Quando o impeachment é mais útil como hipótese do que como fato

daniel bin blog da boitempo 15 02 10Blog da Boitempo apresenta em seu Espaço do leitor textos inéditos escritos por nossos leitores. Quer colaborar também? Saiba como no fim deste post!

Por Daniel Bin.

 

Há alguns dias circulou a notícia que Lula teria aconselhado Dilma “a atender a todos os pedidos do PMDB, mesmo que para isso [tivesse] de desidratar o PT na reforma ministerial.” Na ocasião, Lula teria avaliado ser “melhor perder ministérios do que a Presidência.” No mesmo dia a sua assessoria de imprensa negou que ele tivesse dado tais declarações. Independente disso, é fato que Dilma está cedendo ainda mais espaço ao partido que consegue fazer uma calculada oposição ao governo ao mesmo tempo que se mantém dentro dele. Assim, o PMDB amplia o seu exercício do poder federal. Se não pela via do afastamento de Dilma, poderá seguir aproveitando as concessões que ela lhe tem feito — e nada indica que isso irá parar no atual ajuste ministerial — na busca por concluir o mandato para o qual foi eleita.

Se a situação do PT lhe é preocupante, inversamente proporcional é o ânimo do sócio pemedebista no governo e dos tucanos menos erráticos quanto à pertinência do golpe. (Devo sublinhar este último termo, pois os atuais movimentos pelo impeachment são sim golpistas, e demonstram como as classes dominantes têm dificuldades em lidar com as instituições da democracia, mesmo a liberal). Mas essa é uma maneira de ver as coisas, que tem algum sentido quando consideramos a política como uma esfera autônoma, coisa que ela não é. É preciso lembrar que a sua estrutura é determinada pela estrutura econômica e, nesse sentido, disputas partidárias refletem, em larga medida, as disputas entre as classes sociais (É, aliás, a temática da estrutura da política e sua crise que, com colegas, analiso na edição no 206 da Revista CULT, que sai agora em outubro). Ao considerar a categoria classe na análise desse quadro, podemos lançar uma hipótese alternativa, qual seja, de que, por ora, o impeachment de Dilma melhor serve aos seus promotores — classes — enquanto for uma hipótese do que se esta for transformada em fato.

Não são poucas as análises sobre a utilidade política para o capital de um governo liderado por partido que, originário da esquerda, se convenceu que a única forma de se manter no poder é não mexer nas instituições do estado capitalista que passou a administrar. No entanto, ao capital pode ser tão ou mais útil que esse mesmo partido chegue a uma situação de fragilidade suficiente para convencê-lo a, mais do que não mexer nas estruturas, torná-las ainda mais regressivas, ou seja, ainda mais favoráveis aos estratos dominantes. Mas se a presidenta e o seu partido são assim tão frágeis, por que as classes dominantes não aproveitam a situação para substituí-los pelo modelo original no que diz respeito à regressão de direitos trabalhistas e sociais? PSDB, DEM e PMDB poderiam muito bem fazer o serviço; seguramente ainda mais regressivo, o que já mostraram e continuam a mostrar, seja no nível federal ou em níveis subnacionais.

Ocorre que os custos políticos tendem a ser mais altos a partidos conservadores, pois suas capacidades de obter o consentimento das classes subalternas são menores que as de partidos de origem popular. A maior capacidade destes para influenciar organizações de mobilização social é um mecanismo que pode ser útil ao capital tanto quanto os métodos empregados pelos partidos que lhes são ideologicamente mais próximos. E o PT de hoje é um exemplo disso. Mesmo que a maioria das classes subalternas tenha dúvidas quanto à capacidade petista de atender aos seus anseios, muitas das suas lideranças acabam por aderir e propagar a ideia de que a alternativa eleitoralmente viável ser-lhes-ia pior. E isso não é um sentimento restrito aos muros petistas ou das organizações que lhe são mais próximas. Lembro aqui da postura do PSOL, que no segundo turno da eleição passada pregou o pouco ambíguo “Dilma não nos representa. Nenhum voto em Aécio.”

Fato é que, desde a reeleição de Dilma, temos visto uma série de ataques sobre o trabalho que, pela intensidade, poderiam provocar reações igualmente intensas da parte das organizações de trabalhadores. Contudo, não é o que ocorre, por exemplo, com a maior central sindical brasileira, que representa quase um terço dos sindicalizados em âmbito nacional. Em outra ocasião já me referi a essa ambiguidade de setores do PT e de organizações a ele ligadas, como a CUT, que, há alguns meses, encabeçou manifesto “contra o ajuste fiscal do ministro Levy [grifo meu].” Ocorre que poucos duvidam que o referido ajuste é de responsabilidade tanto de Levy quanto de Dilma e, consequentemente, do PT, cujos parlamentares protestaram mas acabaram aprovando as principais medidas do referido ajuste.

Ambiguidade similar apareceu nos debates sobre o trabalho terceirizado. De um lado, PT e CUT se posicionaram contra o projeto que veio a ser aprovado na Câmara — o projeto ainda depende da apreciação do Senado —; de outro, o governo parecia mais preocupado com os efeitos da ampliação da terceirização sobre a arrecadação tributária. Quando muito, se limitou a timidamente defender que “não [se eliminasse] a diferença entre atividades fins e meio,” mas “reconhec[ia] a importância de ter uma legislação sobre a terceirização.” Ou seja, já estava há muito tempo fora de qualquer pauta o rechaço ao próprio instituto da terceirização, que por natureza tem efeitos deletérios sobre o trabalho. Como bem sintetiza o juiz do trabalho e professor da USP Jorge Luiz Souto Maior, a “terceirização […] representa uma estratégia de destruição da classe trabalhadora, de inviabilização do antagonismo de classe, servindo ao aumento da exploração do trabalhador.”

Desde a inauguração do segundo mandato de Dilma, o cenário tem sido de aprofundamento das medidas regressivas para as classes subalternas. Nesse sentido, as convicções favoráveis a essas classes que ainda restam no atual governo importam menos. Para análises e prognósticos que orientem a luta contra tais medidas regressivas e outras que se anunciam, importa perceber a convicção do governo de que, se quiser se manter no “poder,” terá de seguir fiel às convicções daqueles que ameaçam o seu mandato — o que não quer dizer que tais convicções não estejam presentes dentro do próprio governo, que abriga oriundos da CNA, CNI, Bradesco etc. Bem sintetizou essa situação o senador petista Jorge Viana ao lamentar que, “para salvar o governo, a única solução é piorar o governo. Seria melhor ter perdido a eleição.”

É nesse cenário que tento compreender o jogo em curso pelo impeachment de Dilma. Um jogo em que cada movimento de avanço faz subir o preço que o governo se dispõe a pagar para se manter. Feito isso, segue-se um novo aumento da, digamos, taxa de ocupação de parte da Esplanada. Dilma parece convencida a seguir aumentando a oferta, conforme as supostas palavras de Lula citadas no início. A anunciada migração do controle do Ministério da Saúde, do PT para o PMDB, é até agora o mais significativo movimento nesse sentido. Não apenas pela transferência de poder político, mas por conta da possibilidade de aprofundamento do processo de mercantilização das condições de vida da grande maioria da população. Trata-se de uma questão de disputa econômica que, neste caso, depende substancialmente do estado.

O movimento não é novo; ele é parte do próprio desenvolvimento capitalista, que ao se deparar com limites à acumulação, busca converter em mercadoria relações sociais que ainda não são totalmente guiadas por essa lógica. Mas o movimento também não ilimitado, pois depende das condições políticas para avançar. Saúde, no Brasil, mesmo com todo o avanço da oferta privada, é ainda um tema que mobilizada debates que partem preponderantemente da premissa de fortalecer o sistema público. Mas parece que alguns novos caminhos se abrem em direção oposta. Um deles é a chamada Agenda Brasil, sugerida pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, e que contou com acenos positivos do governo. Ali consta a “possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS.” O movimento soma-se ao do atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que no ano passado apresentou proposta de emenda à Constituição para que esta prescreva como direito fundamental “plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício.”

Toda essa movimentação deve ser analisada também dentro do contexto do chamado ajuste fiscal. Há poucos dias o ainda ministro da Saúde disse não haver “recursos suficientes para financiar ações de média e alta complexidade” no projeto de orçamento para 2016. Segundo ele, “essa é uma situação que nunca foi vivida pelo Sistema Único de Saúde nos seus 25 anos,” que “aponta para um verdadeiro colapso na área.”

Normalmente, os chamados ajustes fiscais são apresentados sob a justificativa da necessidade conjuntural de equilíbrio das finanças públicas. No entanto, quando analisamos a questão dentro de um quadro mais amplo, tais ajustes apontam para mudanças estruturais, onde a conjuntura da urgência serve para conferir alguma legitimidade. Mas crises são também oportunidades para o capital reduzir os custos do trabalho, por exemplo, o chamado salário social, do qual a saúde e a previdência são os componentes mais significativos. É sintomático que esta última tenha passado por reformas regressivas tanto nos governos tucanos como nos petistas. Reaparece agora na Agenda Brasil, que propõe “definir a idade mínima para aposentadoria, mediante estudos atuariais e levando-se em conta a realidade das contas da previdência social.” Por realidade das contas, leia-se apenas o lado da despesa, visto que aumentar tributos é, por definição neoliberal, uma heresia. Pior, há momentos que parece ser heresia combater a sonegação quando esta envolve grandes devedores.

Enfim, o governo brasileiro passou os últimos nove meses defendendo o atual mandato da presidenta da República, que antes mesmo de iniciá-lo já observava os primeiros movimentos golpistas. Há alguns meses, supus que as forças conservadoras do tipo sofisticado tinham recuado na busca pelo impeachment porque a ausência de fato determinado que o justificasse juridicamente dava ao movimento a cor do golpe, expediente que é mais próximo de conservadores práticos do que de conservadores sofisticados. Entendo que a análise segue válida, e a concretização do impeachment é ainda distante. Mas enquanto a situação econômica mantiver o governo politicamente fraco — o que inclui a fragilidade fiscal, pois torna ainda mais cara a busca de apoio —, o impeachment como hipótese seguirá servido aos interesses daqueles que, dentro ou fora do governo, já conseguiram movimentar as pautas do ajuste fiscal, da terceirização do trabalho e da mercantilização. Por outro lado, afastar este governo não vai melhorar o governo, pois a alternativa, por ora, é o modelo original em termos de regressão de direitos.

* Agradeço a João Alexandre Peschanski pelas críticas — acatadas ou não — ao texto, sendo minha a responsabilidade pelas deficiências da análise.

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Daniel Bin entrevistou o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein para a nova edição da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, n.24. A edição conta ainda com um dossiê especial “Cidades em conflito, conflitos nas cidades”, coordenado pelo urbanista João Sette Whitaker Ferreira e artigos de Emir Sader, José Paulo Netto, Luiz Eduardo Soares, Michael Löwy, Flávio Villaça, Mario Duayer, entre outros. Saiba mais sobre a Revista clicando aqui.

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Daniel Bin é professor de políticas públicas na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho. Foi pesquisador visitante nas universidades de Wisconsin-Madison e Yale. Dele, leia também A financeirização da democracia brasileira, A (in)visibilidade da luta de classes nas Jornadas de Junho,  “Uma pessoa, um voto”, ou “um real, um voto”? e “O lulismo, a nova política e o libertador“, no Blog da Boitempo.

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4 comentários em Quando o impeachment é mais útil como hipótese do que como fato

  1. Alexandre Braz Silva // 02/10/2015 às 7:09 pm // Responder

    Agradeceria se pudess

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  2. Questões Relevantes // 02/10/2015 às 11:55 pm // Responder

    Também acredito que o impeachment de Dilma é mais útil como hipótese do que como fato, mas por razões totalmente diversas das apresentadas acima. Deixo aqui o convite para a leitura do artigo em que trato esta questão: LULA, DILMA E O XADREZ POLÍTICO DO IMPEACHMENT ( https://wp.me/p4alqY-hL ).

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  3. Republicou isso em MariaLDario's Bloge comentado:
    Política Nacional. Para onde vai o Brasil?

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  4. Hugo Pequeno Monteiro // 13/10/2015 às 12:01 am // Responder

    Prezado Daniel,

    Assim como você e outros leitores que se manifestaram anteriormente a respeito do seu comentário, entendo que a ameaça do impeachment serve aos propósitos dos capitalistas e suas organizações em manter um governo fraco e pusilânime sob controle total fazendo com que este governo sirva integralmente aos seus interesses. Sua análise sobre o comportamento do PT e o governo em relação às terceirizações e a mercantilização da saúde pública revela o papel nefasto deste ex-partido de esquerda convertido a gerente obediente dos ditames do neoliberalismo. Se o que hoje resta da direção do PT ainda tivesse o mínimo de compromisso ideológico com os trabalhadores, renunciaria imediatamente ao governo e passaria juntamente com outras forças de esquerda a organizar uma oposição forte com objetivo de derrubar um governo de capitalistas dirigido por eles (PSDB,PMDB,DEM) que certamente assumiria no caso de uma renúncia do PT. Entretanto, esta possibilidade tem chances zero de se concretizar dado que o que interessa aos atuais “quadros de direção do PT” que estão no governo é ali se manter.
    Existe uma saída para a classe trabalhadora e esta saída não está no PT.
    As forças de esquerda devem se unir com base em um programa de ação que envolva a mobilização da classe trabalhadora no sentido de se cobrar a taxação das grandes fortunas, a taxação das grande operações financeiras, o resgate imediato do capital sonegado pelo grande capital escondido (mas não tanto) em paraísos fiscais. Fazer os ricos pagarem a conta . Levantar imediatamente e mobilizar a classe trabalhadora no sentido de exigir uma auditoria independente da dívida pública.
    Uma ESQUERDA unida aos trabalhadores pode fazer os vampiros rentistas “investidores” e toda sorte de parasitas similares PAGAR A CONTA.
    Abraço

    Hugo Monteiro
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