Cinco verbetes sobre Theodor W. Adorno

Boitempo 32[Fotografia do artista plástico Elyeser Szturm feita especialmente para esta coluna de Ricardo Musse]

Por Ricardo Musse.

Teoria crítica

O termo “teoria crítica” surgiu como codinome para o marxismo, na década de 1930, época da ascensão do nazi-fascismo e do stalinismo. Sob tal disfarce, delineou-se uma nova formulação da doutrina, preocupada em preservar essa linhagem sem o amparo de suas âncoras tradicionais, o proletariado e o partido.

A versão então exposta, ulteriormente denominada “materialismo interdisciplinar”, atesta o predomínio intelectual e político, entre seus partidários, de Max Horkheimer, na ocasião diretor do Instituto de Pesquisas Sociais. Os artigos publicados na revista do Instituto, Zeitschrift für Sozialforschung, sobretudo, os de sua lavra, constituem a espinha dorsal do movimento que ficou conhecido como “Escola de Frankfurt”.

Examinados de um ponto de vista retrospectivo, os ensaios dos principais colaboradores – Erich Fromm, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Theodor Adorno – prenunciam a futura diáspora. Não seria difícil, porém, considerar os desenvolvimentos teóricos posteriores desses autores como tentativas de correção da primeira “teoria crítica”.

Adorno concebe um conceito expandido de “experiência”, mais abrangente que o de “filosofia social”, descrito por Horkheimer como a junção de teoria e pesquisa empírica, de filosofia e saber científico especializado. No decorrer de sua obra, procurou incorporar outras modalidades de conhecimento, tais como a vivência individual (cujo caso mais paradigmático aflora nos aforismos de Minima moralia, em 1951) e a reflexão sobre a arte – desdobrada em uma série de textos que encontra seu fecho na Teoria estética (1970).

Aufklärung

Durante a Segunda Guerra, Adorno e Horkheimer escreveram juntos Dialética do esclarecimento. Trata-se de uma inflexão radical na “teoria crítica”, estruturada até então sob a égide de uma práxis direcionada para a adoção de critérios e interesses racionais. O conturbado contexto mundial, concomitante à implantação de diferentes formas de economia planificada na Alemanha, na União Soviética e nos Estados Unidos, levou-os a abdicar de sua expectativa anterior de superar a injustiça por meio de uma progressiva racionalização da ordem social. Nesse cenário, emerge, ao primeiro plano, a questão: “Por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”?1

Adorno e Horkheimer não compreendem o esclarecimento (Aufklärung) no diapasão do idealismo alemão (Kant, Fichte, Hegel), que considera esse processo como uma rota que conduz exclusivamente à emancipação. Debruçam-se sobre sua dialética própria – resumida na expressão “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” –,2 pressentida, entre outros, por Marx, Nietzsche e Freud.

Nessa acepção, Aufklärung torna-se indissociável da dominação social da natureza. Dialética do esclarecimento procura reconstituir a “pré-história” da reificação, na tentativa de explicar por que a mesma lógica, a da “razão abstrata”, preside, simultaneamente, a ordem econômica (a troca mercantil), a esfera do conhecimento (a ciência moderna) e as formas de dominação (e de legitimação política). Propõem assim uma reflexão sobre o caráter destrutivo do progresso, numa perspectiva que não visa “conservar o passado, mas resgatar suas esperanças”.3

Indústria cultural

Adorno e Horkheimer criaram o conceito “indústria cultural” para nomear a modalidade de arte destinada ao consumo de massa. Trata-se de um produto elaborado não mais segundo o padrão e a escala do trabalho artesanal, mas conforme o esquema capitalista de produção de mercadorias, no qual o valor de uso é reduzido à condição de mero suporte do valor de troca.

Em contraposição às expectativas de Walter Benjamin, Adorno avalia esse fenômeno, antes mesmo da redação do capítulo da Dialética do esclarecimento, como apenas mais um instrumento de dominação social.4 Enquanto Benjamin, de olho na cena russa e confiando no potencial desencadeado pela cooperação no trabalho criativo, predica a “politização da arte”, Adorno destaca a despolitização inerente a uma situação em que as massas estão confinadas à pura passividade.

A indústria cultural insere-se no quadro mais amplo da administração do “tempo livre”. A organização do lazer no âmbito do processo de valorização do capital promoveu uma racionalização de procedimentos que expandiu a reificação, prolongando a não-liberdade característica do espaço da produção, para o mundo do consumo e daí para a esfera da vida imediata. No entanto, nem por isso, adverte Adorno, cabe supor que a consciência esteja completamente integrada.

Ele confronta ainda os objetos da indústria cultural com o ideal artístico de exposição da “vida verdadeira”. Mercadorias no sentido pleno do termo, seus produtos, construídos em função do efeito visado, extinguem a autonomia da obra, por conseguinte, a própria possibilidade da arte subsistir como fonte de conhecimento, reserva utópica ou ação voltada para a emancipação.

Forma ensaio

Exacerbando uma tendência latente na primeira versão da teoria crítica, Adorno descarta o proletariado e, com ele, o partido, como motor da negatividade. A crítica da sociedade transfere sua atenção do processo de produção capitalista para a análise de seus efeitos. Esse deslocamento não significa um repúdio das teses do materialismo histórico, ao contrário, ressalta – ao atestar a inversão entre meios e fins – que o predomínio do aparato econômico ainda condiciona a consciência e o inconsciente dos indivíduos.

É, portanto, como dimensão reificada, carente de autonomia, que a subjetividade torna-se tema prioritário de investigação. O direcionamento da análise para o singular, o transitório, o não-idêntico, por sua vez, impõe uma retificação da atividade conceitual, desmontando a ilusão de uma “subjetividade constitutiva”.

O predomínio da “forma ensaio” nos textos e no estilo de Adorno deriva tanto de sua afinidade e militância na vanguarda modernista, como da premissa de que a exposição não é indiferente à teoria. A insurreição contra a totalidade sistêmica e a filosofia da identidade requer, por um lado, procedimentos específicos como o uso de tropos pouco habituais (parataxes e quiasmos, por exemplo) e a composição de constelações que associem sem hiatos o conteúdo e a dimensão especulativa. Mas também, em outra vertente, demanda construções pertinentes ao gênero “fragmento”: aforismos, notas, verbetes, pequenos escritos, estudos, palestras, artigos, modelos críticos.

Dialética negativa

Dialética negativa (1966) conecta o exame crítico dos pressupostos metodológicos do conhecimento com a compreensão do presente histórico. O livro pode ser considerado, ao mesmo tempo, o ápice e o ponto terminal do marxismo ocidental.

Nele, a contestação da filosofia tradicional desemboca em um alargamento do conceito de filosofia, um movimento reiterado inúmeras vezes ao longo da linhagem do marxismo ocidental. Adorno distancia-se dessa vertente, porém, em sua insurgência contra a primazia do método, com a tentativa de proceder “metodicamente sem método”. Mas também e, sobretudo, por sua convicção de que o capitalismo, mesmo depois de sua metamorfose em “mundo administrado”, não pode ser explicado supondo-se que as determinações características da sociedade seguem o modelo – delineado pelo idealismo alemão – de um sujeito unitário.

No sentido estrito do termo, dialética negativa designa a autoconsciência da submissão da subjetividade à sua prisão categorial, a crítica da mutilação dos indivíduos pelo cativeiro social moldado pelo aparato de autoconservação. A meditação, a reflexão “especulativa” preserva a negatividade ante o existente, limpando o terreno para um “pensamento de conteúdos”.

A metacrítica da teoria do conhecimento desdobra-se assim em crítica da sociedade. A passagem para o materialismo, um segundo giro copernicano, prepara a dialética para expressar conceitualmente o não-idêntico, rompendo com a “filosofia da identidade” que Adorno detecta tanto no par antitético “positivismo-idealismo”, como nas tentativas de assentar a dialética nas ciências naturais (Engels) ou na ação revolucionária do proletariado (História e consciência de classe).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
ADORNO, Theodor. Minima moralia. Rio de Janeiro, Azougue, 2008.
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa, edições 70, 1982.
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
HORKHEIMER, Max (ed.). Zeitschrift für Sozialforschung. Reprint. München, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1980.

NOTAS

1 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, p. 11.
2 Idem. Dialética do esclarecimento, p. 15.
3 Idem. Ibidem, p. 15.
4 O capítulo intitula-se, significativamente, “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” (Idem. Ibidem, p. 113-156).

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Elyeser Szturm é artista plástico. Professor da UnB e doutor em artes visuais pela Université de Paris VIII. Ganhou o Prêmio de viagem ao exterior do XVI Salão Nacional da Funarte e o VII Salão da Bahia. Participou da Bienal 50 Anos, da 25a. Bienal de São Paulo, das mostras Território Expandido 3 e Faxinal das Artes, entre outras. A partir de hoje, passa a ilustrar a coluna mensal de Ricardo Musse, no Blog da Boitempo.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

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