Retalhos da memória (II)

retalhos2[Paisagem de Ouro Preto, de Alberto da Veiga Guignard]

Por Izaías Almada.

“Meu caminho é de pedra, como posso sonhar?”
– M. NASCIMENTO/F.BRANT

LEIA”RETALHOS DA MEMÓRIA (I)“, DE IZAÍAS ALMADA.

Para os últimos trinta anos, contudo, os que me foram dados viver intensamente, mergulharei eu mesmo como autor inconteste das minhas mais recentes e legítimas memórias, correndo – aqui sim – o risco da inconfidência proposital, da maledicência voluntária ou involuntária e mesmo de algumas inegáveis injustiças. “Lembrar é resistir” é o título de uma peça que escrevi em coautoria, mas pode ser também “Lembrar é desistir”. Uma questão de escolha.

Serão essas memórias mais recentes recheadas de calor. E assim não haverá contemplação para ninguém. Nem para mim mesmo. Como sou feito da mesma massa da qual é feito o leitor, estaremos, portanto, em pé de igualdade. Guerra é guerra.

Não esperem de alguém que conseguiu chegar ao século XXI, vencendo inúmeros preconceitos e desafios, as possíveis virtudes anímicas e cordiais de um trovador renascentista ou de um romântico poeta francês. Se é que algum dia os trovadores renascentistas e os poetas românticos franceses tenham sido necessariamente virtuosos.

Não que as memórias de e sobre Pedro sejam ilegítimas, não. Apenas – e como já lá se vão muitos anos – não são mais só minhas, repito, se é que me faço entender. Não me pertencem, estão muito distantes no tempo, sombreadas… Digamos que pertençam à História ou, com alguma modéstia, à minha própria história.

A propósito, devo dizer também que não tenho a menor intenção de ser meu advogado de defesa perante a vida vivida, enquanto da vida eu pouco sabia ou ainda tinha ingênuas esperanças de que o mundo poderia ser melhor do que aquele em que vivi e ainda vivo. Ou pelo menos que fosse melhor o meu país. Minhas escolhas, erradas ou não, foram feitas com alegria, entusiasmo e dúvidas terríveis.

Neste particular, o de advogar em causa própria, é preciso acrescentar que nunca tive muita sorte com advogados, embora tenha vários deles por amigos. E muito respeito e admiração pelos que defenderam presos políticos após o golpe de estado de 1964.

São homens e mulheres, profissionais, que passam a vida a tentar entender a justiça e depois, entendendo-a ou não, aplicá-la aos conflitos humanos, quando na verdade – em sua maioria – não conseguem nem uma coisa nem outra, embora de si pensem o contrário.

Não vou aqui, contudo, aí sim, para não incorrer em enorme injustiça citar, em contrapartida, o nome de excelentes e probos advogados brasileiros da minha geração ou da geração imediatamente anterior à minha. Eles existem, com certeza, não são muitos e sabem disso.

Como qualquer um de nós, simples mortais, boa parte dos advogados mal se dá conta do significado da palavra justiça. Afinal, o que é justiça, o que significa de fato a justiça?

Perguntem a cem, mil, dez mil advogados o que é a justiça e terão cem, mil ou dez mil respostas diferentes, dado o valor relativo do conceito de justiça para homens, sociedades e culturas distintas. Em épocas também distintas.

A justiça, embora muitos a queiram eterna e atemporal é circunstancial e muda com o tempo, com os costumes, com o avanço da ciência e da tecnologia, com as concepções religiosas.

Com exceções, que sempre existem, é claro, para cada advogado a justiça é, na melhor das hipóteses, no atual estágio da sociedade capitalista – sem que o confessem – o valor do cheque que vai pagar a causa defendida.

Exatamente o mesmo procedimento que pode se dar com uma consulta médica, uma reportagem jornalística, um projeto arquitetônico, a edição de um livro, uma obra de engenharia, uma descoberta científica. So what?

Posso dar modesto e significativo exemplo, entre os vários que presenciei: quando Pedro esteve preso pela segunda vez, no final dos anos 60, seu advogado, o baiano simpático de voz tonitruante Raimundo Paschoal Barbosa, impotente para defendê-lo e a outros prisioneiros perante o regime de exceção, desculpem o eufemismo, tornou-se ao mesmo tempo advogado do “Esquadrão da Morte”, um grupo de policiais paulistas, comandados pelo facínora delegado Sérgio Paranhos Fleury, que fazia justiça com as próprias mãos em nome de uma sociedade que não lhes tinha dado procuração para isso. A não ser é claro, a velha e rançosa direita nativa e muitos de seus amestrados militares de então.

De início, com a eliminação dos chamados marginais. E depois com prisioneiros políticos. Quando Pedro esteve no Presídio Tiradentes presenciou numa madrugada de 1969, com o testemunho de vários de seus companheiros, a retirada de um preso comum (como se designavam os prisioneiros que não eram políticos), levado por policiais do “Esquadrão da Morte” para ser executado. Os jornais noticiaram dois dias depois à execução do “presunto”.

Contudo, nesse clima, o jurista Paschoal Barbosa pensava assim servir a Deus e a Mamom, mas não fazia nem uma coisa nem outra. Acabava por ser cativo da própria ditadura civil-militar brasileira (agora dito sem eufemismo) e dos desmandos de um corporativismo policial/militar dos mais violentos e corruptos até aquele momento no país.

Ingênuo? Pragmático? Irresponsável? Oportunista? Não, Raimundo Paschoal Barbosa era apenas um advogado… E como tal, impotente para aplicar a justiça, embora pensasse o contrário.

E é bom que se diga que não foi o seu trabalho que tirou Pedro da cadeia, não…  Isso foi dito a Pedro pelo oficial militar que presidia a sessão do conselho da 2ª Auditoria Militar da Av. Brigadeiro Luis Antonio, em março de 1971, ao lhe conceder a liberdade após 25 meses preso, no dia em que também ganhou a liberdade o sargento do Exército Carlos Roberto Pitolli, hoje advogado e amigo… Feliz o cidadão que passa pela vida sem precisar de advogados. Pelo menos em determinadas situações.

A maioria silenciosa da sociedade norte americana, talvez um dos ajuntamentos humanos mais doentios que a história do homem já produziu contemporaneamente, capaz de “eleger” uma figura como George W. Bush, por exemplo, como seu presidente por oito anos (até com fraude comprovada na apuração dos votos), vive à mercê dos advogados e seus escritórios de alto luxo.

Lá, como aqui, se o cidadão tiver dinheiro e puder pagar àquilo a que se chama de um “bom advogado”, poderá dormir razoavelmente tranquilo. Perguntem ao banqueiro Daniel Dantas ou a qualquer outro banqueiro. Ou ao impoluto ministro Gilmar Mendes e alguns outros também impolutos juristas. Ou juízes, como agora o Don Quixote das araucárias paranaenses. De sobrenome Moro.

Mas talvez nem isso. Caso contrário, a lei pode ser implacável. A lei? Ora a lei… Se ela não atende aos interesses da minoria, que mudem as leis ou que sejam transgredidas.

Mas deixemos de lado os advogados.

CONTINUA

***

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em Retalhos da memória (II)

  1. Hugo Pequeno Monteiro // 06/02/2016 às 6:38 pm // Responder

    Prezado Izaías,

    É com muito interesse e até uma certa dose de reconhecer em sua trajetória de vida a minha trajetória de vida, que estou lendo os seus “Retalhos da Memória”. A questão dos advogados, a “lei” e o seus agentes em particular é o que mais revolta aqueles que como eu e você olham a sociedade brasileira críticamente. Vou compartilhar uma história triste que me contaram hoje pela manhã: O irmão de uma pessoa de quem gosto muito, foi preso e espancado brutalmente simplemente por estar andando a pé por ruas do bairro de Guaianazes por volta das 11 hs da noite de ontem. Acusado injustamente de ter roubado um automóvel (este rapaz não sabe dirigir!) foi bastante espancado na delegacia para onde foi levado. Com este ato bárbaro eles queriam que ele assinasse uma “confissão” e com isso os criminosos que o prenderam poderiam engordar as estatísticas de “combate a violência” divulgadas pela PM e seu grande comparsa e protetor o governador Geraldo Alckmin. O rapaz resistiu a esta brutalidade e não assinou a confissão. Ele tem a consciência tranquila de que não cometeu crime nenhum. Infelizmente ele está errado:
    Ele não se deu conta que vive no Brasil, uma terra onde o MAIOR DOS CRIMES É TER NASCIDO POBRE E MULATO/NEGRO.
    Como você lutei contra a ditadura e tambe´m sonhei para nós todos um país melhor, mais justo, não racista. Infelizmente este país ainda não aconteceu.
    É muito triste se sentir como um exilado em seu país de origem como eu me sinto.

    Saudações socialistas,

    Hugo P. Monteiro

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    • Izaías Almada // 11/02/2016 às 12:50 am // Responder

      Caro Hugo, só hoje vi o seu comentário, pois estou em fase de escrita de um novo livro, envolvido em inúmeras pesquisas.
      A sensação que tenho, depois de tantos anos vivendo a política nacional é – sob certos aspectos – a mesma que você tem: somos estranhos no nosso próprio país, quase exilados. Lendo lá em cima sobre o PSOL fiquei pensando: Que país é esse? Depois de 10 anos formado, o partido ainda não sabe como avançar politicamente? Brincadeira.
      Falam, falam, falam, mas dão voltas em torno de si mesmos.
      A democracia, falha e hipócrita, conseguida à custa de alianças espúrias, e que tanto criticam está cedendo terreno ao ódio e à intolerância entre brasileiros. O fascismo bate à porta. Será que o “purismo” da nova esquerda tem alternativas para ele fora de possíveis alianças com forças democráticas e talvez algumas delas também espúrias ou vão quixotescamente combater os moinhos de vento do capitalismo apenas em seus sonhos revolucionários?
      Abração,
      Izaías Almada.

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