A rosca boliviana: dois modos de conhecer a sua história

rosca ze pauloPor José Paulo Netto.

Os tempos atuais (que o saudoso equatoriano Agustín Cueva há muito caracterizou como “tempos conservadores”, próprios da “direitização do Ocidente”) são exemplares para indicar o nível a que chegou o processo da decadência ideológica, aludido por Marx em 1873 e amplamente tematizado por Lukács num relevante ensaio de 1938 (“Marx e o problema da decadência ideológica”, acessível em G. Lukács, Marxismo e teoria da literatura. S. Paulo: Expressão Popular, 2010).

É claro que a decadência ideológica revela-se com invulgar nitidez nos midiáticos apologistas/porta-vozes do capital e nos seus escribas panfletários. Entretanto, mesmo em ambientes ditos letrados, cultos e aparentemente eruditos, inclusive acadêmicos, ela se entremostra – frequentemente mesclada à (e sempre favorecida pela) preguiça intelectual, que é parte integrante do processo da decadência.

Entre os acadêmicos, uma tal preguiça socorre-se de subsídios fornecidos por autores que se tomam como credíveis pensadores pós-modernos. Caso exemplar é o procedimento – em moda especialmente nos últimos anos – de dissolver as especificidades da ciência histórica nos tecidos da ficção. Nos anos 1990, figura tão expressiva como o Prof. Boaventura de Sousa Santos doutrinava que, para o “novo paradigma” pós-moderno, a ciência, “enquanto narrativa não ficcional, tem um grau de criatividade menor, mas […] é apenas uma questão de grau o que a distingue da ficção criativa”; por isto, anotava doutoralmente, “está precludida qualquer possibilidade de demarcações rígidas entre disciplinas ou entre gêneros, […] entre ciência e ficção” (Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. S. Paulo: Cortez, 1995, p. 332; itálicos não originais). O festejado sociólogo lusitano ecoava assim, na última década do século passado, entre outras, as ideias de L. Hutcheon acerca da não distinção entre história e ficção (explicitadas em A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. New York: Routledge, 1988) e a proposta de H. White de pensar “o trabalho histórico como o que ele manifestamente é: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa” (Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. S. Paulo: EDUSP, 1992, p. 11).

Em posição diametralmente oposta – e na sua crítica rigorosa aos pós-modernos –, os marxistas (“ortodoxos”, “superados”) insistem em que a “narrativa” histórica, de natureza científica, não se confunde e/ou identifica com a “narrativa” ficcional, relacionada à arte literária. Distinguem uma da outra pela sua especificidade estrutural, pelas suas categorias constitutivas e pela sua função social. No tratamento sistemático que oferecem de ambas, porém, sustentam que elas, ademais de exigirem empenho e esforço exaustivos, dispõem de um particular caráter cognitivo – ressaltam que ambas propiciam um conhecimento peculiar da história e da sociedade.

Pois bem: no último 1º de dezembro, Sergio Almaraz Paz, uma das mais brilhantes inteligências da Bolívia no século XX, se fora vivo completaria 87 anos – mas ele faleceu precocemente, em 1968, aos 40 anos. E foi pensando em sua obra de ensaísta notável (Petróleo en Bolivia.La Paz: La Juventud, 1958 e nos escritos póstumos de Réquiem para una república. La Paz: Los Amigos del Libro, 1969 e de Para abrir el diálogo. La Paz: Última Hora, 1975) – da qual o texto seminal é El poder y la caída. El estaño en la historia de Bolivia (La Paz/Cochabamba: Los Amigos del Libro, 1967) – foi pensando em sua obra (hoje integralmente acessível: Obra completa. La Paz: Plural, 2009) que me ocorreram as reflexões com que abro a coluna deste mês. Todavia, valem aqui, preliminarmente, umas dez linhas sobre a sua vida.

Sergio Almaraz Paz (01/12/1928, Cochabamba), já antes de frequentar (1943/1945) a Universidade Mayor de San Andrés (La Paz), militou na juventude do Partido de Izquierda Revolucionaria (fundado em 1940). Em 1946, cursou a escola de quadros do Partido Comunista de Chile. Depois (1950) ingressou no Partido Comunista de Bolivia, participou (1951-1952) do II Festival Mundial da Juventude, em Berlim, e do Congresso Mundial da Paz, em Viena; em 1955, viu-se expulso do partido. Incansável publicista (em 1966, criou a revista Praxis) e organizador político, foi sobretudo um estudioso da história da Bolívia da primeira metade do século XX, que analisou à luz das suas singulares concepções marxistas.

Seu ensaio mais decisivo, a meu ver, é El poder y la caída, que aborda o problema central da Bolívia do seu tempo: a constituição e a consolidação da rosca. Com esta palavra, a tradição democrática designa a inteira captura do Estado boliviano pela oligarquia (a própria rosca) que, por cerca de meio século (até à Revolução de 1952), dominou a economia, a política e a sociedade do país, explorando brutalmente os trabalhadores e lesando com sistemática voracidade os fundos estatais. Oligarquia cujo núcleo se constituía dos proprietários das minas, fundamental mas não exclusivamente de estanho – situadas principalmente em Potosí e Oruro, que por anos responderam por 70% das exportações do país, que chegou a ser o segundo produtor mundial. Oligarquia de que foi expressão acabada S. Patiño, seguido por M. Roschild e C. V. Aramayo, em cujo benefício as forças do Estado promoveram incontáveis matanças e chacinas; o leitor interessado nessa história macabra – mas também heroica pela resistência dos trabalhadores – pode consultar a crônica dos horrores a serviço da rosca no documentado trabalho do histórico trotskista boliviano Guillermo Lora, Historia del movimiento obrero boliviano (La Paz/Cochabamba: Los Amigos del Libro, esp. II-III-IV, 1969-1970-1980).

Visto do ponto de vista latino-americano, El poder y la caída inscreve-se na documentação que, nos anos 1950, abordava a questão da defesa nacionalista dos recursos minerais, notadamente o petróleo, em face da rapacidade dos monopólios – são desses anos os textos do argentino A. Frondizi, Petróleo y política (Buenos Aires: Raigal, 1954), o de Gondim da Fonseca no Brasil, Que sabe você sobre petróleo? (Rio de Janeiro: S. José, 1955) e o de R. Betancourt, Venezuela, política y petróleo (México: Fondo de Cultura Económica,1956); como indiquei acima, Sergio Almaraz Paz também se ocupou da mesma questão (em Petróleo en Bolivia, de 1958).

El poder y la caída, no entanto, é muito mais que uma amostra dessa bibliografia nacionalista: análise da rosca boliviana, é também a expressão privilegiada da formação da nova consciência social que se constituía no país e que, meio século depois, redimensionada, daria rosto e voz aos movimentos sociais protagonizados pelos trabalhadores (índios, mestiços) descendentes dos povos originários. A compreensão da Bolívia contemporânea passa, necessariamente, pelo conhecimento da atividade analítica e propositiva dos pensadores fundantes daquela nova consciência social – e a obra de Sergio Almaraz Paz, nesta perspectiva, é parte do esforço coletivo e diferenciado de uma plêiade de intelectuais brilhantes, em que se contam, ao lado de figuras mais antigas, como Carlos Montenegro (1904-1953), personalidades como Marcelo Quiroga Santa Cruz (1931-1980) e René Zavaleta Mercado (1937-1984). Todos eles, lavrando a seara da teoria com ênfase sócio-política, contribuíram para o conhecimento histórico da sociedade boliviana.

Mas a chave heurística fornecida pela pesquisa histórica não é a única a propiciar o conhecimento da Bolívia da primeira metade do século XX: a arte literária, através de seus meios próprios e específicos, oferece um contributo de inequívoca relevância para tal conhecimento. Comprova-o sobejamente a ficção de Augusto Céspedes (1904-1997), outro dos elaboradores daquela consciência social. Formado em direito em 1924 (pela mesma Universidade Mayor de San Andrés, frequentada por Sergio Almaraz Paz), jamais advogou: profundamente marcado pela Guerra do Chaco (entre Bolívia e Paraguai, 1932-1935), que cobriu como jornalista, dedicou a sua vida à imprensa, à política e à literatura. Animado por um forte sentimento nacionalista, mas alheio à perspectiva socialista, vinculou-se desde os primeiros anos da década de 1940 ao Movimiento Nacionalista Revolucionario (protagonista central da revolução de 1952) de Paz Estenssoro e Siles Suazo.

A literatura de Céspedes conta com títulos bem conhecidos: Sangre de mestizos, de 1936; El dictador suicida, de 1956; El presidente colgado, de 1966 (que, refigurando a trágica sorte do presidente Gualberto Villarroel, provocou polêmicas entre o autor, o já citado Guillermo Lora e o argentino Jorge Abelardo Ramos) e Trópico enamorado, de 1966. O fato de seus textos mais divulgados serem anteriores ao que depois se designou como o “boom da literatura latino-americana” não impediu que Céspedes fosse logo qualificado como autor de primeira linha na ficção continental.

Em meu juízo, seu romance mais importante é de 1946: Metal del diablo (traduzido e lançado no Brasil duas décadas mais tarde: Metal do diabo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967). O tema do livro é precisamente a rosca que Sergio Almaraz Paz analisou: ficcionando a trajetória de Zenón Omonte (personagem obviamente inspirado em S. Patiño), Céspedes reconfigura esteticamente a dinâmica da rosca, sua função social corrupta e antinacional (porque antipopular), sua violência inumana e a sua destreza para manipular as instituições políticas, colocando o Estado e seu aparato a serviço de mesquinhos interesses empresariais.

O quadro sócio-histórico que a análise científica, concreta, de Sergio Almaraz Paz desvenda minuciosamente torna-se sensível em destinos pessoais típicos graças à literatura de Céspedes. O conhecimento da Bolívia da primeira metade do século XX, indispensável para o conhecimento da Bolívia dos dias atuais, é-nos oferecido por dois modos distintos de objetivações humanas ideais: a ciência e a arte. Distintos, diferentes, sem que qualquer hierarquia subordine um ou outro – ambos são igualmente necessários. Confundi-los e/ou identificá-los só contribui para torná-los, a ambos, exercícios cuja significação converte-se em meramente… “narrativa”.

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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.

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