Brexit: o Reino Unido sequestrado pela extrema-direita?

Os eleitores do Partido da Independência Britânica foram fruto da decepção com o Labour no combate à austeridade.

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Por Edemilson Paraná e Hugo Albuquerque.

Dia 23 de Junho de 2016, uma data para entrar na História: em consulta pública convocada para decidir sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, os britânicos decidiram sair do bloco por ligeira maioria, em uma votação com quórum incomum para os padrões locais. Foi, sem sombra de dúvida, o fato mais relevante da história da integração europeia.

A leitura mais elementar aponta para uma vitória da extrema-direita xenofóbica britânica ou, quem sabe, um triunfo da ala “mais à direita” do Partido Conservador – o premiê David Cameron convocou a votação, mas fez campanha contra a saída confrontando alguns correligionários – , contudo, à luz de uma análise mais detida, ambas as afirmações dificilmente se sustentam. Vejamos.

De todos os partidos representados na Câmara dos Comuns, apenas dois apoiaram o Brexit: a do Partido da Independência Britânica (UKIP, na sigla em inglês, a principal legenda de extrema-direita) e o Partido Unionista Democrático (DUP, na sigla inglês, um partido norte-irlandês pró-Inglaterra e eurocético), as quais totalizam o “gigantesco” número de 9 deputados em meio a 650.

Nigel Farage, líder da extrema-direita, pode estar cantando vitória, mas as intenções de voto para seu partido inclusive caíram depois do Brexit – hoje o UKIP está mais próximo dos 15% de intenção de votos, enquanto antes do Brexit, caminhava mais próximo do 20%, muito longe da votação pela saída da União Europeia.

Como dito, se alguns deputados conservadores apoiaram o Brexit, a ala majoritária representada pelo premiê Cameron, demissionário em virtude do resultado, foi contra – e o partido como um todo se manteve neutro. Se o ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, aparece como a cara mais conhecida dos tories pró-Brexit, com a liderança da “ala conservadora que venceu”, a questão é investigar quantos votos ele poderia ter conseguido.

Pois bem, temos de lembrar que Johnson acabou de ver seu candidato à sucessão perder as eleições de Londres para o Labour – representado pelo muçulmano Sadiq Khan – e, também, o Brexit também perder na capital, o que consistiu na sua segunda derrota em menos de dois meses – nada animador para um político regional. Aliás, se nas municipais londrinas os tories tiveram 43% dos votos, no plebiscito, eles tiveram 40%, uma queda de votos, por sinal.

Como poderia então o Brexit ter prosperado sem o apoio de nenhuma liderança britânica expressiva? O começo da resposta passa pela adoção de uma premissa: pelas evidências todas, estamos diante de um voto anti-establishment, uma recusa social à União Europeia que não tem ainda uma forma política definida, mas que se expressou no Brexit.

Essa tendência esteve presente na ascensão da liderança, ora abalada, de Jeremy Corbyn no comando do Partido Trabalhista, o Labour. Em Setembro de 2015, na esteira da derrota do partido nas eleições parlamentares, Corbyn foi eleito líder do Labour, e da oposição, sem o apoio de nenhuma das grandes lideranças trabalhistas em atividade: foram 59% dos votos, em eleição na qual não apenas filiados como também apoiadores puderam votar.

Na ocasião da eleição de Corbyn, isso foi retratado como uma das maiores surpresas ocorridas na política britânica desde os anos 1970. Mal sabiam o que viria. Mas nem os britânicos sabiam o que lhes aguardava como, ironicamente, o próprio Corbyn não soube ler a tendência que o levou ao poder – e o fez, agora, sofrer uma moção de censura dos deputados de sua bancada.

Antes disso, não custa lembrar que durante grande parte do primeiro mandato de David Cameron, o partido mais popular do Reino Unido foi o Trabalhista. Tirando a lua-de-mel dos primeiros meses, os trabalhistas então liderados por Ed Miliband – que antes de Corbyn já marcava uma opção mais à esquerda do partido – apareceram durante anos como o partido líder nas pesquisas.

Foi a partir do início de 2013 que a liderança trabalhista começou a cair nas pesquisas e, vejamos que curioso, foi aí que a extrema-direita começou a pontuar de maneira mais expressiva. Não, os eleitores do UKIP não vieram de uma máquina do tempo que os trouxe direto dos anos 1930 para cá, eles foram fruto da decepção com o Labour no combate à austeridade.

E David Cameron, uma espécie de Tony Blair conservador, jamais foi um líder forte e, para o seu horror, terminará nos livros de história com um novo Chamberlain. Ele ganhou as eleições de 2015 se vendo como o menos pior, revertendo uma tendência de voto que lhe era francamente negativa, sobretudo pela falta de uma oposição crível.

Ironias do destino é a maneira como Cameron, com péssimas políticas para Escócia, conseguiu reavivar um separatismo até então dormente: os escoceses quase saíram do Reino Unido em plebiscito para tanto, se reuniram em uma grande agremiação nacional que fez firme participação parlamentar e agora, depois de votarem contra o Brexit, ameaçam fazer um novo plebiscito de saída. O Brexit, no caso escocês, é a recusa à influência inglesa.

Do caso escocês duas ironias britânicas: a primeira, que a União Europeia sequer deu garantias que iria aceitar o país caso ele tivesse se separado do Reino Unido em 2014 – a segunda, que hoje a Escócia está fora da União Europeia por culpa do Reino Unido. Agora, escoceses querem sair do Reino Unido para poder reingressar, desta vez como Estado soberano, na União Europeia, muito embora ainda não tenham combinado com os russos, ou melhor, com os europeus. Outro fato memorável sobre a Escócia é que se Cameron desagradou os escoceses, por outro lado, tampouco o Labour se fez presente: grande parte de seus membros na Escócia aderiram ao Partido Nacional Escocês (SNP, em inglês), uma legenda nacionalista e separatista com programa de centro-esquerda.

Novamente, a presença da esquerda britânica pela sua ausência se fez estridente. A partir daí é possível começar a pensar a questão do anti-establishment no país.

Uma esquerda refém do europeísmo?

Uma das conclusões que as informações acima mobilizadas apontam é que o centro político, o chamado “voto médio”, apresentado por décadas como a âncora de estabilidade política para a implementação de programas neoliberais em todo mundo, está em processo de franca desintegração. Vale para o Reino Unido.

Vale para outros lugares da Europa e do mundo. É certo que tal desintegração guarda consequências ainda imprevistas, e talvez até mesmo tenebrosas. Mas isso ocorrerá tão mais as esquerdas demorem a se conectar com o sentimento anti-establishment e agir adequadamente de modo a influenciá-lo.

Cegos por um conceito de Europa ideal, inúmeros setores da esquerda têm se negado a encarar no fundo dos olhos a besta da Europa real. Mas que Europa real é esta?

Uma união econômica montada com o objetivo manifesto de se “globalizar”, o que significa, sob a retórica liberalizante, abaixar os salários da Europa ocidental ao nível do leste europeu de modo a competir com as exportações chinesas – algo, de certa forma bom, para os exportadores “eficientes” do norte, e terrível para a Europa latina. No torvelinho da reestruturação produtiva, privatização e financeirização acelerada de tudo, a espiral de déficits e dívida destes sob o comando dos grandes bancos e instituições financeiras daqueles fecha uma conta que, reexaminada no médio prazo, simplesmente não bate.

Sob tal lei de ferro, a União é articulada, assim, como uma moeda sustentada por um banco central forte e “despolitizado” (sem Estado), que, por sua vez, dirige à manu militari vários Estados desprovidos de banco central. Uma união monetária, em suma, sem uma correspondente união fiscal (e que, ao mesmo tempo, priva os Estados-membros de sua já tímida liberdade de ação fiscal). Enquanto uma das partes da Europa acumula superávits, a outra não está autorizada pelas rígidas regras em vigência a manter déficits.

Assim, como nos chama a atenção Mark Blyth, “a única coisa que um dos lados pode fazer é contrair permanentemente suas economias para permitir que o outro faça muito dinheiro vendendo BMWs”. As monocórdicas políticas recessivas de austeridade passam a dar o tom.

Longe de combatê-lo, lamentavelmente, a centro-esquerda europeia atuou para promover esse “novo consenso” nas últimas décadas. O discurso em prol da integração neoliberal da Europa, sustentado eleitoralmente no “voto mediano” e politicamente nos donos do dinheiro, vendeu o admirável mundo novo da “nova economia”, aquele que seria capaz de integrar totalmente os trabalhadores no mundo dos serviços, do conhecimento e da informatização, enquanto seguiria capaz de ofertar moradia, saúde, educação e serviços públicos privadamente, pela mão eficiente do mercado.

Descendo especificamente aos britânicos, como certa vez lembrou a senhora Margaret Thatcher: quem controla a taxa de juros e a política monetária na Europa, controla a política na Europa. A dama de ferro não estava de todo errada, pelo contrário: conforme aponta Yanis Varoufakis, o Reino Unido foi, de fato, ainda que mantendo sua própria moeda, deixado à própria sorte no processo de integração europeia conduzido sob direção da Alemanha. Os padrões, regras, leis e dispositivos do mercado comum são todos decididos em Bruxelas.

Com o modelo fazendo água, a revolta emerge. A ojeriza às elites econômicas e políticas – aquelas que, ao invés de representarem legitimamente os interesses populares, atentam diretamente contra estes – se objetiva em negação à tecnocracia não eleita, não representativa e anti-democrática atualmente governante na Europa.

Apesar da forte campanha de medo, o eleitorado britânico votou pelo Leave, inclusive em zonas populares e tradicionalmente progressistas. As elites econômicas do Estados Unidos e FMI, do Banco Central Europeu e das classes dirigentes foram militantes em seu esforço de manter o Reino Unido no clube de negócios. As elites militares da OTAN também deixaram claro que mantê-lo na União Europeia seria fundamental para o fortalecimento da aliança. Para todos eles, o Brexit representa agora um grande desafio.

Se a culpa é centralmente de todos eles, é também do lamentável governo socialista de Hollande, da triste capitulação da Grécia e da inépcia de parte da esquerda radical em toda a Europa, ainda refém de um europeísmo (ou eurocentrismo) pouco objetivo em sua proposição e ação política.

Assim, vemos a direita nacionalista e xenófoba, e não a esquerda radical, se apresentar como força política cada vez mais expressiva na suposta proteção dos interesses da classe trabalhadora, capaz de captar e mobilizar suas pulsões políticas.

Vimos que essa é apenas uma meia verdade. O fantasma do fascismo é real, mas não pode ser superestimado. Grande parte do problema deve-se também à postura vacilante da esquerda que teve de explicar, sem sucesso, como combater as falidas políticas de austeridade e, ao mesmo tempo, permanecer nessa Europa. A falta de clareza política na apresentação de uma saída alternativa está cobrando um preço alto.

A armadilha do europeísmo – ou do eurocentrismo – não pode paralisar a esquerda europeia. Transformar a Europa real em Europa ideal clamando por uma luta “por dentro e contra” a União – que, do ponto de vista estrutural, é uma gaiola de ferro de ataque aos direitos sociais sob a direção de uma Alemanha semi-imperial – não tem convencido, uma vez que a ideia de disputa da União Europeia carece de bases materiais.

Se nem todo nacionalismo é fascista, nem todo cosmopolitismo é progressista. Mediações são necessária nesse ponto. O internacionalismo de esquerda não pode se confundir com a colonização neoliberal interna e externa à Europa.

O momento pede dura rejeição do neoliberalismo europeu junto a um combate aberto a posições racistas e xenófobas. Para isso, é fundamental a mobilização ativa contra a austeridade em nível municipal, regional, nacional e europeu – um combate frontal à troika e ao eurogrupo, em todas as frentes.

A construção de uma agenda europeia ampla, alternativa e progressista, baseada na solidariedade internacional, pede, então, a superação do europeísmo ingênuo. Os problemas são conjuntos, mas também tem expressões políticas, culturais e históricas particulares, localizadas no tempo e no espaço. A verdadeira construção de uma unidade entre os países e povos da região talvez passe pela necessidade de encarar de vez e a sério a possibilidade dessa União Europeia em franca desintegração não poder ser disputada por dentro.

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Leia também, sobre o Brexit, “Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit“, de Slavoj Žižek e “Onde está a Inglaterra: no Brexit ou no brejo?“, na coluna de Flávio Aguiar, no Blog da Boitempo.

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Edemilson Paraná é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), autor do livro A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional (Insular, 2016). Dele, leia também no Blog da Boitempo os artigos “Da direta à esquerda: a crise diante da falta de um projeto de país“, “O Brasil no pêndulo das elites: entre liberalismo submisso e desenvolvimentismo autoritário“, “Disputar o povão: neopentecostalismo e luta de classes“, “As raízes da escalada conservadora atual” e “Lula, o cerberus da política brasileira“.

Hugo Albuquerque é jurista, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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2 comentários em Brexit: o Reino Unido sequestrado pela extrema-direita?

  1. Que texto ESPETACULAR. Análise mais lúcida é interessante que li, em português, até o momento.

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  2. Antonio Elias Sobrinho // 02/07/2016 às 12:37 pm // Responder

    As políticas neoliberais avançaram no mundo inteiro, a partir das décadas de 1970 e 1980, sob iniciativa dos EUA e da Inglaterra, que usaram o Chile de Pinochet como o primeiro laboratório. Esse processo foi avançando, num período mais duro da política mundial, com o endurecimento da Guerra nas Estrelas, o fortalecimento do armamentismo, a preparação para a guerra, a crise do socialismo real e sua queda. A tudo isso, as esquerdas sendo imobilizadas e, em alguns casos se escondendo ou mesmo até colaborando. Assim sendo, o curso da globalização, hegemonizado pelas grandes potências, à serviço das finanças foram avançando e hoje as possibilidades de reação por parte das esquerdas são precárias, até porque seus instrumentos tradicionais como partidos e sindicatos estão esvaziados e sem discursos. A tragédia só não é maior porque as forças que projetaram e sustentaram as políticas neoliberais estão se esfacelando e perdendo fôlego. Então, é urgente a criação e o fortalecimento de uma nova de fazer política.

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