A conquista da cozinha: As hostes inimigas e o primeiro combate

a conquista da cozinhaPor Flávio Aguiar.

Conforme o tempo passou e as coisas mudaram ou não, as paisagens se tornaram outras. Deixei Porto Alegre rumo ao exílio em São Paulo (as razões disto já expus em outras ocasiões), entrei pela USP a dentro como estudante e permaneci como professor (idem, ibidem), casei, fui preso, fui solto (idem, ibidem), mudei de casa, e um belo dia nasceu uma filha, a minha primogênita, Renata. (Depois viriam Maria e Tânia).

Neste percurso, minha familiaridade com o reino da cozinha foi aumentando. Fui aprendendo a fazer sopas – grande fracasso, porque na época eu achava que fazer sopa era ferver tudo o que eu encontrasse pela frente. Massas: sucessos relativos, aprendi a fazer molhos vermelhos e bolonhesas razoáveis. E carnes: sucesso absoluto, seguindo as tradições gaudérias que trouxera do pampa.

Embora meu primeiro churrasco em São Paulo fosse uma coisa que me deixou perplexo. Uma explicação prévia: naquele tempo, o Brasil era ainda muito mais regionalizado do que antes. Em São Paulo havia apenas uma churrascaria (que eu me lembre) digna do nome, perto do aeroporto de Congonhas, que, inclusive, servia cervejas importadas do Rio Grande do Sul: o Espeto de Ouro. Depois abriram outra na entrada da Cidade Universitária, a finada Tropeiro (hoje é uma oficina ou algo assim, felizmente não é bingo nem Igreja Evangélica). 

Mas o tal de churrasco foi feito num sítio em Cotia, para meus colegas de trabalho na escola onde eu obtivera um emprego como professor de inglês, o também finado Gepe II (depois eu explico o que era). Como eu era gaúcho, eles fizeram questão que eu fizesse o churrasco. Bem, aí me deparei com a carne: um monte de bifes cortados bem finos. Avistei a dona do sítio lavando os bifes, “para tirar o sangue”. Cenas de um crime de morte me passaram pela cabeça, mas deixei pra lá. Me puseram diante de um braseiro de pouca altura, com o ideal de grelhar (queimar) aqueles bifes até um estado próximo da sola de um sapato, que depois eram comidos (com grandes elogios) num sanduíche de pão francês cheio de molho vinagrete no meio, que era o gosto predominante. Conclui que em São Paulo, naquela época, tirando o Espeto de Ouro, a carne era um pretexto esturricado pra comer pão com vinagrete.

Mas fomos indo. Ainda assim, cozinhar, para mim, era algo colateral, como os vícios das bolsas de valores de hoje: um efeito secundário da vida conjugal. Nos vários lares que habitamos, eu e minha mulher então, a Iole, professora de Matemática na USP até hoje, contávamos com os serviços de prestimosas faxineiras ou diaristas: a Sebastiana, a Nininha, a Dalva, a Raquel, a Inês, a quem presto justa homenagem.

Tínhamos um sistema mais ou menos constante: elas faziam a base, ou seja, quando vinham, o arroz, o feijão, alguma carne destinada a um consumo mais longo. A gente se virava no cotidiano, providenciando as saladas e outras coisas eventuais ou festivas, conforme a ocasião.

O que mudou tudo foi o chegada da Renata, num tórrido fevereiro de 1973. Porque a partir dali a cozinha começou a se tornar uma exigência cotidiana, obrigatória. Éramos pais da nova geração, que queriam se encarregar do e repartir o trabalho da prole. Tivemos a sorte de encontrar um pediatra genial, Dr. Rubens Blasi, a quem também rendo homenagem (infelizmente já está nos hospitais eternos, talvez atendendo as almas das crianças afogadas no Mediterrâneo, tamanha era sua generosidade e paciência). E o dr. Blasi nos iniciou no mundo do atendimento à criança, depois do período da amamentação exclusiva. Ou seja: o preparo da sopinha diária, com esmero e atenção.

Tratava-se de ferver legumes e verduras, mandioquinha, batata, xuxu, couve, etc., com um pedaço de carne para dar gosto (depois veio o fígado, que minha filha adorava chupar – aaarrggh!). Daí passar tudo na peneira, devolver ao caldo, acrescentar uma pitada de sal, requentar, verificar a temperatura, e servir, com um fio de azeite de oliva “para quebrar a sensação de fome”, segundo ele, para dar gosto segundo eu, que adorava que minha filha deixasse algum restinho para saboreá-lo com mais azeite de oliva (Mmmmm…).

Acho que fui um dos primeiros pais decididamente feministas da rive gauche do Pirajussara (o campus da USP). Repartíamos religiosamente as obrigações caseiras, inclusive o ritual da sopinha, desde fazê-la até dar de comer à Renata.

Acontece que duas vezes por ano, em julho e dezembro, voltávamos ao sul (Iole também é de lá) para visitar as famílias. E foi num destes julhos que a primeira batalha com as Amazonas da Cozinha se apresentou.

Lembro bem: fôramos almoçar na casa de uma amiga comum. Uma casa magnífica, às margens do Rio Guaíba (quem quiser que o chame de lago Guaíba, esse gagófato inventado pela pós-modernidade ainda de inspiração positivista). Fomos recebidos em confortável sala. Lá fora, o minuano uivava, rugia, mugia, e o Guaíba parecia disposto a reaver seus domínios tomados por aterros sucessivos, a antiga Brizolândia, homenagem ao grande caudilho da Legalidade, hoje Parque Marinha do Brasil – !). Um frio de rachar. Dentro, o calor de uma maravilhosa lareira, coisa até então de gente rica ou abonada. Aperitivos, acho que o meu foi um conhaque.

Mas chegou a hora da sopinha. Pelo calendário, era a minha vez de preparar e dar a sopa. Além disto, a amiga comum era amizade mais antiga da Iole, e mais recente minha. Então me dirigi a ela pedindo para ir à cozinha esquentar a dita sopa (que já fora preparada antes…), o azeite de oliva, um prato e uma colher.

Eu estava com a marmita na mão, onde repousava a sopa, quando outra mão tentou tomá-la. Era a mão da amiga. Uma cozinheira providencial surgiu do nada, junto com alguma copeira, sem falar na talvez faxineira que, mais distante, acompanhava a cena, como batedora vigilante.

– Deixe, disse sedutoramente a amiga, a ___ (que tragédia, não me lembro o nome, mas assim [resto homenagem devida a esta guerreira, a cozinheira desconhecida).

Rapidamente, como uma unidade de artilharia motorizada, a dita cozinheira avançou, pronta para tomar conta do botim, a sopa da agora discórdia. Era secundada pela copeira, tropa de ocupação, que disse estar pronta para dar a sopa para a menina. Enquanto a faxineira observava tudo de longe, pronta talvez para mobilizar bombardeiros que me fulminassem.

De repente, eu me via face a face com uma verdadeira frente policlassista, um pacto de Moncloa avant-la-lettre, todas prontas a me roubar o troféu, a sopa que eu mesmo fizera.

Sob a capa da gentileza, adverti os olhares sibilinos, dignos das bruxas de Macbeth:

– Você não foi feito para isto. Não sabe fazer isto. Vai ser um fracasso. Você está tentando invadir o nosso território. Esqueça. Vamos defendê-lo com unhas, dentes, facas, colheres e garfos. Não se aproxime! Achtung! Verbotten! You are leaving the macho territory! Ponha-se no seu lugar!

Precisei reunir todas as minhas forças, meus guerrilheiros dispersos por meu corpo, para dizer que eu mesmo queria fazer aquilo, e delicadamente, disse que não abria mão do meu direito de pai. Com outras palavras, claro, aquilo de dizer, não, não, eu mesmo faço, eu estou acostumado…

Mas não entreguei a marmita da sopa, e fui rumando por conta própria em direção de onde eu supunha ser a cozinha.

Como eu ia, na verdade, em direção ao toalete, a vigilante faxineira, como boina azul da ONU, me orientou: 

– É por ali.

E por ali eu fui, sabendo que agora, de fato, eu estava conquistando o reino que me fora interdito.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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