto é, o trabalho e a terra. De fato, se há uma lição a ser aprendida com a atual crise é que as inquietações sociais “de tipo polanyiano”, ou seja, as reações dos subalternos contra os efeitos da mercantilização do trabalho e da terra são mais atuais que nunca. O problema é que não há garantias de que essas reações assumirão uma dimensão progressista. Muito menos que serão capazes de criar um contramovimento em escala global.
Alguns resultados da retomada do ativismo político dos subalternos, tanto na Europa quanto no Sul global, são, sem dúvidas, promissores. Porém, eles são ainda muito frágeis e imaturos. No Sul da Europa, por exemplo, a região mais atacada pela austeridade, o Podemos sofreu recentemente um importante revés eleitoral. E, apesar da vitória política progressista que foi a formação do governo socialista de António Costa, é evidente que não pode haver uma solução estável para o Estado social português nos marcos da austeridade imposta por Bruxelas.3
Aliás, Portugal é um bom exemplo do verdadeiro beco sem saída para onde a política nacionalista fatalmente conduz os trabalhadores. Se a crise econômica iniciada em 2008 atingiu a Europa em 2009, foi o jovem precariado português, antes dos Indignados espanhóis, que primeiro se mobilizou contra as medidas de austeridade impostas por Bruxelas.4 A partir de sucessivas ondas de protestos, o movimento dos precários foi capaz de desafiar a passividade tanto de governos como dos sindicatos, assegurando, finalmente, o apoio eleitoral que viabilizou um governo anti-austeridade.
No entanto, o revés do Podemos na Espanha, além da trágica solução da crise grega somada à desorganização da esquerda na Itália, deixou os combativos portugueses sem o devido amparo às suas iniciativas de restaurar a proteção trabalhista e conter a sangria financeira do país. Em Portugal, a inquietação polanyiana com a mercantilização do trabalho foi eficiente para formar um governo. Mas, insuficiente para encontrar uma solução estável para o Estado social no país.
Quando analisamos o fluxo da crise de 2008, percebemos que em diferentes países e regiões do globo um padrão semelhante tem se revelado: para onde vai a crise, a rebeldia do precariado vai atrás. Após a desaceleração chinesa, o superciclo das commodities chegou ao fim, atingindo duramente a economia sul-africana, por exemplo. Em reação, é possível identificar uma verdadeira “rebelião dos pobres”, para usarmos a expressão de Peter Alexander, orientada pela luta contra a mercantilização da terra e dos serviços públicos, somada à revolta com o aumento do endividamento das famílias trabalhadoras pobres no país.5 De fato, a popularidade dos políticos do ANC (Congresso Nacional Africano) encontra-se em seu nível historicamente mais baixo.
Ainda assim, mesmo com o aumento inédito para o período pós-apartheid dos níveis de mobilização política do precariado, não há uma solução alternativa ao neoliberalismo em gestação. Ou seja, não há nem mesmo um esboço de contramovimento à globalização sendo gestado no horizonte sul-africano. Aliás, neste caso, até mesmo falar em defesa do Estado social já seria problemático, pois, diante da realidade da crise econômica e do aumento acentuado do desemprego, os dados etnográficos apontam para uma verdadeira implosão de qualquer esperança na cidadania salarial. Não é coincidência que os eventos de violência xenofóbica tenham se multiplicado no país desde 2009.
Ainda que, em razão das medidas econômicas adotadas pelos governos de Lula e de Dilma Rousseff, a crise que encerrou o superciclo das commodities tenha chegado com um certo atraso ao Brasil, em menos de três anos experimentamos uma sincronização alucinante dos ritmos brasileiros em relação aos demais países do sul da Europa e do Sul global. Desde Junho de 2013, o país passou a viver uma intensificação da mobilização do precariado, em especial, dos setores mais jovens, presente tanto em grandes protestos nas ruas, quanto na multiplicação do número de greves.
Na medida em que o golpe palaciano de Temer objetiva exatamente radicalizar a mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro, iniciada, diga-se, pelos governos petistas, eliminando direitos trabalhistas e aprofundando a espoliação social pela banca, a mobilização do precariado tende a se intensificar. Ainda que a formação da Frente Povo Sem Medo – sem dúvidas, a principal iniciativa política protagonizada por setores que representam o precariado brasileiro – traga algum alento ao panorama brasileiro, ela é ainda muito frágil para liderar uma alternativa ao neoliberalismo temerário.
Uma lição que devemos tirar da crise atual é que não há alternativas ao neoliberalismo que evitem a internacionalização das mobilizações do precariado global. E isto não acontecerá espontaneamente, como o conceito polanyiano de contramovimento insinua. Trata-se de um processo de criação política que, necessariamente, implica a superação dos limites impostos pelo Estado-nação. Por isso é tão necessário reinventar a prática política dos sindicatos e dos partidos ligados à classe trabalhadora.
Seja na Inglaterra, em Portugal, na África do Sul ou no Brasil, as forças sociais progressistas não conseguiram ir além do horizonte dominado pelos respectivos Estados nacionais. Daí a miséria das elaborações estratégicas que tem prevalecido nos setores da esquerda, na Europa ou no Sul global. Aliás, para que serviria um debate estratégico quando alcançar o controle do aparelho de Estado por meio de eleições tornou-se o único caminho? Ou mesmo conservar o controle do aparelho sindical para influenciar os governos nacionais em questões ligadas à criação de empregos é algo universalmente aceito?
Quando a crise econômica global nos relembra diuturnamente que não existem soluções nacionais para as contradições do capitalismo, faz-se necessário reinventar o projeto internacionalista dos trabalhadores. Afinal, por mais que o precariado consiga mobilizar-se politicamente em escala global, este projeto não surgirá de maneira espontânea do interior de suas fileiras. O otimismo polanyiano no contramovimento ao liberalismo merece ser substituído pela fórmula gramsciana: “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”.
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NOTAS
1 Karl Polanyi. A grande transformação. Rio de Janeiro, Campos, 2000, p. 58.
2 Idem, ibid., p. 173.
3 A atual crise financeira do país, por exemplo, têm relembrado tristemente a todos os correntistas portugueses que simplesmente não existem garantias suficientes para seus depósitos e poupanças. Aliás, a própria desnacionalização dos bancos portugueses é uma prova das limitações nacionais em termos de compromissos pactuados.
4 No dia 12 de Março de 2011, realizou-se um enorme protesto convocado nas redes sociais e não vinculado a partidos políticos ou sindicatos que reuniu o maior número de manifestantes nas ruas das cidades portuguesas desde a Revolução do dia 25 de Abril de 1974. Cerca de 500 mil pessoas participaram nas manifestações da “Geração à rasca” por todo o país, reivindicando melhores condições de trabalho e o fim da precariedade laboral.
5 Protesto e levantes em comunidade pobres multiplicaram-se, somando-se a um histórico ciclo grevista protagonizado por setores tradicionais do operariado sul-africano, como os mineiros, por exemplo. O ativismo dos subalternos pressionou os sindicatos e a coalização política dominante ao ponto de gerar rupturas inesperadas, como a saída do NUMSA, o todo-poderoso sindicato dos metalúrgicos da África Sul, do COSATU, a principal federação sindical do país.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores dos livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, Carta Maior, 2013) e Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
“No entanto, se as conclusões às quais Karl Polanyi chegou na década de 1940 estavam erradas, parte considerável de seu diagnóstico crítico a respeito da mercantilização é ainda útil.”
Eu discordo dessa premissa. As conclusões de Karl Polanyi estavam erradas justamente porque o seu diagnóstico estava errado. Se um diagnóstico é errado, então ele não pode ser útil (exceto, é claro, no momento em que ele é descartado).
A começar pelo que ele chama de “mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro” (mercado autorregulado, a utopia liberal) em oposição aos mecanismos “estatais” supostamente “anticíclicos” (fascismo, fordismo, socialismo soviético):
Em primeiro lugar, trabalho, terra e dinheiro, no capitalismo, não são mercadorias fictícias, mas sim mercadorias reais, concretas, e essenciais para a própria existência do capitalismo. N’O Capital (livro I), Marx demonstra por a + b que a origem do dinheiro está na mercadoria, que a origem do capitalismo está na ubiquidade da mercadoria, e que a mercadoria só se torna ubíqua quando o trabalho humano se torna força de trabalho abstrata (mercadoria). Ele também cita a importância da reconfiguração do uso da terra nas origens do capitalismo na Inglaterra.
Em segundo lugar, o Estado é uma superestrutura cuja função é proteger, reforçar e garantir a hegemonia burguesa, e não de proteger a classe trabalhadora da “mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro”. O welfare state (que só existiu em alguns países da Europa Ocidental) foi criado para proteger a ordem capitalista, não para melhorar a vida da classe trabalhadora. A partir do momento em que ele não servia mais para proteger a hegemonia burguesa, foi prontamente desmantelado.
Na minha opinião (de alguém que não é especialista em Polanyi, logo que não vale muita coisa), a leitura que Karl Polanyi fez do período é a versão sociológica da que Keynes fez no campo da economia. Isso não melhora a situação do pensador húngaro, pois o diagnóstico de Keynes também estava errado.
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Só tem idiotice neste blogue tosco. Aqui é Brasil, nunca sera Cuba ou Venezuela.
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