Retalhos da memória (I)

Por Izaías Almada.

“Meu caminho é de pedra, como posso sonhar?”
– M. NASCIMENTO/F.BRANT

Escrever as minhas memórias aos setenta e três anos de idade pode dar ao leitor a aligeirada e precoce impressão de que estou, ao chegar a esse patamar cronobiológico, abdicando de uns bons anos ainda por viver. Não, não… Asseguro que é exatamente o contrário. Espero daqui a quinze, vinte anos ainda poder escrever a outra parte delas, esta sim, talvez a derradeira.

Há vidas que, bem ou mal, podem não caber em poucas páginas, não creio ser o caso da minha. Calma… Não vejam nisso nenhuma atitude arrogante ou mesmo presunçosa de minha parte. Se tiverem paciência, poderão compreender e comprovar tal constatação com a leitura do que aqui vai ser escrito.

Contudo, em muitas ou poucas páginas, não importa, é sempre bom ter em conta que as memórias, ainda mais quando recheadas de alguma ficção para substituir lacunas do que não se lembra com clareza, serão sempre traiçoeiras, muitas vezes mentirosas até, pois cuidam de realçar as nossas virtudes (ou o que entendemos serem as nossas virtudes, que fique bem claro) e aplainar e disfarçar nossos pecados, mesmo os mais singelos. E que serão muitos, com toda certeza.

Memórias que podem se transformar num exercício de sincero ou fingido narcisismo, já que o nosso lado obscuro quase sempre atrai mais a curiosidade alheia, tentando-nos assim a exaltar os próprios pecados e a disfarçar as virtudes. Há os que pensam exatamente o contrário. Dependerá, contudo, do ponto de vista de cada um, de sua visão do mundo, de sua formação cultural, de seus princípios, até mesmo de sua religiosidade e, nessa perspectiva, tanto faz.

Para não cair em tal armadilha, até porque não tenho a intenção deliberada de agradar ou desagradar a quem quer que seja com as minhas palavras, ideias e pensamentos (e paradoxalmente muito menos a mim mesmo que escrevo para meu próprio gozo e satisfação), escolhi um atalho que me foi proposto pela imaginação.

Em parte isso se deve a uma atitude consciente, que julgo ser própria da natureza do escritor, isto é, aquela que me concede inteira liberdade para escolher o tema e as armas (palavras) com que vou pelejar. Além da cronologia e dos fatos e lugares abrangidos por essa escolha.

E nessa perspectiva, a de quem maneja muitos dos cordéis da sua própria existência, declaro que o meu passado mais remoto, o da primeira infância, da adolescência e o período vivido até os quarenta anos de idade, pouco mais pouco menos, já não me pertence e, portanto, posso dispor dele como se fosse outro escritor que quisesse romancear uma vida qualquer ou uma fatia dela. Ficcionando-a ou não.

Sou, assim, personagem de mim mesmo. E essa possibilidade é fascinante. Vejo esse passado, o que abrange os primeiros quarenta anos da minha existência (a vida não começa aos quarenta?) como sendo uma parte de mim que já deixou de me pertencer e sobre ela tenho a minha própria avaliação, o que me dá inteira liberdade de criticar nela o que considero criticável e enaltecer aquilo que, porventura, ainda venha a julgar virtuoso já em pleno século XXI.

Penso que a minha visão do mundo permite tal exercício. Crítica e autocrítica para os mais exigentes. Fofocas e intimidades para os espíritos menos exigentes. Corro assim os dois mais humanos dos riscos, o da vaidade e até mesmo o da soberbia.

Para esse passado de quarenta anos construo um personagem que sou eu e ao mesmo tempo não sou. Dele não me orgulho, embora valente, e nem sinto pena, embora ingênuo e covarde.

Um personagem, aliás, que já foi mesmo chamado de covarde, de Jeremias, o Bom, de alguém pouco ousado, de um dinossauro político, de gato, de pessoa com e sem valor, até mesmo de um escritor “razoável”, esses ingredientes e valores, enfim, encontrados e adquiridos na vida da maioria dos seres humanos.

Porque o ser humano, em sua maioria, é dado a rótulos, não consegue conviver sem eles, particularmente aqueles que, sempre em cima do muro, não sabem muito bem o que fazer da vida, ou na vida… Andam por aí a rotular o próximo para minimamente entenderem as diferenças, se é que as entendem. Penso que o Chico Buarque de Holanda poderá explicar melhor essa questão…

Serei, pois, um personagem como outro qualquer, com ou sem rótulos pregados à pele e, nesse período, o dos primeiros quarenta anos, PEDRO passa a ser o meu nome, a minha identidade ficcional, por assim dizer.

CONTINUA

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em Retalhos da memória (I)

  1. discangaiba // 14/01/2016 às 3:31 pm // Responder

    Ngb,,q

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  2. Assis Rondônia // 14/01/2016 às 7:47 pm // Responder

    Espero a nova parte. Até esse asseiro, somente se disse de como dever vir a ser; falta agora o miolo, ou núcleo duro. Aguardo.

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