Ainda vale a pena ler J. D. Bernal, o sábio
Por José Paulo Netto.
No seu círculo de discípulos e amigos – dentre estes últimos, alguns grandes cientistas (Haldane, Joliot-Curie, Langevin) e artistas reconhecidos mundialmente (Picasso, Neruda, Nazim Hikmet) –, John Desmond Bernal (nascido na Irlanda em 1901 e falecido em Londres, em 1971) era chamado de Sage (sábio, em inglês). O conjunto de sua obra científica, de seu magistério, de seus estudos sobre a história da ciência e de seus ensaios filosóficos justifica a admiração que o cercou desde que, antes de completar os 25 de idade, desvendou a estrutura molecular do grafite. Com sólida formação matemática, destacou-se como físico (foi um pioneiro no estudo da física de materiais compósitos), marcou profundamente a cristalografia e a biologia do século XX e alguns pesquisadores o consideram o precursor da “ciência interdisciplinar”.*
Bernal deixou a Irlanda, cujo movimento independentista sempre apoiou, ainda criança. Aluno brilhante em Cambridge, iniciou ali a sua carreira acadêmica e, nos anos 1930, foi um dos líderes dos “cientistas vermelhos” – grupo de pesquisadores das ciências duras que se vincularam, de um modo ou de outro, ao marxismo, entre eles o bioquímico J. Needham (depois historiador, 1900-1995) e o biólogo J. B. S. Haldane (1892-1964). Já membro, em 1937, da Royal Society, Bernal transferiu-se de Cambridge para Londres: desde então, até 1968, quando se aposentou, foi docente do Birkbeck College.
A posição de Bernal entre os “cientistas vermelhos” é peculiar. Ingressou no Partido Comunista em 1923 e teve intensa militância até 1933 (com destaque para a sua atuação durante a greve geral inglesa de maio de 1926). Depois de 1933, porém, a sua vinculação formal com o Partido Comunista inglês (CPGB/Communist Party of Great Britain, fundado em 1920) foi suspensa. Mas Bernal continuou assumindo-se como marxista e comunista até seus últimos dias. Há várias hipóteses para este fato: se a partir de 1933 ele deixou de renovar a sua carteira de membro do partido, como compreender que toda a sua intervenção política e cívica, até a sua morte, configurou-se como a de um disciplinadíssimo militante do partido? Das hipóteses aventadas por vários estudiosos, a que parece mais plausível é aquela segundo a qual o cientista acatara uma indicação de Harry Pollitt (1890-1960), secretário-geral do partido por décadas: Pollitt teria afirmado a Bernal que o seu vínculo formal com a organização prejudicaria o alcance político da sua intervenção cívica e esta seria mais eficaz se se apresentasse como um “independente”, liberado de compromissos partidários.
Não há dúvidas de que a dimensão política da atuação pública de Bernal, obviamente conexa à sua credibilidade científica, revelou-se eficaz. Durante a Segunda Guerra Mundial, Bernal teve papel relevante como consultor científico das políticas de defesa de Londres e também na preparação do desembarque na Normandia e, no imediato pós-guerra, contribuiu para a criação da UNESCO. Tais atividades lhe valeram homenagens de inúmeras instituições inglesas e norte-americanas. Mas, no período da Guerra Fria, o seu protagonismo em iniciativas de inspiração claramente comunista, como o Conselho Mundial da Paz, ou apoiadas por comunistas, como o Movimento Pugwash, trouxe-lhe vários problemas – e muitos são os biógrafos que atribuem à sua opção ideológica o não lhe ser atribuído o Nobel (prêmio que dois pesquisadores notoriamente ligados a ele receberam: M. Perutz, em 1962, e D. Hodgkin, em 1964). Por outro lado, o movimento comunista oficial prestou-lhe significativas homenagens, como o Prêmio Stalin da Paz, de 1953 – depois de 1956, rebatizado como Prêmio Lenin da Paz.
No que toca aos méritos de Bernal nos estritos campos científicos – especialmente da física e da biologia – em que ele se destacou como pesquisador, permito-me, dadas as minhas poucas luzes na matéria, socorrer-me do que encontrei em seus analistas mais sérios para sustentar que é justificado o consenso segundo o qual o seu contributo foi notável. Mas a mim o que me importa aqui é tangenciar rapidamente o seu trabalho como pensador e historiador da ciência (ainda que sem referenciar muitos de seus ensaios e conferências, produzidos entre os anos 1930-1960). Aliás, cabe notar que todos os estudiosos da obra de Bernal consideram que seu interesse por esta problemática foi estimulado quando, em julho de 1931, em Londres, no Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, ele teve os seus primeiros contatos com cientistas soviéticos (a delegação soviética presente neste congresso foi chefiada por Bukharin).
É de 1939 A função social da ciência (The Social Function of Science), livro de Bernal que muitos consideram ter lançado as bases para uma sociologia marxista da ciência. Nele, Bernal busca cotejar o que a ciência faz com o que a ciência poderia fazer: pioneiro no estudo da medição dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento para a avaliação da política científica, Bernal aponta a necessidade de redirecioná-los, sob controle do Estado, do setor bélico-militar (recorde-se que se estava no vestíbulo da Segunda Guerra Mundial) para áreas em que a produtividade da ciência seria dirigida para a superação da miséria e a instauração do bem-estar social. Segundo Bernal, o compromisso dos cientistas deveria ser com uma “ciência dedicada à paz, ao bem-estar e aos benefícios para a humanidade”. À época, parecia a Bernal que um tal redirecionamento e um tal compromisso (expressão da responsabilidade social dos cientistas) seriam garantidos pela orientação planificada da política científica vigente na União Soviética, logo que a URSS pudesse superar as dificuldades decorrentes do seu isolamento.
E é de 1954 a publicação de Ciência na história (Science in History) – a que Bernal deve a sua notoriedade como historiador e cuja versão revisada e definitiva é a da terceira edição, lançada dez anos depois. Trabalho de um credibilizado pesquisador na área das tradicionalmente chamadas ciências naturais, mas pesquisador culto, com bagagem filosófica e conectado com o desenvolvimento das também tradicionalmente chamadas ciências sociais, Ciência na história é obra ambiciosa, erudita, verdadeiramente enciclopédica, assentada numa determinada interpretação marxista da história.
Resultado de anos e anos de investigação, a obra é de impressionante abrangência. Abre-se com uma competente introdução acerca da historicidade da noção de ciência e da relação ciência/sociedade. Passa-se a uma análise que cobre o paleolítico, com a descrição das suas bases materiais e sociais. É no desenvolvimento da “economia produtiva” inaugurada pela agricultura que Bernal vê o que seriam as bases da “ciência racional”. A partir da “idade do ferro”, põem-se os fundamentos para a “cultura clássica”, que Bernal estuda do apogeu ateniense à queda de Roma. Na transição ao feudalismo, o pesquisador trata da ciência sob a tutela teológica e, em paralelo, cuida do nascimento e da crise da cultura islâmica. Segue-se o estudo da “revolução científica”, que se inicia no Renascimento e, ao longo de mais de vinte décadas, funda a ciência moderna (correlata ao desenvolvimento do capitalismo), cujo evolver Bernal trata com minúcia nos séculos XVIII-XIX. O detalhado acompanhamento do processo das “ciências físicas” (especialmente a física e a biologia, mais a química) na primeira metade do século XX é a penúltima operação de Bernal; a última é o tratamento da emersão e consolidação das ciências sociais. O longo percurso se conclui com uma síntese da relação entre a ciência e as forças sociais, problematizando a ciência na sociedade de classes e num mundo em rápidas transformações. Vê-se: Ciência na história tem cariz ciclópico, tanto mais se se leva em conta que a sua elaboração não foi trabalho coletivo ou de equipe, mas obra individual.
O posterior desenvolvimento científico (ao fim da sua vida, Bernal mencionava mesmo uma nova era de revolução científica) pôs em questão várias das suas reflexões – Bernal foi criticado principalmente pelo seu otimismo quanto ao progresso e ao papel das ciências e se estabeleceram polêmicas acerca de muitos de seus passos analíticos e interpretativos. Bernal foi também alvo de críticas na medida em que sua concepção do desenvolvimento histórico das ciências não colidiu com o marxismo oficial da Internacional Comunista stalinizada: sempre se lembra que, diante das mistificações científicas de T. Lysenko, o protegido de Stalin, Bernal (ao contrário de seu amigo Haldane) acabou por solidarizar-se com elas, procedimento, à época, de boa parte dos cientistas comunistas – não foi por acaso que, linhas acima, dissemos que Bernal foi um disciplinadíssimo militante do partido. E é fato que somente depois de 1956 o grande cientista caminhou para uma prudente autocrítica. Indiscutivelmente, este posicionamento afetou a sua obra de historiador.
Nada disso justifica o relativo esquecimento, ou desconhecimento, de Ciência na história pelas gerações atuais. Ao contrário: a sua leitura, com as lentes críticas que o tempo presente disponibiliza, qualifica os jovens pesquisadores para uma enriquecida compreensão do desenvolvimento científico e para a urgente necessidade de superar o fosso entre os especialistas das ciências duras e os que se dedicam à teoria social. Um fosso que tem propiciado, no campo das ciências sociais e humanas, a proliferação das imposturas intelectuais (a expressão é de Sokal e Bricmont) que fazem as delícias pós-modernas.
* Dos vários textos de Bernal, afora algumas intervenções pontuais (cf., p. ex., A. Arzumanian et alii. Que futuro espera a humanidade?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967), só tenho conhecimento da tradução da sua obra principal (Science in History) – Ciência na história. Lisboa: Horizonte, I-VII,1975-1978, que está igualmente acessível em castelhano: Historia social de la ciencia. Barcelona: Península, 1-2, 1997.
Também não sei de nenhum texto substantivo em português que ofereça uma aproximação à sua vida e à sua obra; em inglês, há larga bibliografia, da qual destaco: M. Goldsmith. Sage: A Life of J. D. Bernal. London: Hutchinson, 1980; B. Swann/F. Aprahamian (eds.). J. D. Bernal. A Life in Science and Politics. London: Verso, 1999; A. Brown. J. D. Bernal. The Sage of Science. Oxford: Oxford University Press, 2005. Sobre os “cientistas vermelhos de Cambridge”, vale consultar G. Werskey. The Visible College. Scientists and Socialists in the 1930’s. London: Allen Lane, 1978; para o quadro do marxismo inglês em que Bernal se inscreveu, cf. E. A. Roberts, The Anglo-Marxists. A Study in Ideology and Culture. Lanham: Rowman & Littlefield, 1997.
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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
Prezado Professor José Paulo Netto,
Mais uma vez um dos seus artigos revela o trabalho de grandes nomes do marxismo que são propositadamente relegados ao esquecimento. Science in History por J.D. Bernal merceria uma nova edição. Talvez pela nossa grande Editora Boitempo.
O senhor acha que isto é possivel?
Grande abraço.
Hugo Pequeno Monteiro
Professor Titular
Departamento de Bioquímica
Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo
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Grande Zé Paulo,
Muito bom a reflexão sobre a obra de Bernal e o resgaste de seu legado – a diminuição do fosso entre as ciências naturais e a teoria social.
Uma leitura muito estimulante. Dito e feito! Gostei muito de ver a promessa cumprida e o texto publicado.
Um forte abraço,
Natan Oliveira
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Alguma traduçāo do Historia social de la ciencia prevista?
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Republicou isso em ensinofisicae comentado:
155 – A ciência e sociedade na ótica de J. D. Bernal
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E ainda falam em democracia e liberdade de imprensa. O Ocidente é uma grande mentira. Uma civilização discriminatória, racista, escravagista, machista e genocida. Um circo de horror, como dizia Zé Mancambira personagem do romance Noite em Paris que publico no blogue de mesmo nome. Quando vamos por a mão na consciência e reconhecer nossos erros?
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