B. Kucinski escreve sobre o novo romance de Ivone Benedetti

"Cabo de guerra" narra a passagem da ditadura ao Brasil contemporâneo pelos olhos e contradições de um traidor.

kucinski cabo

“Na diminuta estante da ficção ambientada nos anos de chumbo, Cabo de guerra destaca-se por erigir em personagem central um ‘cachorro’.” Assim o escritor Bernardo Kucinski descreve o mais novo romance de Ivone Benedetti, autora Finalista do Prêmio SP de Literatura em 2010. A obra, que acaba de chegar às livrarias narra a passagem da Ditadura ao Brasil contemporâneo pelos olhos e contradições de um traidorLançando inúmeras e incômodas as pontes entre passado e presente, entre realidade e invenção, o romance invoca fantasmas do regime militar brasileiro pela perspectiva ambígua de um homem com frágeis convicções transformado em agente infiltrado. Confira abaixo, o texto de orelha do livro, assinado por B. Kucinski, leia trechos inéditos do romance publicados em cadernos de cultura, assista ao Booktrailer do livro e, se for de São Paulo, não perca a noite de autógrafos do livro no Canto Madalena hoje às 19h. Mais informações ao final deste post! Boa leitura!

Leia a orelha do livro, assinada por B. Kucinski

Na diminuta estante da ficção ambientada nos anos de chumbo, Cabo de guerra destaca-se por erigir em personagem central um “cachorro”. Assim era designado pela repressão o militante da luta armada que, traindo seus companheiros, punha-se a seu serviço como espião. Simulando uma fuga da prisão, ou outro truque qualquer, o cachorro retornava a sua organização para coletar informações que passava a seu controlador. Poucas expressões do jargão da ditadura foram tão pertinentes quanto esta, de duplo sentido, exprimindo ao mesmo tempo subserviência canina e baixeza de caráter.

A formação de um cachorro, seu treinamento e sua reintrodução na organização de origem já como agente, tornou-se uma das mais sofisticadas operações dos órgãos de repressão, o polo oposto da sanguinária tortura. Infiltrados em quase todas as organizações clandestinas, os “cachorros” desempenhariam papel crucial na liquidação final dos militantes dessas organizações, decidida pelos militares a partir de 1973, ao se vislumbrar no horizonte o fim da ditadura. Liquidar de vez os militantes passa a ser a prioridade da repressão, ainda que às custas de expor a identidade dos seus “cachorros”. A forma utilizada foi a do “desaparecimento”. Os militantes eram sequestrados e assassinados à margem do sistema legal de repressão, e seus corpos dispostos de modo tal que jamais fossem encontrados.

O “cachorro” de Cabo de guerra é um tipo medíocre, que se deixa levar por qualquer um. Um pobre de espírito e um fraco de caráter. É mais por acaso do que por convicção que ele chega à luta armada e também por acaso se torna informante das forças de repressão. Nem foi preciso torturá-lo. A história é narrada em primeira pessoa por ele próprio, que intercala aos episódios da trama central, recordações de uma infância traumática, na qual testemunhou a morte violenta do pai. Sofre, por isso, surtos alucinatórios.

O título remete à disputa que se deveria dar na mente de um “cachorro” entre a força maligna que o leva à traição, alimentada basicamente pelo oportunismo e o instinto de sobrevivência, e uma suposta força contrária oriunda do impedimento moral de todo humano à traição e à desonra, mas quase inexistente no sinistro personagem deste Cabo de guerra e obviamente derrotada.

B. Kucinski.

Cabo.indd

Onde encontrar?

Cabo de guerra já está à venda em versão impressa e versão eletrônica (e-book) nas principais livrarias do país. Aí vão alguns links para compra:

Ivone Benedetti fala sobre o romance na TV Boitempo

A autora Ivone Benedetti veio à sede da Boitempo desempacotar Cabo de guerra e aproveitou para bater um papo com nossa equipe sobre o romance. Confira o resultado neste Booktrailer do livro que publicamos na TV Boitempo:

Leia trechos exclusivos do romance

Jornal Rascunho

Ivone_Benedetti_ilustra_FP_Rodrigues

Arte de FP Rodrigues para ilustrar o trecho de Cabo de guerra, publicado no Jornal Rascunho.

Frequentava outras reuniões além das do coronel. Não muitas. Os atos de apoio que me incumbiam eram simples, como aquele da entrega da pasta, que me marcou tanto, talvez por ter sido o primeiro. De resto, eram recados em pontos ou panfletagens à noite por bairros adormecidos. Daquela tarefa da igreja lembro sempre com vago malquerer, certa vergonha desenxabida. Entrar numa igreja em plena missa era reentrar no útero católico que me encapsulava mansamente na infância. Entrar feito fingido fiel, cometendo um ato ilegal, era uma traição. Pode ser razão suficiente para ter marcado: sentimento de culpa, fácil explicar. Fico nisso, não aprofundo. Porque não saberia justificar o tremor que ainda sou capaz de sentir quando lembro o canto que aquelas mulheres soltavam da garganta como quem solta pombos de gaiolas, voo canoro, forma de se dependurar do céu pela voz. Aquele adejo para o altíssimo teve em mim o peso do chumbo. Calou. Pode até ser certo sentimento de culpa. Mas um sentimento difuso, externo a mim, sombra que vela meu sono. Lembrança do medo que senti também pesa. De qualquer modo, nada que eu possa entender facilmente. Talvez seja uma coisa que eu só conseguiria compartilhar com minha irmã, se isso fosse possível.

Clique aqui para ler o trecho completo de Cabo de guerra publicado na sessão “Dom Casmurro” da edição #193 do Jornal Rascunho.

Jornal NEXO

“Eu era um forasteiro em São Paulo. Nessa situação, só as incertezas ganham consistência. Desculpas, desculpas… Outros forasteiros tinham certezas. Estes, por alguma razão, não devem ter sentido aqui a vertigem do esfarelamento, como eu senti. Arrancado do mundo estável de Nazaré, eu guardava da segurança uma lembrança vaga, embalos de infância, só. Aqui sempre fui exilado. Imagine-se um sujeito como eu metido numa guerra que não lhe pertence. Entrei nela sem fazer nada e nada fiz para sair. Foi tudo por via de empurrões. Quero dizer que quem faz guerras sempre se guia por algum tipo de trilho ou bitola. Eu não tinha nenhum. Os meus tinham ficado em Nazaré, debaixo de um trem preguiçoso, sem fôlego para a ladeira. No chão de São Paulo nunca achei nenhum, e os que via arrancados e jogados avenida da Liberdade acima me pareciam a verdadeira metáfora desta cidade. E de mim nela.”

Leia o trecho completo publicado no Jornal NEXO com o título “‘ – entre a traição e a sobrevivência”, clicando aqui.

Noite de autógrafos com a autora em São Paulo!

Na quarta-feira dia 15 de junho, a Boitempo e o Canto Madalena organizam noite de autógrafos com Ivone Benedetti para o lançamento de seu segundo romance, Cabo de guerra. O evento começa às 19 horas e tem entrada gratuita. Quem comprar um exemplar do livro tem direito a um vale chope, além de um autógrafo da autora!

Cabo.indd

2 Trackbacks / Pingbacks

  1. B. Kucinski escreve sobre o novo romance de Ivone Benedetti – Blog da Boitempo | BRASIL S.A
  2. E se estou vendo fantasmas? – Blog da Boitempo

Deixe um comentário