1954: adolescência, futebol e política

Retalhos da memória IV

gv izaias
Por Izaías Almada.

“Meu caminho é de pedra, como posso sonhar?”
– M. NASCIMENTO/F. BRANT

LEIA”RETALHOS DA MEMÓRIA (I)” E “RETALHOS DA MEMÓRIA (II)“, DE IZAÍAS ALMADA

“O Getúlio morreu, o Getúlio morreu! O rádio acabou de anunciar! Vargas suicidou-se. Mataram o presidente! Vai haver uma revolta popular no Brasil. É coisa do Lacerda e do pessoal da Aeronáutica. A direita vai dar o golpe! No centro da cidade ‘tá a maior confusão, já saiu até tiro”.

“As aulas serão suspensas e esperamos que voltem para suas casas em ordem. Recomendamos aos senhores alunos que evitem o centro da cidade”.

As frases ribombavam pelas ruas da cidade de Belo Horizonte e pelos dois andares do Colégio Batista Mineiro na manhã de 24 de agosto de 1954.

Pedro pensou no pai, policial, a ter que enfrentar os distúrbios de rua. Será que ele ia se meter em confusão?

O pai sempre fora eleitor da UDN e antigetulista. No entanto, muito mais gente parecia gostar do Getúlio do que do Lacerda. E isso era tudo o que ele conseguia entender de política.

Já ouvira falar em “O petróleo é nosso”, “mar de lama”, “pai dos pobres”, “os porões do Catete”, mas nada disso o interessava. Coisa dos mais velhos… Aquilo ia dar merda da grossa?

Desobedeceu a advertência do diretor do colégio e foi a pé para o centro da cidade com alguns colegas. Na esquina da Rua Rio de Janeiro com a Praça Sete ouviu tiros.

Saiu correndo, apavorado. Atrás dele, bem no lugar de onde começou a correr, um rapaz foi ferido na perna. Ficou tremendo e atravessou a Avenida Amazonas como uma flecha, procurando se esconder dentro do Cine Brasil.

“Assassinaram o presidente! Morte aos assassinos do Getúlio! Ele foi obrigado a se matar! Os americanos estão por trás disso”.

O homem meio gordo corria e gritava por entre as árvores da Avenida Afonso Pena com um revólver na mão. Alguém ao lado de Pedro disse que era um velho comunista da cidade, Armando Ziller.

O homem corria e gritava dizendo que era preciso defender o Brasil e o presidente Getúlio Vargas contra os fascistas, os integralistas, contra o Lacerda.

Diante da confusão que aumentava, Pedro resolveu que o melhor era mesmo voltar para a casa. Encontrou a mãe apavorada junto ao rádio da sala e levou uma boa tunda de corrião do pai pela estripulia matinal.

Como é que um menino de doze anos desobedecia assim ao diretor do colégio e ia justamente para o meio da confusão? Ficou de castigo e não pôde ouvir o seu programa de rádio preferido, “Peça Bis pelo Telefone”.

No dia seguinte, passado o castigo, soube que a Rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro tinha mudado toda a programação por causa da morte do presidente e o programa não fora transmitido. Menos mal.

O assunto naqueles dias, no entanto, era só política e ele não entendia nada disso, a não ser que o pai era um udenista no meio de uma família de getulistas.

Algumas discussões causavam-lhe vez por outra uma sensação de mal estar na casa dos primos, todos getulistas apaixonados e atleticanos fanáticos. O tio Clóvis, irmão da sua mãe Martha, era major do Exército, mas a disciplina em sua casa era zero. Gostava, no entanto, da tia Laurinda, mulher prática e excelente cozinheira.

Não gostava de ouvir que falassem mal do Brigadeiro Eduardo Gomes e do América Futebol Clube, seu time do coração. Era assim que demonstrava amor pelo pai, admirador do brigadeiro e torcedor do América.

“One, two, three, o’clock, four, o’clock, rock… five, six, seven, o’clock, eight, o’clock, rock…”

O cotidiano foi se recompondo e Bill Halley e seus Cometas estavam nas paradas outra vez, deixando o suicídio de Vargas em segundo plano, mas Pedro preferia Paul Anka, Little Richard, Elvis Presley… E Brenda Lee.

O presidente Getúlio Vargas, afinal, deixara a vida e entrara para a História, como era seu desejo. No enterro, o caixão foi seguido por uma multidão nas ruas: massa humana, diziam os jornais, nunca vista no Rio de Janeiro e em Porto Alegre.

Por que razão a política mexia tanto com as pessoas? E depois, francamente, o que é que os americanos tinham a ver com a morte do Getúlio? Pat Boone? Os Everly Brothers? Elvis Presley? Little Richard? Uns caras legais e que cantavam tão bem! A inocência de um menino de doze anos chegava a ser comovente.

Provavelmente nos Estados Unidos ainda pensassem que a capital do Brasil era Buenos Aires! Que grande confusão…

Sua mais nova paixão, no entanto, era o futebol. Paixão verde e branca: o time do América Futebol Clube, ali na Avenida Octacílio Negrão de Lima, cuja mascote era um simpático coelho criado nas caricaturas dos jornais. O Nevile e o Winston seus amigos, bem como o pai deles, senhor Afonso Almeida, também eram torcedores do América.

A grande admiração que o senhor Afonso Almeida tinha pelos ingleses, com certeza adquirida durante a Segunda Guerra era tanta, que batizou os dois filhos homens como Nevile e o outro de Brasil Winston.

Com o fanatismo futebolístico e as naturais rivalidades, Pedro ganhou os primeiros inimigos: os torcedores do Atlético Mineiro. O galo, feito pelo mesmo caricaturista do seu coelho, era a mascote do time alvinegro.

Em Belo Horizonte nos anos 50 era Galo ou Coelho. A Raposa, o Cruzeiro Esporte Clube, com sua bela camisa azul celeste e cinco estrelas no peito, só ganharia destaque com o surgimento do Mineirão.

Dentro e fora da família era difícil aguentar aquele bando de fanáticos. Com os anos, aprenderia a guardar distância de todo e qualquer fanatismo, uma maneira irracional e limitada de expressar os próprios pensamentos e convicções, quaisquer que fossem.

Terminou naquele ano o segundo colegial e ganhou um grande amigo no Colégio Batista Mineiro: Carlos Alberto Del Menezzi, que frequentava a Primeira Igreja Batista de Belo Horizonte. Amizade que permaneceu até o final dos quatro anos do ginásio, quando foram para colégios diferentes. Só voltaria a ter notícias do amigo em 1970. E uma grande decepção. Ele se tornara torturador de presos políticos em Belo Horizonte.

Mesmo sem Getúlio, a confusão política voltou e insistiu em continuar por mais uns meses. O vice-presidente Café Filho assumiu a presidência, mas já havia quem quisesse substituí-lo.

Logo vieram as eleições presidenciais e Juscelino Kubstcheck foi eleito, mas alguns militares tentaram impedir a sua posse, só garantida por outro grupo de militares que apoiaram ao Ministro do Exército, Henrique Dufles Teixeira Lott.

De Lott também teria notícias no mesmo ano de 1970, quando o Marechal invadiu um centro de tortura no Rio de Janeiro onde um seu neto estava sendo seviciado.

O assunto da morte de Getúlio e da República do Galeão era obrigatório em casa, na escola, na igreja, nas ruas.

A política acabaria por entrar-lhe pelo corpo, como uma injeção de glicose na veia. E como.

CONTINUA…

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em 1954: adolescência, futebol e política

  1. Ocupa Minc SC // 26/05/2016 às 11:46 am // Responder

    Caro Izaías,
    Na quinta feira dia 19 de maio, a sede do Minc SC foi ocupada. O ato pacífico, apartidário e articulado com as demais ocupações nacionais trouxe mais vida para o prédio do Largo da Alfândega. E trouxe, também, muita luta. O movimento se organizou em núcleos de trabalho e está se fortalecendo a cada dia. O núcleo de comunicação do Ocupa Minc SC preparou um informativo, em arquivo digital, onde apresenta o movimento, sua organização e posicionamento político.
    Gostaríamos de enviar o material para conhecimento e divulgação. Tem e-mail para contato?
    Agradecemos a atenção e nos colocamos à disposição para quaisquer dúvidas, necessidades e/ou curiosidades.
    Ocupa Minc SC.

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  2. Deliciosa a crônica, misturando a memória pessoal com a da cidade. Vou acompanhar, e que seja longa. Abraços!

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