Safatle: Os fundamentos da filosofia política de Žižek
Chegou a primeira edição brasileira do aguardado "O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política", obra seminal de filosofia política de Slavoj Žižek
Por Vladimir Safatle.*
O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política é uma das principais obras de Slavoj Žižek, ao lado de A visão em paralaxe. Tirando as consequências de seu projeto filosófico-psicanalítico no campo político, ele procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito. Trata-se de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo. Ou seja, Žižek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do ‘humano’ e cujos interesses não permitiam ser compreendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena do político uma subjetividade ‘inumana’ por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira ‘terrorista’ os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma..
Assim, se Žižek pode olhar para Robespierre e dizer que “o passado terrorista deve ser aceito como nosso”, não se trata de fazer apologia voluntarista da violência política, mas de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa? Diga-se de passagem, um problema apontado de maneira clara pela primeira vez por Hegel já em suas leituras sobre (e a coincidência não é aqui casual) o terror jacobino. A sagacidade de Žižek , apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistribuição de riquezas e de generalização de direitos.
Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se este impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com consequências políticas nefastas é, no fundo, dirá Žižek , maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia. Princípios que não têm força para impedir, por exemplo, processos como a generalização do estado de exceção como prática ‘normal’ de governo. Maneira de, no limite, reduzir a política a uma “assustadora reunião de homens assustados” unidos não mais pela possibilidade de ‘reinventar a ordem da vida cotidiana’, mas apenas pelo medo. Medo em relação ao crime, ao terrorismo, aos imigrantes, ao Estado excessivo com seus impostos, às catástrofes ecológicas.”
Acaba de chegar a primeira edição brasileira do aguardado O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política, de Žižek. Nele, o filósofo esloveno apresenta um verdadeiro manifesto político da subjetividade cartesiana, defendendo sua reavaliação crítica como ponto de apoio indispensável para a reformulação de um autêntico projeto político de esquerda. Por meio da análise e contraposição das ideias de Hegel, Lacan, Heidegger, Kant, Butler e Freud, entre outros, o autor revela, por trás do cogito ergo sum [penso, logo existo], o grau zero radical da política emancipatória como o ponto da intersecção negativa entre ser e pensar.
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“O sujeito incômodo é, sem dúvida, uma das grandes realizações de Žižek.” – Adam Kotsko
“A argumentação de Slavoj Žižek é sutil, espirituosa e apaixonada, e este livro confirma sua condição de um dos pensadores mais inovadores e empolgantes da esquerda.” – Times Literary Supplement
“O balanço mais sistemático da teoria de Žižek até o momento, e tão rico em implicações para a teoria e a política contemporâneas que vai não apenas agradar aos seus inúmeros fãs, mas atrair um público mais amplo.” – Political Studies
Leia abaixo a orelha do livro, assinada por Gabriel Tupinambá
O sujeito incômodo é uma das principais obras do filósofo esloveno Slavoj Žižek. Aqui o leitor encontrará tanto um extenso acerto de contas com a tradição anti-cartesiana, que, em muitos sentidos, ainda orienta nosso pensamento filosófico e político, como um confronto renovado – e entusiasmante – com os althusserianos que tentaram reinventar a política universalista à luz do multiculturalismo vigente, passando por uma vigorosa defesa do potencial político da psicanálise contra as duras ressalvas de seus críticos pós-modernos.
No entanto, para entender por que esta obra é um ponto de parada obrigatório para qualquer interessado na complexa trajetória do pensamento žižekiano, é preciso considerar seu lugar no conjunto da obra do autor. Originalmente publicado em 1999, O sujeito incômodo faz fronteira entre duas grandes sequências no pensamento do filósofo. Num primeiro momento, Žižek buscava reler a filosofia hegeliana à luz da teoria psicanalítica, desenvolvendo a partir daí uma nova teoria da ideologia e, em interlocução principalmente com Ernesto Laclau, propunha uma aliança com o projeto político da democracia radical. A partir da virada do século, numa segunda fase que se inicia com O absoluto frágil e – com algumas reformulações dignas de nota – segue até os dias de hoje, seu posicionamento em relação à “psicanálise realmente existente” se tornou cada vez mais crítico, seu hegelianismo ganhou um caráter mais propositivo e seu principal interlocutor se tornou o filósofo Alain Badiou. Conjuntamente, os dois se lançaram então numa defesa apaixonada da hipótese comunista.
Vemos assim que o “incômodo” ao qual o título desta obra faz referência incomodava também o próprio Žižek, que não atravessou incólume sua escrita. Longe de ser apenas mais um livro na vastíssima obra do filósofo esloveno, O sujeito incômodo nos permite acompanhar a transformação essencial em seu pensamento. Transformação que atrela a defesa do universalismo à retomada de um projeto político de emancipação da humanidade e que está maravilhosamente sintetizada na paráfrase que abre a introdução do livro: “Um espectro ronda a comunidade acadêmica ocidental… o espectro do sujeito cartesiano”.
Leia um trecho do livro
“A subjetividade cartesiana continua a ser reconhecida por todas as forças acadêmicas como uma tradição intelectual poderosa e ainda ativa; É tempo de os partidários da subjetividade cartesiana exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto filosófico da própria subjetividade cartesiana à lenda do espectro da subjetividade cartesiana. Este livro esforça-se para reafirmar o sujeito cartesiano, cuja rejeição compõe o pacto silencioso de todas as áreas conflitantes no mundo acadêmico atual: apesar de todas essas frentes estarem oficialmente envolvidas numa batalha mortal (habermasianos versus desconstrucionistas, cognitivistas versus obscurantistas da Nova Era…), todas estão unidas na rejeição do sujeito cartesiano. A questão, obviamente, não é retornar ao cogito sob a roupagem com a qual essa noção dominou o pensamento moderno (o sujeito pensante autotransparente), mas trazer à tona seu avesso esquecido, o núcleo excessivo desconhecido do cogito, que vai além da apaziguadora imagem do Si transparente.” – Slavoj Žižek
* Texto extraído de resenha originalmente publicada no suplemento de cultura do jornal O Estado de São Paulo, em 10 de janeiro de 2009, sob o título “A invenção do terror que emancipa“.
Lendo o texto da orelha do livro fiquei com uma dúvida: é anti-cartesiana mesmo ou seria cartesiana a tradição a que se refere o autor do texto, logo no início, Gabriel Tupinambá?
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Boa pergunta, Ivone!
É anti-cartesiana mesmo. Na verdade, o Žižek parte da constatação de que boa parte das correntes do pensamento contemporâneo, por mais diversas que possam ser, se unem em sua rejeição ao sujeito cartesiano. Nas palavras dele, “a questão, obviamente, não é retornar ao cogito sob a roupagem com a qual essa noção dominou o pensamento moderno (o sujeito pensante autotransparente), mas trazer à tona seu avesso esquecido, o núcleo excessivo desconhecido do cogito, que vai além da apaziguadora imagem do Si transparente.”
Boa leitura! 🙂
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Republicou isso em Seressência.
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Quando o livro foi escrito? Li em algum lugar que dizia ter sido escrito em 1999.
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