Os retrocessos de CLACSO

clacso 2015 emir[XXV Assembleia Geral da CLACSO: VII Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais]

Por Emir Sader.

O Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) completa três anos de um novo mandato sofrendo um processo de enormes retrocessos. Despareceu da esfera pública, tanto política quanto intelectual, justamente quando seu engajamento se mostrou mais necessário. Ao mesmo tempo, aboliu ou reduzir enormemente a importância de iniciativas que promoviam a imagem do pensamento crítico, seus autores clássicos, os debates mais importantes. É triste: justamente quando o continente mais necessita do seu pensamento crítico, Clacso retrocedeu, deixou de convocar os grandes debates, seus dirigentes ficaram no anonimato.

É como se Clacso tivesse passado pelo mesmo processo de esvaziamento dos Fóruns Sociais Mundias, que hoje praticamente só existem quando se realizam os Fóruns, a cada dois ou três anos. Clacso agora é assim: só aparece a cada três anos, quando realiza sua Assembleia Geral, depois volta para seu triste anonimato. Clacso necessitaria ter na sua direção alguém que estivesse presente, diariamente, em todas as lutas de ideias, as lutas sociais e culturais, do continente.

Afinal, o que aconteceu com Clacso nestes últimos três anos, que só aparece na hora da Assembleia Geral? A própria questão deveria ser tema de debate público, porque Clacso já teve um papel público importante até o passado recente, é uma perda que tenha deixado de exercer esse papel.

Ocorreu um processo de burocratização acentuado de Clacso. Depois de ter sido uma entidade fundamental para o pensamento crítico latino-americano, um papel de vanguarda ao longo de mais de quatro décadas, o consejo se eclipsou totalmente, ficou reduzido a uma instituição de baixo perfil, perdendo toda sua de projeção pública

Mais recentemente, quando eu assumi a Secretaria Geral (o cargo de direção máxima da entidade), tratei de levar a experiência brasileira para Clacso, desenvolvendo um processo de democratização e de projeção da instituição.

Descentralizando a direção, retomando o cargo de Secretário Executivo Adjunto, promovendo uma participação maior dos centros. Foi criada uma revista – a Critica e emancipação –, com uma direção coletiva, que passou a ter uma função importante. Com longas entrevistas iniciais de grandes pensadores latino-americanos, dossiês sobre importantes temas teóricos e políticos, artigos sobre revistas latino-americanas, resenhas polemicas, tradução de artigos significativos, entre outras secções.

Foi criada uma coleção de Clássicos do Pensamento Crítico Latino-americano, com a publicação de obras dos maiores pensadores do continente, resgatando suas obras, organizadas por um especialista, com introduções às suas obras. Criamos os Cadernos do Pensamento Crítico, publicação mensal inserta nos Le Monde Diplomatiques de vários países do continente, além do Pagina 12 da Argentina e do La Jornada do Mexico, com artigos de vários intelectuais em cada numero. 

Foi fortalecida a publicação de livros, aumentando a quantidade de títulos e sua divulgação, mediante coedições com editoras de outros países. Tivemos o orgulho de, entre outros, publicar vários livros de Álvaro García Linera, o intelectual símbolo e referencia para todo o mandato que realizamos, porque representa o modelo de intelectual que aspiramos. Atividades essas que ajudaram a projetar o pensamento critico e a própria instituição – Clacso.

Tratei de marcar a presença da instituição pela constante publicação de artigos, de entrevistas, dos eventos que realizamos. Isso permitiu uma projeção nunca antes conseguida por Clacso, o que fez com que eu pudesse, inúmeras vezes, ser recebido pelos presidentes latino-americanos de todos os países progressistas.

Foi realizada uma Assembleia Geral em Cochabamba, aberta pelo Evo Morales e concluída pelo Álvaro García Linera, um momento auge da trajetória de Clacso.

Como resultado do fortalecimento politico e intelectual de Clacso, foram obtidos os recursos que permitiram que a instituição comprasse uma sede própria, no meu mandato, pela primeira vez na sua historia. Um casarão reformado, muito bonito, que é a própria expressão do crescimento de Clacso naquele mandato.

A adesão a Clacso se estendeu muito, superando os 400 centros. Pela primeira vez foram feitas varias atividades no Haiti, país até ali esquecido, incluindo a organização, planejada já há muito tempo, de um curso de pós-graduação. Incorporamos centros da Europa, dos EUA, entre outros.

Sem me estender mais com referência a outras atividades – essas bastam para ver como a democratização e o fortalecimento da presença na esfera publica são determinantes para o sucesso de uma instituição como Clacso – tenho que me deter um pouco para explicar porque a instituição se eclipsou desde então.

Depois de tentar a escolha de uma intelectual de outra região do continente para dar continuidade ao trabalho – considerando que as contribuições que era possível dar a partir do Brasil em Clacso estavam terminadas  e que não valia a pena voltar a ter um dirigente argentino, porque as contribuições desse país a Clacso também tinham se esgotado –, renovando-o, ao não encontrar um nome com apoio suficiente, aquele que havia trabalhado quase vinte anos comigo, como meu segundo, assumiu um mandato, com o compromisso de colocar em pratica essa decisão de encontrar coletivamente o nome de uma intelectual de outra região, para seguir na direção de Clacso.

Infelizmente não foi nada do que aconteceu. Como acontece em vários casos, quando uma pessoa de segundo escalão assume um cargo de direção política, se revela não estar à altura dessas responsabilidades, e ao invés de dar um salto na sua trajetória, mostra que a prática de atividades administrativas por um longo tempo consolidarem no seu estilo de trabalho uma marca burocrática insuperável.

O poder foi reconcentrado nas suas mãos, cancelando o cargo de Secretário Executivo Adjunto, revelando não aprender a importância da socialização da direção, o que só contribuiu para o empobrecimento do trabalho. Excluiu da Secretaria Executiva as pessoas que pudessem ter uma convivência mais criativa com ele, mediocrizando o trabalho.

A revista perdeu todo o seu caráter de vanguarda, deixou de ter versão impressa, a publicação de livros diminuiu e praticamente foi reduzida a versões pela internet. Álvaro García Linera nunca mais foi publicado, para dar um exemplo simbólico. A coleção de clássicos deixou de ser publicada.

O novo dirigente de Clacso seguiu desenvolvendo as atividades que realizava antes como segundo, ficando vazio o cargo de direção politica e intelectual de Clacso. Desapareceu a presença de quem a dirigia por meio de artigos, de entrevistas, de participação nos maiores eventos do continente. O novo dirigente nunca foi recebido por nenhum dos presidentes dos países progressistas, que nem sequer o conhecem e sabem o que aconteceu com Clacso.

(Chaco Alvarez, um dos argentinos que mais conhecem a América Latina, me perguntou se Clacso havia acabado, porque nunca mais tinha ouvido falar dela. Quando eu lhe explique o que tinha acontecido, ele me perguntou quem a dirigia, eu lhe disse e ele me perguntou “E de que pais ele é?”. Tristemente se trata de um argentino, desconhecido até no seu país.”)

Houve retrocessos em todos os planos, com a perda de Clacso como entidade do pensamento crítico, na mobilização e contribuição do pensamento crítico para ajudar a enfrentar as dificuldades que o continente enfrenta.

Clacso deixou de pronunciar-se politicamente. Nem sobre a morte de Hugo Chávez, nem sobre o caso do avião de Evo Morales na Europa, nem sobre os escândalos da Chevron no Equador, nem sobre os fundos abutre na Argentina, nem sobre tantas coisas importantes que ocorreram no continente nesses três anos. Clacso nunca expressou publicamente seu apoio aos governos progressistas do continente nem ao da Dilma, nem ao da Cristina, nem a todos os demais. Clacso deixou de participar de entidades de supervisão democrática nas eleições em países como Honduras, Paraguai, Haiti, como fazia anteriormente.

Em suma, Clacso desapareceu da esfera publica, porque foi submetida a um processo de burocratização, fatal para a criatividade do pensamento critico. Um processo que diminuiu radicalmente a projeção da entidade, que mediocrizou sua atuação, que a fez se parecer mais a uma outra entidade acadêmica qualquer, renunciando a suas particularidades de vanguarda do pensamento critico latino-americano.

Como um dos resultados, ao invés de renovar Clacso com a eleição de uma intelectual de outra região da América Latina, se repete o mesmo, se dá continuidade burocraticamente à mesma direção, sem dizer porque se pretende um novo mandato, depois do medíocre mandato realizado.

Tentei desenvolver este debate pelos canais anteriormente existentes em Clacso, mas houve uma repressão autoritária, porque o burocrata só consegue manter seu cargo com a ausência de debate democrático e de questionamento das suas formas de atuação.

É uma pena, uma perda, não era necessário que tivesse sido assim. Cada um tem seu estilo, mas só através do trabalho coletivo, agregando e não excluindo gente, é que se poderia ter mantido o nível de importância e de projeção da instituição. Se trilhou o caminho oposto. A burocratização é uma vitória de Sísifo, na verdade uma derrota. Triste que quem assume essa postura burocrática não apenas diminua a instituição, como se torne ele mesmo menor do que quando assumiu a função. É uma pessoa anônima, que por mais que faça, não passa de um burocrata, sem ideias, nem projeção. Pode ser um bom organizador de programas, de eventos, de viagens. Mas nunca passará disso. Será sempre um burocrata, sem capacidade de direção politica e intelectual. Tomando as palavras de Marx, não pode dirigir, tem que ser dirigido. E na ausência de quem o dirija, fica o vazio político e intelectual.

A instituição sobreviverá, ainda que com uma herança pesada a ser superada, mas as pessoas anônimas desaparecerão.

O pensamento crítico latino-americano sente a falta de Clacso, mas não se detém, porque as necessidades da realidade se impõem. Grandes eventos foram realizados, grandes contribuições foram produzidas, importantes obras publicadas, todas sem Clacso, porque a instituição se eclipsou. Os nomes de maior referencia na articulação entre pensamento crítico e ação política, como Álvaro García Linera e Rafael Correa, levam adiante o pensamento critico, o pratica, o promovem.

Esses problemas ainda podem ser superados, se Clacso passar por um amplo processo de democratização, a começar por um grande debate sobre a situação atual da América Latina, do pensamento critico e de Clacso. Que permita recuperar o prestigio e os espaços perdidos pela instituição nestes últimos três anos.

No momento em que a América Latina enfrenta grandes problemas e precisa, mais do que nunca, do seu pensamento critico, a ausência de Clacso é grave. Se mudar suas orientações, ainda poderá contribuir. Caso contrário, seguirá relegada à sua instranscendência atual.

Mas o pensamento crítico segue adiante, com outros espaços e protagonistas, sem ser prisioneiro de praticas burocráticas e esvaziadas de ideias. A realidade da elaboração de ideias é mais forte que instituições que se estancam no tempo. Os próximos anos terão grandes eventos do pensamento crítico, que expressarão o seu vigor e a sua capacidade de reflexão e de propostas a partir da vida realidade concreta.

***

Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros, Estado e política em MarxA nova toupeira e A vingança da históriaColabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

1 comentário em Os retrocessos de CLACSO

  1. Além do colocou Emir, agrego: a direção atual da CLACSO está se omitindo também no importante debate sobre a reconstrução do Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia, Sociedade (PLACTS), que tiveram como fundadores Oscar Varsavksy, Amilcar Herrera, Darcy Ribeiro, Jorge Sabato, Manuel Sadosky, José Leite Lopes, entre tantos outros. Estou na Argentina há quatro meses, em cooperação de pesquisa sobre o PLACTS, como docente de universidade pública brasileira, apoiado pela política de intercâmbio universitário do Brasil com a Argentina; desde que cheguei, tenho perguntado a tod@s. Como andam as linhas de criação, participação e produção regular da CLACSO? Não entendia muito bem as respostas; em geral tergiversavam, ou não explicavam claramente, e mesmo eram reticentes ao descrever o que estaria acontecendo por lá. Agora, ao ler Emir Sader entendi claramente; não há dúvida que os colegas autores dos comentários que tenho ouvido, também não sabem destes antecedentes sobre a burocratização de gestão atual. Impossível deixar que a CLACSO continue assim, após as realizações da gestão anterior no campo intelectual, político e cultural com publicações fundamentais para atualizar o pensamento latinoamericano mais relevante e necessário na atualidade, após 30 nefastos anos de neoliberalismo na região.

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