Perry e Álvaro

linera perry
Por
Emir Sader.

Esta semana, coincidiram comigo pela primeira vez juntas as duas figuras que considero as maiores cabeças teóricas da esquerda contemporânea, e com quem eu tenho a imensa felicidade de poder nutrir há muito uma amizade pessoal: Álvaro García Linera e Perry Anderson.

Álvaro veio apresentar uma conferencia no Instituto Lula sobre o surpreendente sucesso do governo boliviano, encabeçado por Evo Morales e tendo ele como vice-presidente. Perry veio para participar de um seminário da Unicamp e aproveita para recolher materiais para concluir seu próximo livro, com analises sobre diversos países hoje – a última é um longo estudo sobre a Rússia pós-URSS, que saiu há pouco na New Left Review –, e que tem um capitulo sobre o Brasil que ele quer atualizar.

Conheço Perry Anderson há muito tempo, amizade que começou na logo sua primeira vinda ao Brasil, em 1965. Ele já era o líder do grupo de jovens intelectuais que tomou a direção da New Left Review e fez dela, até hoje, a mais importante revista teórica da esquerda em todo o mundo. Ao longo dos anos, Perry foi construindo uma obra teórica notável. Na minha opinião, certamente a de maior vulto entre todas dos marxistas contemporâneos. Não vou me deter em cada um de seus trabalhos, mas a leitura de um livro como Considerações sobre o marxismo ocidental é sem dúvida uma das leituras indispensáveis do nosso tempo. Ele desenvolveu estudos em várias direções, compondo um leque que vai desde análises de países e períodos históricos específicos até apreciações de autores e intelectuais, tudo com uma maestria e criatividade sem igual no marxismo contemporâneo.

Sua liderança intelectual permitiu a construção da equipe responsável pela continuidade e pela qualidade da New Left Review, um caso único na perduração no tempo e na manutenção da alta qualidade dos textos que publica.

Linera eu conheci em um seminário no México há cerca de 13 anos. Logo de cara, sua intervenção me impressionou muito. Pelo rigor teórico, mas sobretudo pela sua audácia e capacidade criativa em abordar, de forma irreverente, grandes temas clássicos da esquerda. Assim que se iniciou o trabalho da Enciclopédia Latinoamericana, me veio imediatamente à mente a ideia de pedir a ele o verbete sobre a Bolívia. Recebemos um texto impecável. (Com a pequena remuneração por esse texto, Álvaro comprou seu primeiro computador, por volta de 2005.)

A trajetória pessoal e politica de Álvaro é extraordinária. Formado inicialmente em matemática, foi militante ativo do grupo guerrilheiro Tupak Katari. Em 1992 foi preso e torturado até que foi liberado sem nenhuma condenação ou processo cinco anos depois. Mesmo nessas condições, produziu textos e reflexões formidáveis. Na prisão, quando pôde pedir um único livro para se distrair, escolheu O capital de Marx. Leu muito e escreveu muito.

Ao sair, foi estudar no México. E no retorno à Bolívia tinha participações importantes nos debates políticos, inclusive na televisão, até que Evo Morales, num gesto surpreendente, o convidou para ser seu candidato a vice-presidente da Bolívia.

Estive na Bolívia durante primeira campanha eleitoral e lembro bem como se foi gestando um movimento vitorioso e uma colaboração estreita entre duas figuras tão distintas, mas tão complementares como Álvaro e Evo. No dia da vitória, Álvaro teve que insistir para que Evo fosse a La Paz, ele queria seguir comemorando com seus amigos e companheiros em Cochabamba. Evo foi, deu umas declarações e voltou, enquanto nós fomos comemorar com Álvaro e outros amigos em El Alto e depois em La Paz.

Mesmo depois das eleições, Álvaro continuou criando uma obra teórica e política sem comparação na América Latina, constituindo-se não apenas num grande dirigente político, mas no mais importante intelectual latino-americano contemporâneo.

Perry e Álvaro têm obras muito diferentes, tanto na escolha de objetos quanto no estilo de análise. Mas o que faz deles grandes intelectuais, os maiores da esquerda contemporâneo, é o uso exímio do marxismo como método – conforme a recomendação insubstituível do Lukács. Dessa forma, a obra de ambos se constitui no mais fértil exemplo da capacidade criativa do marxismo, quando utilizado de forma criativa e audaz.

Poder ter grande amizade e intercâmbio intelectual, político e pessoal com ambas essas figuras que tanto admiro é uma das coisas das quais mais me orgulho.

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Gostou? Para aprofundar a reflexão sobre essas duas figuras da esquerda contemporânea, recomendamos a leitura de A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia (Boitempo, 2010), de Álvaro García Linera, e de A política externa norte-americana e seus teóricos (Boitempo, 2015), novo livro de Perry Anderson.

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros, Estado e política em MarxA nova toupeira e A vingança da históriaColabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

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