A centelha: Bernie Sanders e o socialismo nos EUA
Por Ruy Braga.
Após vencer em New Hampshire e empatar em Iowa, Bernie Sanders transformou-se em um sério competidor na corrida para ser escolhido candidato do Partido Democrata nas eleições presidenciais americanas de novembro. Algumas boas razões concorrem para explicar resultados tão expressivos: em primeiro lugar, Sanders soube vocalizar as demandas das duas campanhas nacionais que atualmente inspiram os movimentos sociais estadunidenses em escala nacional, isto é, a campanha pelo salário mínimo de 15 dólares (atualmente, o salário mínimo é um pouco superior a 7 dólares) e a campanha “Black Lives Matter” em resposta à perseguição e aos assassinatos de jovens negros pela polícia. Além disso, sua plataforma eleitoral promete educação universitária e assistência à saúde gratuitas.
Tendo em vista o nível do endividamento das famílias trabalhadoras com as universidades e os valores absurdos que os tratamentos médicos alcançaram nos Estados Unidos, não é surpresa que as propostas de Sanders repercutam tão positivamente no eleitorado. “É a desigualdade, estúpido!” De fato, mais de três décadas de hegemonia neoliberal nos Estados Unidos criaram uma sociedade desenvolvida com desigualdades abissais, apenas comparáveis àquelas dos anos da Grande Depressão. O nível de concentração da renda nacional alcançou um recorde histórico e as condições de reprodução da classe trabalhadora deterioraram-se de forma incessante, mesmo no atual esboço de recuperação econômica vivido pelo país.
O número de trabalhadores empregados que se encontram abaixo da linha de pobreza é assustador e não parece dar sinais de diminuição. Além disso, a plataforma econômica de Bernie Sanders demonstrou claramente o desejo de restabelecer a progressividade dos impostos sobre os ricos. Na realidade, a tática predileta utilizada pelo candidato socialdemocrata é atacar as grandes corporações. Ele insiste em lembrar que o grande capital nos Estado Unidos exerce sistematicamente seu poder autocrático vetando o debate sobre as possíveis alternativas para combater o aumento das desigualdades sociais. Diga-se de passagem, sua campanha não recebe dinheiro de grandes empresas, apenas pequenas doações de indivíduos ou de sindicatos.
A plataforma da campanha de Sanders organizou-se em torno da ideia de que a democracia foi sequestrada pelo poder das finanças e que os trabalhadores e os setores médios empobrecidos, isto é, os 99%, devem se mobilizar a fim de enfrentar esse processo de alienação que favorece apenas o 1% mais rico da população. Assim, sua campanha colocou-se em sintonia com as demandas apresentadas há cinco anos pelo movimento Occupy Wall Street.
O sucesso dessa mensagem refutou a tese de que a palavra “socialismo” estaria proscrita da política americana. Na realidade, pesquisas eleitorais recentes apontam que a rejeição a essa ideia recuou consideravelmente e a associação do socialismo a valores considerados positivos aumentou muito, sobretudo entre os mais jovens que simplesmente desprezam o ultraindividualismo dominante nos anos 1980 e 1990. Além disso, os movimentos sociais que impulsionam a campanha de Sanders enfatizam a importância do igualitarismo como referência fundamental da luta política.
A universalidade do acesso à educação e à saúde, por exemplo, não apenas beneficiaria principalmente as populações negras e latinas, mas serviria para criar as bases de uma possível aliança estratégica entre os negros, os latinos e os trabalhadores brancos pobres, impulsionando um projeto radical de transformação pelas próximas décadas nos Estados Unidos. É possível identificar esse mesmo potencial na campanha pelo salário mínimo de 15 dólares.
Trata-se de um conjunto de propostas para articular diferentes grupos da classe trabalhadora aos setores médios empobrecidos – estratégia que se mostra mais eficaz do que trabalhar com políticas focadas em cada comunidade tomada isoladamente. A ênfase no igualitarismo como baliza fundamental da campanha cristalizou-se no slogan “Not me. Us.” Trata-se de uma escolha que dialoga com as velhas tradições do socialismo estadunidense. Acreditem ou não, até a Segunda Guerra Mundial existiu nos Estados Unidos uma tradição socialista fortemente enraizada em comunidades espalhadas pelo país afora, alcançando certa expressão eleitoral por meio das candidaturas (1904, 1908, 1912 e 1920) do líder sindical socialista Eugene Debs, notoriamente, a principal fonte de inspiração política de Sanders.
Aqui surge o problema da definição do “socialismo” do candidato. Sejamos claros: Sanders não representa uma alternativa socialista para os trabalhadores estadunidenses. Ele não é favorável à socialização do meios de produção e nem se define como um candidato anticapitalista. Na verdade, ele é um político tecnicamente independente e próximo da tradição populista estadunidense cuja principal virtude foi ter assumido um programa autenticamente reformista no momento em que os níveis de desigualdade entre as classes tornaram-se pornográficos no mundo todo. Em suma, Bernie Sanders é um político capitalista com um programa reformista em tempos de espoliação generalizada dos trabalhadores pelas finanças via Estado.
Por isso, sua campanha está crescendo de maneira vigorosa alimentada, sobretudo, por uma revolta popular difusa, porém, arraigada, contra a “plutocracia” formada pelos grandes capitalistas e banqueiros. A promessa de prisão para os especuladores de Wall Street fez com que a mídia de massas passasse a atacá-lo como poucas vezes se viu na história das primárias democratas. Até o momento, ao menos, sem obter grande sucesso. Ao contrário. Quanto mais apanha da mídia, mais o candidato radical alcança mais apoiadores. Pesquisas recentes mostram que Sanders está 14% à frente de Hillary Clinton no Alaska, 15% no Maine, 7% em Massachusetts e notáveis 76% em Vermont!
Uma hipotética vitória de Sanders evidentemente não representaria uma vitória do “socialismo” na América. Ao menos, não segundo os parâmetros marxistas. No entanto, significaria o fim do ciclo político-ideológico neoliberal. Não se trata de algo banal. As comparações com a vitória da Syriza na Grécia, por exemplo, são inadequadas devido basicamente à diferença de escala: estamos falando dos Estados Unidos, não de um dos países mais pobres da Europa.
Ademais, o argumento de parte da esquerda socialista de que Sanders serviria para conduzir os movimentos sociais para dentro do Partido Democrata é pouco convincente. Afinal, a maquinaria política democrata absorve os movimentos sociais nos Estados Unidos há pelo menos um século sem recorrer a uma candidatura ao estilo de Sanders. E quem o apoia não parece estar iludido com suas promessas, ao contrário, parte substantiva do sucesso de sua campanha radica no perfeito alinhamento do candidato aos interesses materiais da maioria dos eleitores americanos. Trata-se de puro bom senso dos subalternos e não um caso de ilusão das massas.
Aqui, valeria uma reflexão sugerida por meu amigo Alvaro Bianchi.1 No início do século XX, socialistas alemães viam nos Estados Unidos e na Rússia a prefiguração de uma nova era. Enquanto na América concentravam-se as forças desacorrentadas do capital, na Rússia o trabalho mostrava seu potencial revolucionário. O que sobrava num, faltava no outro. Werner Sombart perguntou-se, então: por que não existe socialismo nos Estados Unidos?2
Essa ausência era surpreendente e contrariava algumas teses da socialdemocracia alemã que interpretavam o desenvolvimento das forças políticas do proletariado como uma consequência inevitável da ascensão do capitalismo. E não se poderia negar que esse capitalismo havia ascendido de forma inédita nos Estados Unidos. No começo do século XX o poder financeiro dos bancos estadunidenses já era de quase 14 bilhões de dólares, enquanto a soma de todos os outros países do mundo era de 19 bilhões de dólares. E antecipando a propaganda radical do movimento Occupy Wall Street, Sombart mostrava como 1% das famílias estadunidenses concentrava 54,8% da riqueza do país.
O sociólogo alemão procurou resolver o enigma enumerando as diferentes causas desse fenômeno. Primeiro analisou as disposições intelectuais predominantes na sociedade norte-americana: a monetização de todos os valores, inclusive os espirituais, e a tendência à competição de todos com todos. Depois, investigou o sistema político e partidário, que permitia a participação popular e o controle efetivo sobre os governantes na esfera local que oferecia uma carreira aberta aos talentos e, ao mesmo tempo, tornava a adesão a uma das duas gigantescas máquinas pré-condição para obter ganhos políticos Por último, expôs as bases materiais da adesão dos trabalhadores ao capitalismo: os altos salários da classe trabalhadora e a enorme disponibilidade de terras.
Em sua resenha crítica ao texto de Sombart, o ideólogo da socialdemocracia alemã, Karl Kautsky inverteu a ordem de exposição de Sombart.3 Segundo Kautsky o ponto de partida era a abundância de terras e a ausência de classes feudais que monopolizassem a renda da terra. Essa situação, herança de um passado colonial permitia que qualquer um, inclusive um trabalhador, pudesse almejar ser um proprietário. O constante fluxo populacional para as regiões fronteiriças passaram a pressionar os salários na indústria para cima, encontrando uma compensação na incessante imigração cuja consequência era a divisão da classe trabalhadora em diferentes grupos nacionais no interior dos Estados Unidos.
Essa configuração social estimulava uma atitude pragmática que valorizava os ganhos imediatos e recusava aquelas formas do revolucionarismo romântico que caracterizariam, por exemplo, os trabalhadores russos. Predominava, assim, uma ideologia reformista, na qual a melhoria do capitalismo era o horizonte dos trabalhadores. No entanto, segundo Kautsky, essa situação que havia impedido a emergência de um partido socialista nos Estados Unidos estava com seus dias contados.
Desde o final do século XIX, ao menos, as terras já não eram mais tão abundantes, seus preços se elevaram e a população rural começara a diminuir. Nas cidades os salários haviam sido pressionados para baixo devido à imigração incessante e ao retorno dos contingentes populacionais do campo para a cidade; o trabalho feminino e infantil crescia e o desemprego aumentava. Kautsky retomava aqui a antiga tese da pauperização da classe trabalhadora, identificando-a como a causa provável para a renovação do socialismo nos Estados Unidos.
As tendências identificadas por Kautsky convergiram na crise de 1929 e na Grande Depressão dos anos 1930. As políticas do New Deal implementadas entre 1933 e 1937 serviram para reverter a crise ao criar um Estado social como nunca antes na história capitalista. E o contexto da Guerra Fria garantiu que o embrião socialista identificado por Kautsky fosse abortado. Um bom exemplo talvez seja o próprio sindicato fundado pelo ídolo de Sanders, Eugene Debs, em 1905: os Industrial Workers of the World. Atuantes durante a primeira metade do século XX, os “Wobblies” como eram conhecidos seus bravos militantes praticamente desapareceram nos anos 1950.
A Guerra Fria faz parte do passado e o anticomunismo estadunidense não é mais uma referência para pelo menos 2/3 da população norte-americana. A desigualdade entre as classes, isto é, a polarização social, tornou-se abissal como previra Kautsky e um candidato identificado como “socialista” é a nova sensação política da América. Seguramente, a campanha de Sanders não irá criar um partido independente dos trabalhadores nos Estados Unidos. Como bem lembrou Bill Fletcher Jr:
“Sanders não irá construir uma organização. Ele se parece mais com um líder de movimento. Ele busca dar voz aos despossuídos, mas não é alguém que procura forjar uma estratégia coletiva. Ele realmente deseja ser o campeão dos que estão sendo esmagados pelo rolo compressor do capitalismo, mas caberá a outros a tarefa de convocar as grandes manifestações.”4
Apesar disso, sua campanha pode representar o início de um tipo superior de automobilização das forças sociais do trabalho estadunidenses. Uma centelha a acender o rastilho de pólvora. “Sinta queimar” [“Feel the Bern”] é um de seus slogans… Por tudo o que significa para a esquerda estadunidense e mundial, a campanha de Sanders merece ser debatida seriamente pelos socialistas. Sem ilusões, mas igualmente sem sectarismos.
NOTAS
1. Vale dizer que as conclusões políticas dessa reflexão são de minha total responsabilidade.
2. Para mais detalhes, ver Werner Sombart. “¿Por qué no hay socialismo en los Estados Unidos?“. Reis: Revista española de investigaciones sociológicas, n. 71-72, p. 277-370, 1995 [1906].
3. Karl Kautsky. “The American Worker”. Historical Materialism, n. 11, p. 15-77, 2003 [1906].
4. Bill Fletcher Jr. “Bernie and the Movement“. Jacobin, 20 de fevereiro de 2016.
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Sobre a atual campanha presidencial nos EUA, leia também “Donald Trump e a ressurgência do ‘politicamente incorreto‘”, na coluna de Slavoj Žižek, no Blog da Boitempo.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Bem, Bernie Sanders não é algo novo, ele É um reformista cuja função é guiar uma volta segura do domínio do Capital, ele não pretende socializar nada, apenas diminuir as desigualdades, jamais acabar com elas, nada novo até ai.
O que me interessa de fato é as organizações autônomas estadunidenses, que são as grandes responsáveis por todo(ou quase todo) o movimento social e cima de contestação que ocorre nos EUA atualmente.
1. se elas vão ser capazes de resistir a cooptação e se manter autônomas.
2.Se elas são capazes de se radicalizar e dali sair alguma perspectiva revolucionaria.
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