O capitalismo pode sobreviver à democracia? | Uma homenagem a Ellen Wood
[Ellen Meiksins Wood (1942-2016), autora de Democracia contra o capitalismo e O império do capital]
Por Emir Sader.
O pensamento marxista perdeu, em pouco tempo, dois de seus maiores expoentes contemporâneos – Benedict Anderson e Ellen Meiksins Wood. Benedict, irmão de Perry Anderson, foi um dos maiores especialistas nos nacionalismos atuais, tendo seu livro Comunidades imaginadas como uma das leituras indispensáveis sobre o tema. Ellen foi uma das mais importantes pensadoras marxistas do século XX, e seu livro Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico se constituiu como um marco do pensamento político.
Como forma de homenageá-la, retomo aqui o texto de uma conferencia que preparei, centrado nesse livro dela, sobre o tema das diferenças entre a democracia antiga e a moderna.
* * *
Na ruptura radical entre o capitalismo moderno e a democracia ateniense se situa tanto a eliminação a escravidão, como também a forma do trabalho livre perder grande parte do status político e cultural que tinha na democracia grega. Assim, paradoxalmente, a passagem das antigas sociedades escravistas para o capitalismo liberal moderno acabou sendo marcado – apesar do fim da escravidão –, pelo declínio do status do trabalho.
Ficou sempre em aberto a questão de como conviviam a escravidão e a democracia, tendendo a repousar as explicações no fato de que esta seria uma “democracia de fachada”, esvaziada, “restrita” aos homens livres. Deixava-se assim de captar a força da democracia grega e, ao mesmo tempo, não se considerava o peso do trabalho livre na Grécia Antiga. A escravidão representa, obviamente, o desprezo geral pelo trabalho, permitindo que se desvinculasse totalmente a forma de apropriação do excedente, das formas de organização política, já que escravidão e democracia seriam incompatíveis.
Mas “a condição desfrutada pelo trabalho livre na democracia de Atenas não tem precedentes e, sob muitos aspectos, permaneceu inigualável desde então”. A maioria dos cidadãos atenienses trabalhava para viver. Quando se separa a historia política e cultural grega de toda raiz social, a escravidão fica no centro do palco como o grande fato determinante:
“Os historiadores geralmente concordam que a maioria dos cidadãos atenienses trabalhava para viver. Ainda assim, depois de colocar o cidadão trabalhador ao lado do escravo na vida produtiva da democracia, eles não se interessaram pelas consequências dessa formação única, desse trabalhador livre e desse status político sem precedentes. Onde existe a tentativa de estabelecer ligações entre as fundações materiais da sociedade ateniense e sua política ou cultura (e a tendência dominante é ainda a de separar a história política e cultural grega de toda raiz social), é a escravidão que fica no centro do palco como o grande fato determinante.” (Democracia contra o capitalismo, p.162)
Nas sociedades pré-capitalistas, em que os camponeses eram a principal classe produtora, a apropriação assumia a forma da apropriação de vários mecanismos de dependência política e jurídica, por coação direta – por meio da dívida, da escravidão, de relações tributarias, impostos, corveia, etc.
Na Grécia surgiu uma nova forma de organização que uniu proprietários e camponeses, numa unidade cívica e militar. A ideia de uma comunidade cívica e de cidadania, como algo diferente de um aparelho estatal, era característica da Grécia e de Roma, indicando uma relação inteiramente nova entre apropriadores e produtores. O cidadão camponês era um tipo social especifico das cidades-Estado gregas e romanas e representou uma ruptura radical com todas as outras civilizações avançadas conhecidas no mundo antigo.
“A pólis grega quebrou o padrão geral das sociedades estratificadas de divisão entre governantes e produtores […] Na comunidade cívica, a participação do produtor […] significava um grau sem paralelos de liberdade dos modos tradicionais de exploração, tanto na forma de obrigação por dívida ou de servidão quanto na de impostos.” (p.163)
“Em nenhum outro lugar o padrão típico de divisão entre governantes e produtores foi quebrado de forma tão completa quanto na democracia ateniense […] Embora os conflitos políticos entre democratas e oligarcas em Atenas nunca tenham coincidido exatamente com uma divisão entre classes apropriadoras e classes e produtoras permaneceu uma tensão entre cidadãos que tinha interesses na restauração do monopólio aristocrático da condição política e os que resistiam a ela, uma divisão entre cidadãos para quem o Estado deveria servir como meio de apropriação e cidadãos para quem ele deveria servir como proteção contra a exploração.” (p.164-5)
Que a importância do trabalho livre na Grécia Antiga tenha se perdido na sombra da escravidão, pela historiografia moderna, isso diz mais sobre a política da Europa moderna do que sobre a democracia ateniense.
A historiografia conservadora advertia sobre “os perigos da democracia” (no momento da Revolução Francesa). A escravidão e os pagamentos públicos são considerados fontes de corrupção da democracia, acostumando a multidão à “indolência” e dando a ela o lazer de participar da política, “ao passo que nos países em que a servidão não existia, os cidadãos, obrigados a trabalhar para garantir a própria sobrevivência, não tinham tanta disponibilidade para se empregar nos negócios do governo […] a falta de ocupação o tornava indolente. Como via apenas escravos a trabalhar, ele desprezava o trabalho”.
A questão não era o fato os atenienses não trabalharem o suficiente mas, acima de tudo, o fato de não servirem. “Sua independência e o lazer que desfrutavam para poder participar da política foram a causa da condenação da democracia grega. […] a participação da multidão era um mal em si mesmo […] Na ausência das formas tradicionais de controle político, se fazia necessária uma espécie de disciplina econômica tornada possível [pela sociedade capitalista]. […] faltava o Estado e a economia burguesa modernos. […] a independência do cidadão trabalhador foi consistentemente traduzida como indolência da ralé ociosa, e com ela veio a predominância da escravidão.”
Para Hegel, a condição básica da política democrática eram os cidadãos serem liberados a necessidade do trabalho. Essa leitura serviu, para que a historiografia conservadora, sem nenhum interesse em enfatizar a multidão trabalhadora na democracia ateniense, legitimasse seu descrédito da massa democrática.
A transição da multidão mecânica para a ralé ociosa ocorreu no século XVIII, especialmente na Inglaterra. Wood cita E. P. Thompson:
“O século XVIII testemunhou uma mudança qualitativa nas relações de trabalho. Uma proporção substancial da força de trabalho ficou realmente mais livre da disciplina do trabalho diário, mais livre para escolher entre empregadores e entre trabalho e lazer, menos presa a uma posição de dependência em todo o seu modo de vida do que havia sido antes ou do que viria a ser nas primeiras décadas da disciplina das fabricas e do relógio. Trabalhando geralmente em suas próprias casas, possuindo ou alugando suas próprias ferramentas, trabalhando para pequenos empregadores, muitas vezes em horas irregulares em mais de um emprego, eles conseguiram fugir dos controles sociais da casa senhorial e ainda não estavam sujeitos à disciplina do trabalho na fábrica. O trabalho livre trouxe consigo um enfraquecimento dos velhos meios de disciplina social.” (THOMPSON, E. P. Customs in Common, Londres, 1991, p. 38-42.)
Os trabalhadores pobres da Inglaterra, desprezando a “grande lei da subordinação” e a tradicional deferência do servo para com o senhor, alternavam-se entre “o clamor e o motim”, “amadurecendo para toa espécie de maus atos, seja a insurreição publica, ou o saque privado, e, “insolentes, preguiçosos, ociosos e devassos […] eles trabalham apenas dois ou três dias da semana.”
É necessário destacar as diferenças fundamentais entre a condição do trabalho na antiga democracia ateniense das condições de trabalho no capitalismo moderno.
“Na democracia capitalista moderna, a desigualdade e a exploração socioeconômica coexistem com a liberdade e a igualdade cívicas. […] O poder do capitalista de se apropriar da mais-valia dos trabalhadores não depende de privilégio jurídico nem de condição cívica, mas do fato de os trabalhadores não possuírem propriedade, o que os obriga a trocar sua força de trabalho por um salario para ter acesso aos meios de trabalho e de subsistência. Os trabalhadores estão sujeitos tanto ao poder o capital quanto aos imperativos da competição e da maximização dos lucros.” (Democracia contra o capitalismo, p.173)
O direito de cidadania não é determinado pela posição socioeconômica, e a igualdade cívica, por sua vez, não afeta diretamente a desigualdade de classe e a democracia formal deixa fundamentalmente intacta a exploração de classe. Assim o capitalismo coexiste com a democracia formal.
A cidadania democrática em Atenas significava que os pequenos produtores diretos estavam livres de extorsões extra-econômicas às quais os produtores diretos nas sociedades pré-capitalistas sempre foram submetidos. A igualdade política não somente coexistia com a desigualdade sócio-economica, mas também a modificava substancialmente – a democracia era mais substantiva do que formal. Na Grécia Antiga a cidadania tinha profundas consequências para camponeses e artesãos. Somente no capitalismo tornou-se possível deixar fundamentalmente intactas as relações e propriedade entre capital e trabalho, enquanto se permitia a democratização dos direitos políticos e civis.
Mas poderia o capitalismo sobreviver à democracia?
Para que isto acontecesse, a antiga ideia grega foi derrotada por uma concepção completamente nova da democracia. O momento critico dessa redefinição foi a fundação dos Estados Unidos. Os direitos políticos no capitalismo deixaram de ter a importância que tinha a cidadania na democracia grega. A democracia passou a ficar confinada a uma esfera “política” – em que aparentemente residiria o poder – formalmente separada, enquanto a economia seguia suas regras próprias. Se já não era possível reduzir a quantidade de cidadãos, então se passou a restringir o alcance da cidadania, esvaziando-a de poder real.
O antigo conceito de democracia surgiu de uma experiência histórica que conferiu status cívico único às classes subordinadas, criando, principalmente, aquela figura sem precedentes, o cidadão-camponês. O modelo moderno vem basicamente da experiência anglo-americana (estadunidense), de que ha variantes alemã, francesa e inglesa. O modelo moderno representa basicamente a ascensao das classes proprietárias (burguesas). Não se trata de camponeses que se libertam da opressão de seus senhores, mas da afirmação dos novos grandes proprietários de sua independência em relação à monarquia. Esta é a origem dos princípios constitucionais modernos, das ideias de governo limitado, da separação de poderes, como critérios centrais da democracia.
Se a cidadania é o conceito constitutivo da democracia antiga, o princípio fundamental da democracia moderna é o senhorio. O cidadão ateniense afirmava não ter senhor, não ser escravo de nenhum homem mortal.
A Magna Carta (de 1688), ao contrario, foi um documento não da cidadania livre, mas dos próprios senhores que afirmaram privilégios feudais e a liberdade da aristocracia tanto contra a Coroa quanto contra a multidão popular: a liberdade de 1688 representou o privilegio dos senhores proprietários de dispor como quisessem de sua propriedade e de seus servos.
A afirmação do privilégio aristocrático contra a invasão das monarquias produziu a tradição da “soberania popular”, de que deriva a concepção moderna de democracia: o povo passou a ser um estrato restrito da população, que constituía a nação política situada entre a monarquia e a multidão. Enquanto a democracia grega teve o efeito de quebrar oposição entre governantes e produtores, ao transformar camponeses em cidadãos, a divisão entre proprietários governantes e súditos camponeses foi a condição constitutiva da “soberania popular”, no começo da Europa moderna. Trata-se do surgimento de uma nova espécie de poder “limitado” do Estado, a fonte do que seriam chamados de princípios democráticos, como o constitucionalismo, a representação e as liberdades civis. A “nação política” que emergiu e manteve a subordinação política das classes produtoras.
Na Inglaterra, a anuência do Parlamento passou a representar a anuência de todos. Um homem era considerado presente no Parlamento, mesmo se não tivesse o direito de eleger o seu representante. Uma minoria de proprietários tinha o direito de representar toda a população. O Parlamento é soberano, mas o povo não. A doutrina da soberania parlamentar atua contra o poder popular. Só existe política no Parlamento atrelada a uma crescente concentração do poder no Parlamento e especialmente no executivo.
A cidadania ativa seria reservada aos homens proprietários e deveria excluir não apenas as mulheres (consideradas seres “de carne”, não “de razão”), mas também os homens que não tivessem “com que viver por si só” – ou seja, aqueles cuja sobrevivência depende do trabalho prestado a outros. Divisão, portanto, entre uma elite proprietária e uma multidão trabalhadora.
Ao deslocar o centro do poder para a propriedade, o capitalismo tornou menos importante o status cívico, pois os benefícios do privilegio político deram lugar à vantagem puramente “econômica”, o que tornou possível uma nova forma de democracia (Que todos participem das decisões, porque o poder está em outro lugar).
Por isso, foi necessário apresentar as relações entre capital e trabalho como relações entre indivíduos iguais e livres, sem direitos e obrigações normativas, privilégios ou restrições jurídicas.
O surgimento do “individuo” – soberania individual – teve um preço pago pela multidão trabalhadora, tendo que se desfazer seus laços da comunidade do trabalho, para ingressar como indivíduo ao sistema politico. Foi na forma de um agregado de indivíduos isolados, sem propriedade e vínculos comunitários, que a “multidão trabalhadora” entrou para a comunidade de cidadãos. O pressuposto histórico de sua cidadania foi a desvalorização da esfera pública, e a consolidação de uma nova relação entre o econômico e o político, com os poderes transferidos para aquela esfera da propriedade privada e do mercado, em que a vantagem puramente econômica assume o lugar do privilégio e do monopólio jurídico do mundo pre-capitalista. A desvalorização da cidadania é atributo essencial da democracia moderna. Daí a tendência da doutrina liberal de representar os desenvolvimentos históricos que produziram a cidadania formal com a ênfase na liberdade do individuo – a liberação do individuo de um Estado arbitrário.
Na Atenas democrática, cidadania significava que os pequenos produtores, em particular os camponeses, eram, em grande parte livres da exploração “extra-econômica”. As liberdades política e econômica eram inseparáveis. Na democracia capitalista a posição sócio-econômica não determina o direito à cidadania (todos são iguais diante da lei e ai começa a desigualdade, segundo Marx) – e a isso se resume o significado do “democrático” na democracia capitalista. A igualdade jurídica nem modifica significativamente a desigualdade de classe – e é isso o que limita a democracia no capitalismo. A igualdade política na democracia capitalista coexiste com a desigualdade sócio-econômica e a deixa fundamentalmente intacta.
***
Para aprofundar a reflexão sobre a relação entre democracia e capitalismo, recomendamos a leitura do artigo “Igualdade substantiva e democracia substantiva“, do filósofo marxista húngaro István Mészáros, publicado na última edição da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda: ensaios marxistas.
***
Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros, Estado e política em Marx, A nova toupeira e A vingança da história. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.
Deixe um comentário