Aos olhos de um velho amigo | Roberto Schwarz sobre Michael Löwy
Por Roberto Schwarz.
Michael Löwy é muito conhecido como historiador das ideias da esquerda, e praticamente desconhecido como militante do Surrealismo. Para corrigir essa unilateralidade, vou colocar em epígrafe de minha homenagem uma tragédia surrealista em dois atos, que ele escreveu quando tinha dezoito ou dezenove anos. Ato I: Adão surpreende Caim tentando fazer o amor com Eva e dá uma tremenda surra no filho. Ato II, depois da sova: Caim pergunta a Adão: “mas pai, quando Deus ainda não tinha formado minha mãe com sua costela, como é que você fazia?”. Adão, com ar culpado, olha as mãos. Fim da tragédia. Atrás do esquete de colegial já estava a aposta no valor artístico da profanação.
Como conheço o grande homem desde criança, achei que seria boa idéia começar lá atrás. Fizemos amizade aos quinze anos, numa colônia de férias judaica, em Campos do Jordão. Nós nos descobrimos logo, já na viagem de ônibus, porque os dois queríamos discutir assuntos que, do ponto de vista do rabino, eram inconvenientes, tais como socialismo, psicanálise, literatura. Eu estava lendo as Ficções do interlúdio, de Fernando Pessoa, cheias de decadência, reis que abdicaram, fontes que secaram, rosas murchas, horas pálidas e meninos mortos. Mostrei ao Michael, que não achou grande coisa. Ele, em compensação falou-me com entusiasmo de Vargas Villa e Pitigrilli, dois autores meio pornográficos, cínicos em assuntos de sexo, que na época se compravam em banca de jornal. Para dar uma ideia do gênero, lembro dois títulos que nunca esqueci, Loira dolicocéfala e Virgem de dezoito quilates, ambos de Pitigrilli. Fiquei de queixo caído diante da segurança com que meu novo amigo torcia o nariz para obras consagradas e preferia outras de reputação nula ou duvidosa, mas que falavam a seu (ou nosso) interesse cru. Ponto para ele.
Aliás, até hoje, essa reação direta, mas nada convencional, às obras de arte me surpreende e faz pensar. Para Michael, quem manda são os apetites da imaginação, que não pedem licença e cuja esfera é a vida corrente, sem cálculo estético, sem especialização de ofício e com pouca história da arte. O que conta, o que fala a seu coração é o que as obras trazem à luta socialista e à libertação do inconsciente. É uma espécie de conteudismo franco, mas, como as demandas do socialismo e do inconsciente não coincidem, o resultado não é óbvio nem previsível. Além do que ele prefere a arte visionária ao realismo, o que mistura mais as cartas. Enfim, esse seu desdém pelas questões de forma muitas vezes me pareceu (e ainda me parece) um erro sem remédio, alheio ao procedimento artístico e à maneira que a arte tem de conhecer. Mas também é certo que tal descaso não deixa de ser uma opção formal, a manifestação de um interesse rebelde e indiscutível, que as considerações de forma edulcoram. Nesse sentido, o antiformalismo representa um gosto peculiar, uma espécie de plebeísmo libertário, uma inconformidade com o lado sublimador da literatura, ou com a literatura tal como ela é. Para encerrar esse capítulo, lembro mais um argumento a favor de Michael: é fato que as aspirações libertárias em matéria de política e sexo são infinitamente mais combatidas, perseguidas e recalcadas do que sabemos e do que podemos imaginar. De modo que, ao tomá-las como a pedra de toque do interesse e o fio vermelho de sua pesquisa, ele acaba entrando pelas portas certas, fazendo uma descoberta atrás da outra, mesmo em áreas ultrapesquisadas, em que parecia não haver mais nada a descobrir. Um exemplo é o bom livro sobre Kafka1, que acaba de ser traduzido e que, até onde sei, realmente inova. Michael foi atrás das inspirações anarquistas do escritor, levantou suas simpatias pela causa feminina, os paralelos involuntários com a teoria weberiana da burocracia, e conseguiu nos apresentar um Kafka bem mais antiautoritário e mais plantado nos conflitos do mundo do que se costuma admitir.
Mas, vamos voltar aos primeiros anos. Quando começou a cursar a faculdade, em 1957, Michael estava pronto e definido, e já havia encontrado a fórmula que não ia mudar mais: era militante socialista e surrealista, os dois ao mesmo tempo, o que correspondia profundamente a seu modo de ser. Como se sabe, o casamento dessas vertentes, que parecem incompatíveis, é uma das marcas registradas do trotskismo, que também se tornou parte dele. Para completar o quadro, é preciso acrescentar que Michael era muito cumpridor de seus deveres e muitíssimo bem organizado.
Graças a isso, ele tinha tempo para tudo. Era excelente aluno, lia e fichava o que os professores pediam, entregava os trabalhos na data prevista, era militante político assíduo, pontual nas passeatas, ia aos concertos, via os filmes, fazia a corte às moças, de meio-dia à uma ouvia a Hora dos mestres, um programa de música clássica da Rádio Gazeta, gostava de jogar os jogos surrealistas, que ensinava a amigas e amigos, e, até onde sei, era um filho muito dedicado, o que se poderia chamar um bom menino. Vocês vão ver que não digo isso para desmerecer.
Insisti no cumprimento metódico das obrigações e na boa vontade básica porque, sem serem posições ideológicas, políticas ou estéticas, imprimem ao conjunto da figura uma nota especial. Tanto o socialismo revolucionário quanto o Surrealismo são subversões que atacam a ordem na raiz, e, dependendo das circunstâncias, são casos de polícia, sempre sob a pressão da realidade a que se opõem. Pois bem, ligados à disciplina do estudante sério e à consciência limpa do moço bom, eles gravitam num espaço aprovado, comparativamente desimpedido. É como se o coeficiente de atrito diminuísse, e o atrativo da radicalidade aumentasse. Dizendo de outro jeito, é como se o sistema dos interesses vulgares, quer dizer, a busca do mando, das vantagens materiais e de acomodações do desejo, ou também o medo, não estivessem em vigor. Ou ainda, como se o princípio de realidade estivesse atenuado, causando, aliás, tanto perdas como ganhos. Quero me explicar melhor.
Em linha com o Surrealismo e com Michael, que gostam de jogos, vamos imaginar uma combinatória de três elementos, dois a dois, em que a revolução social, a revolução surrealista e o cumprimento das obrigações se modificassem reciprocamente. A combinação de Surrealismo e de obrigação, com hora marcada e o guarda-chuva que Michael sempre trazia no braço, tinha alguma coisa de filme de Carlitos. Mas há também a modificação inversa, em que a vocação absoluta e o humor negro dos surrealistas tornam revolucionário ou imprevisível o cumprimento da obrigação, que não se sabe aonde pode chegar. A propósito, no ensaio de Walter Benjamin sobre o Surrealismo, há uma restrição interessante ao elogio que Breton faz à inatividade: diz Benjamin que os surrealistas desconheciam o valor místico do trabalho, uma objeção que não se aplica a Michael.
Algo parecido vale para a combinação de militância revolucionária e vida escolar bem planejada, em que a primeira pauta os interesses acadêmicos do estudante, e a capacidade de estudo deste em pouco tempo o torna um agitador de ideias com repercussão internacional. Sem contar que o gosto da consequência o levava muito depressa da sala de aula para, por exemplo, as lutas explosivas das Ligas Camponesas. Para completar esse jogo, é claro que o engajamento surrealista era um antídoto às degradações burocráticas e autoritárias da luta socialista, ao passo que o socialismo revolucionário barrava a regressão do Surrealismo a um simples estilo artístico entre outros. No conjunto, como salta aos olhos, são posições que não casam bem com o comunismo mais ou menos stalinista e com o populismo mais ou menos malandro que davam o tom ao grosso da esquerda brasileira da época.
Assim, Michael buscava sempre a extrema esquerda do espectro, quase que por tropismo, mas sem quebra do temperamento cordato e amável. O sujeito das convicções não anulava o rapaz comportado, e este não impedia o outro. Por isso mesmo, ele não gostava de atritos pessoais, e ficava constrangido quando falavam mal do próximo na frente dele; se, no entanto, a diferença fosse política, era capaz de ser absolutamente inflexível, também com amigos: o contrário do cidadão rixento no pessoal e espertalhão em política. Algo paralelo ocorria em relação ao Surrealismo, cujo interesse quase científico pelos aspectos cabeludos do desejo e da imaginação Michael compartilhava e cujos experimentos e anedotas gostava de contar e comentar. Nessas ocasiões, era notável a completa ausência de nota cafajeste ou degradante, o que num país malicioso e católico como o nosso não deixava de ser um milagre. Para me certificar de que não estou inventando, consultei as colegas da época, que confirmaram a impressão, com saudade. Noutras palavras, a dureza do socialista revolucionário não engrossava a voz do amigo e colega, cujo temperamento ameno, por sua vez, não enfraquecia a determinação do militante. Assim, também o viés transgressivo dos jogos e das proposições surrealistas não naufragava na confusão de fraquezas e desejos na praça. O sujeito histórico e o sujeito privado não se confundiam, só atritavam em caso de necessidade, e a prioridade do primeiro era serena. Um arranjo incomum, em que estranhamente o dever, a fantasia e a revolução parecem não se opor uns aos outros, mas sim colaborar.
Enquanto muitos colegas, uma vez concluído o curso, entravam por rumos que não queriam, procuravam empregos que não desejavam, embarcavam em bolsas de estudo para lugares inóspitos e se enterravam em teses de assunto indiferente, Michael foi para a sua querida Paris, estudar com o seu admirado Lucien Goldmann, para pesquisar seu assunto favorito e escrever a tese que queria, sobre a teoria da revolução no jovem Marx. Determinado como era, realizou em tempo relativamente curto um trabalho dos mais interessantes, que, aliás, até hoje se lê muito bem. Com a vantagem da pessoa que se achou cedo, Michael foi estudando em grande escala, organizando o que sabia e publicando os livros correspondentes, tornando-se um importante expositor e intérprete do ideário da esquerda.
As publicações vieram pingando, possivelmente formando blocos. Um primeiro de teoria revolucionária, centrado em Marx, Trotski, Lukács e Guevara, suponho que respondendo à parte final do ciclo de revoluções na periferia do capitalismo. Outro, mais metodológico, procura argüir a superioridade do marxismo sobre as teorias sociais concorrentes, em especial sobre o positivismo. E o terceiro, enfim, liga-se à etapa histórica atual, de baixa mundial do marxismo e também de crise das certezas do progresso. No belo estudo A evolução política de Lukács2 , que pertence ao primeiro bloco, Michael havia escrito um capítulo introdutório sobre a intelligentsia anticapitalista na Europa central, cujas razões estéticas, religiosas e morais podiam, mas não precisavam, levar ao marxismo e à revolução. Pois bem, na fase de decrepitude da União Soviética e de maré baixa da revolução mundial, esse mesmo universo – em parte judaico – tornou-se uma grande moda internacional, de veia em geral conservadora, servindo como sucedâneo da revolução política. Michael, que já conhecia o assunto, procurou apropriá-lo em sentido contrário e politizado, como chão necessário e um tanto desconhecido do impulso revolucionário. Daí sua incursão em grande escala pelos territórios do romantismo anticapitalista, do utopismo e do messianismo judaicos, em cuja crítica do progresso ele encontra um elemento de verdade contemporânea, importante para uma atualização do marxismo. Com maior diversidade de autores e amplitude histórica acrescida, é o impulso surrealista que se reapresenta para fazer frente aos déficits que a evolução histórica recente apontava na teoria da revolução. Enquanto o primeiro e o segundo blocos, sobre teoria revolucionária e a superioridade metodológica do marxismo, participavam de uma guerra em curso e tinham algo de fla-flu doutrinário, o terceiro, ligado aos impasses históricos dos outros dois, é escrito em espírito mais problematizador, o que lhe dá uma indiscutível superioridade literária. São paradoxos para pensar em casa. Vejam desse ângulo o último livro sobre Walter Benjamin3. Seja como for, com esses trabalhos, Michael nos dá o exemplo pouco frequente e muito estimulante do intelectual que se aproxima dos setenta em franca evolução.
Para concluir com uma pergunta, ou um problema, quero partir do livro muito documentado sobre a política do desenvolvimento combinado e desigual na revolução permanente4. Como é sabido, são noções sistematizadas por Trotski, interessado inicialmente em incluir a Rússia retardatária no rol dos países com potencial revolucionário. O interesse dessas ideias para a esquerda dos países ditos atrasados é fulminante, pois elas recusam o marxismo do progresso linear, para o qual a revolução socialista só está na ordem do dia nos países adiantados. Tratava-se de sublinhar o caráter supranacional e desnivelado – ou dialético – do capitalismo, cujas rachaduras abrem à revolução possibilidades imprevistas, que o materialismo etapista, ou economicista, ou confinado à política nacional desconhece. Noutras palavras, as condições para a revolução não deveriam ser aferidas pelo adiantamento ou pelo atraso local, mas pelo contexto internacional, que é a dinâmica decisiva. Assim como o capitalismo aproveita os desníveis entre países para combiná-los e maximizar a exploração, os socialistas devem usá-los para levar adiante a revolução. O atraso material não exclui formas de organização popular adiantadas, e a combinação entre os dois, embora heterodoxa, pode conduzir à ruptura. Noutras palavras ainda, o país retardatário pode ser o elo fraco do sistema e desempenhar um papel de vanguarda na sua superação. Pois bem, até os anos 1970, a série das revoluções em países periféricos pareceu dar certa razão a Trotski, no que respeita à conquista do poder. Na etapa subsequente, contudo, quando se tratava de construir a sociedade superior e alcançar o bem-estar dos países adiantados, o peso do determinismo econômico reapareceu com toda a força, ao passo que o voluntarismo revolucionário se mostrou insuficiente. Enquanto o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo se renovava e se aprofundava velozmente, a política da revolução permanente chegava a um impasse, menos porque fosse impensável o assalto ao poder por uma vanguarda, e mais porque o caminho ulterior em direção do socialismo parecia bloqueado. Vou parar por aqui.
NOTAS
1 Michael Löwy, Franz Kafka: sonhador insubmisso. (Rio de Janeiro, Azougue, 2005).
2 Idem, A evolução política de Lukács: 1909-1929. (São Paulo, Cortez, 1998).
3 Idem, Walter Benjamin – aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. (São Paulo, Boitempo, 2005).
4 Idem, The Politics of Uneven and Combined Development: the Theory of Permanent Revolution. (Londres, New Left Books, 1975).
* Artigo-homenagem de 2007, escrito por Roberto Schwartz para o livro As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubmisso, organizado por Ivana Jinkings e João Alexandre Peschanski, com artigos de Alfredo Bosi, Carlos Nelson Coutinho, Emir Sader, Olgária Matos, Ricardo Antunes, entre outros.
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Roberto Schwarz é crítico e membro do Comitê editorial da revista Margem esquerda: ensaios marxistas, editada pela Boitempo Editorial. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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