Caso Vale/BHP/Samarco: o problema é a eficiência
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Por Edemilson Paraná.
Desde que o desastre ecológico ocorreu têm sobrado análises sobre a suposta ineficiência corporativa e governamental que figuram entre as causas de uma dentre as maiores catástrofes socioambientais da história brasileira. Tais leituras, por mais rigorosas que sejam do ponto de vista técnico, erram no fundamental. O problema não foi causado por ineficiência de nenhuma das partes envolvidas, mas, ao contrário, pelo excesso de eficiência de todas elas. Explico.
A busca pelo lucro máximo, típica de qualquer empreendimento capitalista, dirige-se na direção da ampliação e intensificação da atividade produtiva com a máxima redução de custos. Até aí nenhuma novidade. Em tempos de globalização neoliberal, tal cálculo dá-se sob os auspícios da chamada “gestão de riscos” vinculada às “boas práticas em governança corporativa”. O receituário, bastante simples e já batido, passa pela diminuição do papel regulador do Estado em nome da “autorregulação” das empresas que, no mercado, disputam os corações, mentes e, especialmente, bolsos de potenciais acionistas, investidores, clientes. O raciocínio é elementar: as mais probas e transparentes tendem a atrair para si mais confiança e, desse modo, mais investimentos e oportunidades de negócios e lucros; as mais duvidosas e obscuras menos de tudo isso, processo que possibilitará ao mercado regular a atividade em questão apenas por meio da preferência dos agentes. Quando muito, uma “auditoria externa” feita por uma empresa amiga qualquer, contratada e bem paga com essa finalidade, dará conta do problema. O resto – Estado, política, participação social – seria intervenção desnecessária e ineficiente no “modelo de negócios”. Afinal, quem entenderia mais de mineração do que a própria mineradora?
Tal qual somos ensinados nos manuais de economia básica sobre a mão invisível de Adam Smith: a eficiência proveniente da busca de todos os agentes em guardar seu próprio interesse da melhor forma possível acaba, no fim, por beneficiar a sociedade como um todo (e que melhores exemplos de tal belo postulado do que o recente escândalo da Volkswagen, o desastre ecológico do vazamento de petróleo no Golfo do México pela British Petroleum em 2010, as incontáveis fraudes financeiras da crise de 2008, ou mesmo o escândalo Eron no início da década passada?).
A reflexão volta, então, sempre para a cândida e desejável eficiência dos mercados, esses “seres míticos”. Vejamos onde ela é capaz de nos levar.
Propositalmente fechado à participação popular, desaparelhado e sem prerrogativa regulatória real, ao Estado resta, neste modelo, o controle posterior e pro forma da atividade em questão, como um mero escritório a emitir “atestados de qualidade técnica”; isso quando não estamos a tratar de sua captura por tais empresas por meio da gestão de interesses a beneficiar agentes administrativos e políticos no comando desse mesmo Estado ajoelhado aos interesses corporativos. Corrupção? Ineficiência? De forma alguma. Trata-se, ao contrário, justamente da eficiência das grandes corporações em atentar contra o público, a democracia e a sociedade em nome de seus bons e justos interesses comerciais. Absolutamente dentro do script.
Ganha-ganha. Da parte dos agentes do Estado, mais eficiência. Não bastasse sua remuneração nada modesta, muitos se elegem, reelegem e são “indicados” para cargos por meio deste mesmo bom acordo de cavalheiros. Como cereja do bolo, o mesmo Estado que, com dinheiro público, construiu, financiou e ainda financia a atividade de empresas como a Vale/Samarco, vê-se com o pires na mão a mendigar os royalties por meio do qual, nas palavras de seu excelentíssimo prefeito, “uma cidade como Mariana simplesmente não pode se sustentar”. Mais eficiência. Para isso, lembremos da pressa diligente com que o governador de Minas Gerais Fernando Pimentel e o prefeito de Mariana Duarte Júnior, ambos financiados pela mineração em suas campanhas, se articularam para, de dentro da sede da Samarco, dar uma entrevista coletiva cuja principal mensagem à população foi a de que a empresa “está cuidando do que é de responsabilidade dela”. Não é brilhante?
Para tornar perfeito o crime, ou melhor, a justa busca pelos interesses corporativos, a Vale tenta se ausentar da parte que lhe cabe na tragédia a partir de uma intrigante posição nas estruturas de responsabilização legal, ou seja, uma pirâmide de pessoas jurídicas, apresentando-se, junto da australiana BHP, como meras “acionistas” da Samarco. O nome dessa bela manobra? Joint Venture. Traduzindo, a boa e velha privatização dos ganhos com socialização dos custos. Quanto mais pulverizada (e confusa) a cadeia de responsabilidades econômicas e socioambientais, melhor.
É que o crime compensa. Seria absolutamente ingênuo acreditar que a empresa não tinha conhecimento da possibilidade do rompimento. Tanto o tinha que seus engenheiros passaram a dizer isso abertamente na imprensa, em especial diante da possibilidade de novos rompimentos. O que dizer dos órgãos reguladores? Na situação precária e corrupta em si que caracteriza seu desaparelhamento, desconhecimento e conhecimento da situação praticamente dão no mesmo. O que se torna óbvio é que, em todos os casos, o risco vale a pena ser corrido. As fórmulas interessadas e nada neutras da moderna governança corporativa neoliberal, na prática, batem. Se a multa vier (sempre menor do que o ganho auferido no passado operado de modo fraudulento) valerá a pena, e com folga, pagar. Lamentavelmente, o mesmo não pode ser dito do ambiente, das populações, os afetados de sempre, para quem o dinheiro pouco serve de reparação. Até mesmo a ONU acaba de descrever como “inaceitável” a (não) resposta do Brasil e da Vale/BHP ao desastre.
Tudo somado, sob o capitalismo, eficiência econômica definitivamente não guarda relação de igualdade automática com “eficiência” social e ambiental. Debaixo desse mar de lama, com o perdão da expressão, o problema, longe de ocasional, é bem mais profundo: é de modelo econômico e societal. Não é porque ele é ineficiente. Pelo contrário, é justamente porque ele funciona que estamos tendo de lidar com mais esta tragédia.
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Edemilson Paraná é jornalista, mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. Dele, leia também no Blog da Boitempo os artigos “Da direta à esquerda: a crise diante da falta de um projeto de país“, “O Brasil no pêndulo das elites: entre liberalismo submisso e desenvolvimentismo autoritário“, “Disputar o povão: neopentecostalismo e luta de classes“, “As raízes da escalada conservadora atual” e “Lula, o cerberus da política brasileira“.
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Essa questão do mercado sobreposto ao público vem se arrastado a tanto tempo que, hoje, temos dificuldades em eleger responsabilidades.
Podemos situar a origem dessa confusão por volta da década de 1970 com as crises do petróleo, do eurodólar, e sobretudo com a desvinculação do dólar ao ouro que possibilitou a flutuação das moedas e a existência de nuvens monetárias dominadas por grupos de especuladores, no que podemos dizer: o começo da hegemonia do capital financeiro.
Tudo isso foi agravado com a crise da dívida da década de 1980 e, sobretudo com a adoção de políticas neoliberais nos anos de 1990;
Quando o PT assumiu em 2003, que todo mundo esperava a mudança do rumo, quebrou a cara porque apenas tentaram fazer uma certa maquiagem tentando o impossível, isto é, fazendo uma distribuição do botim de tal forma que todos ganhassem um pouco. Acontece que alguns ganharam muito e, enquanto a onda favorecia dava pra sobrar alguma coisa para os de baixo. Porém, quando as coisas se complicaram, ao nível do sistema, passou a não sobrar. Quem estava ganhando muito continuou e, com a falência da iniciativa, nossa presidente jogou a toalha de vez e o povão começou a amargar dias terríveis que não se sabe quando vai e nem se vai terminar.
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Temos que concordar com o conteúdo do artigo, porque mostra a diferença entre Capitalismo e “Capetalismo”.
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