Um olhar argentino sobre o Brasil: Raymundo Gleyzer e “La tierra quema”
A câmera de filmar como arma de combate. Era assim que o documentarista argentino Raymundo Gleyzer via sua arte. O diretor portenho pode ser colocado junto com Glauber Rocha, Santiago Alvarez, Fernando Pino Solanas e Octavio Getino como um dos maiores expoentes do cinema engajado de sua época. Mas se estes dois últimos, responsáveis por levar às telas o clássico La hora de los hornos (1968) eram peronistas de esquerda e membros do grupo “Cine Liberación”, Gleyzer seria guevarista e integrante do PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores).
O desaparecimento do jovem cineasta, com apenas 34 anos de idade, em 1976, pelas mãos da ditadura militar rioplatense foi o desfecho trágico de uma vida comprometida com a luta do proletariado. O motivo: “havia feito filmes imperdoáveis”, segundo o escritor Eduardo Galeano. Alguns testemunhos afirmam que foi levado para o centro de detenção El Vesubio. Em seguida, teria sido torturado e depois, assassinado. Seus restos nunca foram encontrados.
Ao longo de sua vida breve, o rapaz filmaria em diferentes locações. Esteve na fronteira da Argentina e Bolívia, onde produziu a trilogia Ocurrido en Hualfin (1965). Já Nuestras islas Malvinas (1966) foi rodado no arquipélago reivindicado por Buenos Aires com o objetivo de mostrar as condições de vida do povo local. Em 1969, seria a vez de Nota especial sobre Cuba, que mostrava o país caribenho que tanto admirava (lá se relacionaria com vários profissionais do ICAIC, o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica). Um de seus trabalhos mais conhecidos e polêmicos viria a seguir, México, la revolución congelada, de 1970, sobre os desdobramentos da revolução mexicana (o filme ganhou prêmios internacionais em Locarno, Mannheim e Adelaide).
Originalmente membro do Partido Comunista, acabaria, com o tempo, por se afastar da agremiação em busca de um caminho político mais radical para mudar o cenário social de seu país. Entraria na Frente Antiimperialista de Trabajadores de la Cultura (setor cultural do PRT-ERP), realizando películas sempre com caráter militante e até mesmo propagandístico, como os Comunicados cinematográficos del ERP. O documentarista, de fato, concordava e era influenciado, em grande medida, pelo ideário de Mario Roberto Santucho. Pagaria caro por sua opção política…
Após a dissolução da Fatrac, fundou o “Cine de la Base”, grupo que se relacionaria com a FAS (Frente Antiimperialista por el Socialismo), sempre denunciando a demagogia e o “populismo” peronista, assim como a repressão “fascista” contra os ativistas de esquerda. Faria o provocador Los traidores (lançado em 1973 e premiado no Festival de Ravena), seu único longa-metragem de ficção, uma crítica duríssima à aristocracia sindical peronista em particular, e argentina, de forma geral: uma denúncia contra os líderes e burocratas obreiros colaboracionistas. Ni olvido ni perdón, sobre o massacre de Trelew, viria a seguir. E sua última fita, Me matan si no trabajo y si trabajo me matan, lançada no ano seguinte.
Para Gleyzer, o cinema seria como um fuzil: uma ferramenta usada em defesa dos despossuídos. E com esse instrumento, ajudaria na luta pela libertação dos povos da América Latina.
Entre os vários filmes que produziu, não se pode deixar de mencionar La tierra quema, realizado no Brasil, em 1964. Vale lembrar que Gleyzer trabalhava sempre em condições precárias, difíceis, adversas. E sua obra de juventude não seria diferente.
É possível perceber, em La tierra quema, uma nítida influência do Cinema Novo. Toques glauberianos, traços de Nelson Pereira dos Santos e seu Vidas secas, algo do livro El llano en llamas de Juan Rulfo, e quem sabe até, uma inspiração para o título em Luchino Visconti e A terra treme. Essa obra de formação, ainda que breve, é o embrião de suas fitas posteriores. A luz estourada, o cenário realista, o estilo didático, o tom jornalístico e uma certa ingenuidade estão presentes. E a postura rebelde do cineasta, também.
É verdade que a narrativa tem algo de professoral e mesmo, artificial. Os diálogos são estranhos, sem maior fluidez, truncados e com um sotaque bastante peculiar, inseridos posteriormente. Tem-se a sensação de que os personagens, sertanejos pobres (“camponeses”, de acordo com o narrador), atuam para o filme, sem muita desenvoltura. E que o objetivo ali é principalmente passar uma mensagem contra a opressão e as desigualdades sociais. A fome, a sede, a seca e o êxodo estão lá, implacáveis. Mas já se pode notar algumas qualidades do filmmaker iniciante: os ângulos, a escolha das cenas, as prioridades estéticas.
Gleyzer foi ao Nordeste aos 22 anos, com o colega Jorge Giannoni, que o abandonou no meio da empreitada. O jovem argentino, deixado para trás pelo amigo, acabaria recebendo a ajuda, em última instância, do diretor de fotografia brasileiro Rucker Vieira. E o apoio de Víctor Proncet (nome artístico de Vittorio Pronzato), que seria o responsável pela música e textos deste documentário sui generis (uma realidade reconstruída a partir da encenação de quadros com trabalhadores rurais da hinterlândia nordestina).
A narrativa acompanha a história de João Amaro (sempre em roupas esfarrapadas), sua mulher e filhos, que decidem partir do interior depois de seis meses sem chuva. Um cachorro e um gato são seus animais de estimação. No cenário, ossadas e insetos. A comida feita pela esposa, rala. E o único brinquedo de um dos meninos: uma caixa de papelão vazia da “Aliança para o Progresso”! Depois de chegarem à cidade, se tornam pedintes. A última cena: uma criança negra, desolada, numa calçada do vilarejo, em frente a uma casa, ao lado de um quadro com o retrato pintado de Jesus (representado por um homem branco). Ela pega a imagem e a vira para a parede. A mensagem: ali nem Cristo olha mais para o povo; tampouco a população consegue ver o Senhor, que parece não estar lá para ajudar os miseráveis…
Quando o curta de 12 minutos, em preto e branco, estava para ser concluído, ocorreria o golpe militar de 1º de abril. Gleyzer conseguiu sair do Brasil com o material e voltar para seu país, onde finalizaria a película. Lá, o filme seria aclamado por sua força visual e mensagem política e em 1965, ganharia o prêmio do Instituto Nacional de Cinematografia da Argentina, assim como outros nos festivais de Gênova e Viña del Mar. Daí em diante, a história é conhecida. E Gleyzer se tornaria um dos mais importantes documentaristas de nosso continente…
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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Seu livro mais recente é Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado em conjunto com Lincoln Secco. A Boitempo prepara para 2016 o ambicioso Caio Prado Júnior: uma biografia política, de Luiz Bernardo Pericás. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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