Além da esperança|Uma leitura do filme “Que horas ela volta?”

que horas ela volta
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Por Victor Vigneron.

“Que horas ela volta?”, pergunta o pequeno Fabinho (Audrey Lima Lopes e, na maior parte da obra, Michel Joelsas) logo na primeira sequência do filme. Se o título-pergunta pode soar vago antes da sessão, sua enunciação iniciática permite estabelecer algumas das coordenadas básicas da narrativa. Desde já, a presença, a interlocução e o zelo da empregada Val (Regina Casé) contrastam com a ausência da mãe do garoto, Bárbara (Karine Teles), polaridade constante ao longo do filme. A ausência não é um tema novo para Anna Muylaert, diretora e roteirista do filme: O ano em que meus pais saíram de férias (2006, dirigido por Cao Hamburguer) também narra a história de uma criança que vive a ausência de seus pais, perseguidos pelo regime militar brasileiro nos anos 1970[1]. O campo narrativo, contudo, ainda não está totalmente desenhado. Nas sequências seguintes, que supõem um lapso temporal de vários anos, somos informados de que Val também tem uma filha e nesse caso é ela própria que se encontra ausente. Aliás, é possível dizer que o acontecimento fundador do filme não se situa na frase de Fabinho e na primeira sequência do filme, mas no reencontro entre Val e Jéssica (Camila Márdila). No primeiro caso, a pergunta do garoto indica um determinado estado de coisas, aponta sinteticamente para as relações afetivas e sociais entre as personagens. A enunciação (“que horas ela volta?”) é um primeiro indício da existência de um código, e somente ganhará inteligibilidade no interior dessa etiqueta: Val, mulher mais velha, se dirige a Bárbara sempre usando pronomes como “dona” ou “senhora”[2]. Afinal, embora muitos críticos acentuem o caráter liberal da família, é importante lembrar que quem paga as contas é Carlos (Lourenço Mutarelli), por meio de sua herança. E, como Machado de Assis já havia demonstrado com um século de antecipação, o rentismo parasitário na sociedade brasileira não é de modo algum estranho ao gosto por Ramones ou Joy Division.

No segundo caso, a transformação da ausência de Jéssica em presença leva as personagens e suas relações cristalizadas para o terreno da história, entendida como perturbação e como mudança, como má educação[3]. E é justamente aqui que se inserem alguns comentários que exploram as implicações sociológicas do filme. Isso porque a passagem de um estado de coisas atemporal para uma situação de conflito nutriria uma relação direta com as transformações pelas quais a sociedade brasileira passou na última década. A perspectiva de reconhecimento (econômico ou simbólico) de parcelas significativas da população pobre encontrar-se-ia contemplada em Que horas ela volta? pela discrepância das atitudes de Val e Jéssica frente à situação dada: a primeira conhece perfeitamente as limitações corteses implícitas em sua “intimidade” no seio da família e parece não se ressentir disso; sua filha, no entanto, explicita essas limitações, de modo a tornar obsoleta a cortesia. Personagens-gerações com atitudes distintas diante do mundo por conta de diferentes processos de socialização, isto é, de educação: afinal, o professor de História e o grupo de teatro, mencionados por Jéssica, podem fazer estrago[4]. E a menção explícita que ela faz ao seu processo educacional, seja prospectiva (os estudos em Pernambuco), seja perspectiva (a possibilidade de estudar arquitetura na Universidade de São Paulo), sugere o caráter consciente com que ela (e toda uma geração) faz sua crítica[5]. A pólis, que originalmente excluía mulheres, escravos e estrangeiros, agora se ampliou e incorpora o Nordeste. Mas tudo isso sem ilusões: Fabinho e Jéssica ainda têm condições desiguais de concorrência no vestibular.

A hipótese do ancoramento sociológico de Que horas ela volta? encontraria ainda uma confirmação externa. Com variações no repertório mencionado, o filme se articularia a um conjunto de obras que dialoga com esse novo cenário brasileiro ou mesmo latino-americano. Mencionam-se a esse respeito títulos como O som ao redor (2012, dirigido por Kleber Mendonça Filho), Casa grande (2014, dirigido por Fellipe Barbosa), Doméstica (2012, dirigido por Gabriel Mascaro), e, em menor medida, O céu de Suely (2006, dirigido por Karim Aïnouz) e o chileno La nana (2009, dirigido por Sebastián Silva)[6]. É claro que a construção teórica encontra dificuldades na medida em que é questionada pelos próprios autores em questão. Como veremos, por exemplo, Muylaert procura tomar distância de Casa grande. Ainda assim, a própria diretora reconhece a configuração de um novo momento, seja na sociedade, seja no cinema brasileiro. Em diversas entrevistas, aliás, ela afirma ter acalentado o projeto de Que horas ela volta? há décadas, mas só recentemente ter encontrado um contexto propício à sua concretização[7].

Mas a divisão do filme em dois blocos possui ainda outra implicação. Inácio Araujo nota que a chegada de Jéssica, para além de ponto de inflexão da história, marca também uma mudança na modalidade narrativa predominante. Segundo ele, o início do filme estaria mais próximo da forma de trabalho narrativo própria de Muylaert, marcada por uma “sensibilidade minimalista”, isto é, pela exposição do enredo por meio de pequenos elementos implícitos, os olhares, a dimensão gestual, os movimentos e posições de câmera. Nessa modalidade, o inconsciente predomina sobre o explícito e as pessoas “são o que são”, nas palavras de Araujo. Nesses termos, Jéssica não levaria apenas à perturbação do equilíbrio social aparente, mas também à entrada em cena de uma nova forma de desenvolver a história, que o crítico chama de “novelismo”. Em primeiro lugar, o implícito cede lugar ao explícito, de modo que podemos falar num advento da história também em seus desdobramentos estéticos, como forma de contar distinto, por exemplo, da lenda. Mas o “novelismo” não diz respeito a um simples processo de explicitação, ele supõe também uma apresentação esquemática do campo narrativo, de modo que as personagens sejam também tipos, com uma vocação coletiva. Por fim, Araujo nota a acentuação dos traços morais nas personagens frente à situação de instabilidade provocada por Jéssica; e aqui caberia uma crítica à redução de uma situação social (a relação entre patrões e empregados) a uma relação moral (particularmente encarnada pela patroa má).

Mesmo aceitando a hipótese segundo a qual há uma variação de modalidade narrativa no roteiro, o que é um mérito na leitura de Araujo, suas conclusões me parecem discutíveis. O equívoco aqui é confundir níveis explicativos distintos. De fato, o roteiro de Muylaert e o desempenho de alguns atores carregam nas virtudes e vícios de suas personagens. Bárbara é sem dúvida o modelo que legitima essa observação: manda esvaziar a piscina depois de Jéssica ter se banhado nela; xinga a menina, em inglês, diante da própria Val; faz caretas quando Jéssica lhe dá as costas após se despedir pela primeira vez. Mas nada disso permite inferir que a explicitação das relações esteja necessariamente ligada à sua redução ao campo moral. Aliás, é exatamente o contrário que ocorre no campo efetivamente novelístico, onde uma visão de mundo orientada pela polarização entre o bem e o mal encobre o deserto do real sob uma enxurrada de casamentos e nascimentos, que se sucedem à queima da bruxa, no capítulo final.

De resto, embora a moralização seja um elemento presente na segunda parte do filme, o que predomina são os outros dois momentos indicados por Araujo: explicitação e tipificação. E a esse respeito, é interessante refletir sobre a crítica já citada de Carlos Boyero, que mobiliza o Cinema Novo para falar sobre Que horas ela volta?. Na verdade, a menção àquele movimento é funcional: evocado como modismo que atraiu o público europeu num determinado momento, ele teria sido deixado de lado de modo tão abrupto quanto sua irrupção. E nenhum comentário sobre seu conteúdo efetivo, sobre as causas de sua atração ou de seu abandono. Mas essas linhas iniciais ganham um sentido evidente quando o filme de Muylaert é elogiado justamente por tomar distância em relação às formas panfletárias através das quais os temas sociais foram tradicionalmente expostos no cinema: longos discursos, simplificação maniqueísta etc. Não se fala em “novelismo” aqui, mas o modelo de argumentação é simétrico e inverso ao de Araujo: Que horas ela volta? é elogiado por falar da luta de classes sem recorrer às formas tradicionais constituídas pela esquerda, tipificação e explicitação seriam opções estéticas opostas[8].

De fato, uma concepção demasiado estreita do que seria o proletariado fez com que camponeses, operários ou pescadores encontrassem uma presença no Cinema Novo que contrasta com a ausência, por exemplo, das domésticas. É significativo, como nota Ronaldo Pelli em seu comentário citado, que essa categoria fizesse sua aparição numa chave crítica apenas com o Cinema Marginal, em filmes como Copacabana, mon amour (1970, dirigido por Rogério Sganzerla) ou Cuidado, madame (1970, dirigido por Júlio Bressane). Mas esse não é o percurso da crítica de Boyero, que se volta contra a tipificação como procedimento fílmico. Embora não use a expressão de Araujo, fica evidente sua preferência por um trabalho mais transparente, onde as coisas “são o que são”[9]. O uso da expressão é particularmente infeliz no campo cinematográfico, onde a única experiência não mediada que temos é a das imagens. Por sua vez, a tipificação possui plena dignidade criativa como modelo de interrupção da fluência narrativa, como procedimento de simplificação que indica aquilo que a complexidade do real pode também encobrir. A tipificação pode, enfim, ser um meio de estranhamento que nos lembra que o cinema é, quando muito, indício[10].

* * *

Mas o indício possui um valor como paradigma de conhecimento: a leitura sociológica adquire algo de sua força justamente aqui. Gostaria de retomar a menção de Muylaert a respeito de Que horas ela volta? como projeto acalentado há anos. Não seria correto afirmar que a diretora aguardou as condições ideais que correspondessem ao roteiro desejado, pois isso significaria negar as resistências levantadas contra o filme e conscientemente enunciadas por sua diretora. A esse respeito, é significativo que a obra tenha sido lançada primeiramente no circuito europeu e estadunidense e só depois no Brasil. E mais: o filme não foi lançado em nenhum outro país da América Latina. Segundo a diretora, isso reflete a resistência desses países ao mal estar promovido por filmes como Que horas ela volta? e La nana[11]. O filme, portanto, foi concebido com o desejo expresso de intervir num contexto em transformação, mas que não deixa de opor resistências.

Estas são evidenciadas quando Muylaert indica a inserção específica de sua obra na produção cinematográfica brasileira. Tomemos o exemplo já mencionado de Casa grande. Segundo a diretora, este filme carrega ainda uma ótica “da sala”, enquanto Que horas ela volta? (cujo título inicial era A porta da cozinha) assumiria o ponto de vista da cozinha, isto é, da mulher, mãe, nordestina, trabalhadora doméstica[12]. A própria noção de “ponto de vista” reforça que se trata de uma disputa. Há um novo contexto nacional, mas mesmo assim a obra desperta resistência, não apenas por parte da elite, mas também do mundo masculino em geral[13]. Nesse sentido, o final de Casa grande (a relação sexual entre o jovem e a empregada da família) seria significativo a respeito da incapacidade de o mundo masculino dar uma solução ao estado de coisas denunciado: “solução não pode ser repetição”[14].

O que seria, então, uma solução? Ao assistir à segunda parte do filme, nota-se que após a chegada de Jéssica, Val passa por um processo de mudança que tem seu clímax na sequência da piscina, quando pela primeira vez a protagonista entra nesse espaço-tabu, de uso exclusivo dos patrões[15]. Por fim, o desfecho da história acontece quando Val decide abandonar o emprego para cuidar do neto, mudando-se para a casa da filha no Campo Limpo, periferia da zona sul paulistana. O elemento de história-mudança remove as condições de reprodução da compulsão de repetição. Val se reencontra definitivamente com a família, não apenas com Jéssica (ausência obrigada), mas com seu neto (ausência absoluta, desconhecimento). Uma despedida relativamente amistosa e o furto do objeto que passou a simbolizar o falso afeto de Bárbara por Val, marcam ao mesmo tempo uma mudança na forma como esta lida com o mundo e sua diferença geracional em relação a Jéssica. E, por fim, os constrangimentos econômicos continuam na ordem do dia: “eu dou o meu jeito”, afirma Val, encontrando-se finalmente com a dimensão futura.

Até aqui, me esforcei para minimizar a presença de Regina Casé no filme. Mas é impossível a esta altura deixar de acrescentar a Val uma “aura” de sua intérprete. Casé tem se tornado, nos últimos anos, uma das faces especificamente destinadas pela Rede Globo ao público da periferia, com programas como Brasil legal (1995-1997) e Esquenta! (exibido desde 2011). Segundo ela própria, dentro do trabalho proposto por Muylaert, em que um esquema geral é preenchido por falas criadas pelos próprios atores, Casé teria utilizado várias expressões (ela menciona explicitamente “tostec”, usado para se referir à sanduicheira) que aprendeu em seu contato com o povo[16]. Ela não deixa de lembrar ainda seu vínculo com esse tipo de cinematografia, ao referindo-se a sua participação no filme Eu Tu Eles (2000, dirigido por Andrucha Waddington), bem como seus laços familiares com o Nordeste. Casé não deixa de usar um vocabulário que se encontra (sociologicamente, inclusive) em voga: quando evoca as mulheres do povo que já interpretou, não deixa de chamá-las de “guerreiras” e “batalhadoras”. Quando Val afirma que “vai dar seu jeito”, portanto, não estamos num campo tão alheio ao de sua intérprete[17].

Muylaert não encampa esse tipo de vocabulário. Mas é interessante seguir o percurso de sua crítica ao machismo imperante no cinema e na sociedade brasileira em geral. De modo algo análogo à estruturação do filme (a passagem do mito à história), ela nota que o machismo é um modo de pensar quase eterno em sua perpetuação nos sistemas educacionais. Mais uma vez a História como disciplina é evocada, mas aqui sob o signo negativo, como inventário dos grandes homens, dos heróis masculinos que por meio de sua força teriam alcançado sucesso[18]. Essa gramática do sucesso individual, segundo Muylaert, é tão insidiosa que se constitui inclusive como base para trajetórias femininas que não questionam o próprio modo de ser do machismo. Em termos cinematográficos, esta atitude seria performatizada em Sabrina (1954, dirigido por Billy Wilder), evocada como a antítese de Que horas ela volta?[19]. Assim sendo, falar sobre o machismo, torná-lo explícito, é uma tarefa fundamental. E, como se viu, um dos recursos narrativos adotados na segunda parte do filme é justamente a explicitação do não-dito. Talvez em oposição à ascensão pelo casamento, Muylaert acrescenta que as soluções devem ser encontradas no âmbito individual.

O que não gera certo curto circuito em relação ao filme. É verdade que a trajetória de Val não é de modo algum marcada, senão de modo negativo, pelo casamento: o ex-marido é evocado como ausência-esquecimento desejada. Contudo, a transformação da personagem ao longo do filme não pode ser separada do diálogo estabelecido com sua filha. Diálogo difícil, na medida em que Jéssica assume uma postura intolerante, e talvez por isso mesmo, efetivamente política. De resto, em termos de modulação narrativa, o percurso de Val em relação à família de seus patrões, a similaridade desigual entre Jéssica e Fabinho, a atração unilateral deste e de seu pai pela menina tornam o filme de tal forma esquemático, como apontou Araujo, que fica difícil enfatizar o caráter individual (e não típico) das personagens.

É possível aceitar, provisoriamente, a hipótese da referência sociológica ao real. É possível mesmo afirmar que este é sem dúvida um dos méritos do filme[20]. Mas resta uma questão: até que ponto existe um nexo entre sucesso heurístico e esperança política? Se a sequência da piscina é onde de fato somos levados a acreditar que a alegria de Val é a nossa própria e que enfim profanamos um dos símbolos da segregação entre pessoas, talvez seja o caso de dar um passo atrás e de desconfiar de um real demasiadamente otimista e confiante em si. “Esperança” não é afinal algo tão redutor quanto “medo”, para usarmos a definição do campo político que nos foi dada por Duda Mendonça?

* * *

Quando Jéssica é apresentada por Val à família, Fabinho faz um comentário revelador: algo como “ela também fala engraçado”. A menina oferece uma cocada que é aceita por Carlos e rejeitada por Bárbara, o que prenuncia a tensão latente que em seguida explodirá entre o casal. Mas se a chegada da menina intensifica as tensões internas da família, a observação de Fabinho toca num ponto de consenso mais amplo. O comentário é preconceituoso, revela uma postura compartilhada e silenciosa em torno de Val (“também”) e a ausência de dignidade de sua fala (“engraçada”). Nesse sentido, Jéssica é apenas uma confirmação, não a alteridade que leva à reflexão; e o primeiro gesto por parte da família é enquadrá-la nos esquemas iniciais de compreensão que, como vimos, serão sistematicamente desafiados pela menina.

Mas por que o público ri do sotaque? Mesmo se a risada é inicialmente “espontânea”: após o comentário de Fabinho e as implicações evidentes que ele tem, por que o público ri? Mesmo se isso passa batido: se Carlos desperta de sua mediocridade e parte para uma ofensiva sobre Jéssica, terminando por assediá-la, por que o público ri? O riso como reação a uma história dramática não é uma experiência alheia ao que se passa na tela[21]. Não se trata aqui de buscar um horizonte sociológico amplo, sistemático, mas de constatar um determinado horizonte de possibilidade: o gesto criticado é performatizado no próprio momento da crítica[22]. Isso também não implica nenhum questionamento à capacidade intelectual do público, pois dessa forma negar-se-ia ao fenômeno um significado positivo. Significa, isso sim, colocar a seguinte questão: por que a crítica de Que horas ela volta? não encontra vigência imediata? Muito se falou no desmascaramento provocado pelo filme, nas relações postas a nu, explicitadas, que levariam mesmo a reações de desconforto. Mas que torna o falso efetivo mesmo em seu desmascaramento? Talvez a força dessa aparência tenha sido subestimada.

* * *

Não há aqui nenhuma pretensão em esgotar o filme[23]. De qualquer forma, gostaria de fazer uma última observação. Inácio Araujo não se equivoca quando fala na força dos pequenos gestos no filme de Muylaert, que, aliás, se refere à atuação de Regina Casé como um “museu de gestos e posturas”[24]. No entanto, seu erro está em subordinar essa e outras dimensões, como se viu, à lógica da fluidez narrativa. Nessa perspectiva, toma-se cada sequência ou motivo do filme como “caso”, encadeado na sintaxe do roteiro. Sacrifica-se muito assim. Como alternativa, seria o caso de buscar no filme os elementos que o descentram e que o ameaçam.

Se Jéssica é o contraponto que faz com que Val passe por seus “anos de aprendizado” (no sentido de um Bildungsroman), há outra personagem que a acompanha de uma forma bastante diversa: Edna (Helena Albergaria)[25]. Sua presença não é constante. Em dias determinados por um calendário invisível, ela vem ajudar na limpeza da casa. Parece à vontade no ambiente e nos problemas da colega, permite a Val inspecionar o quarto de hóspedes em que Jéssica se instalara, ouve da cozinha a conversa entre Carlos e a menina. Assume inclusive a tarefa de criticar a postura de Jéssica, no que é interrompida por Val, que exige a exclusividade nesse domínio. Edna não influi propriamente nas decisões da colega, não exige que Val se transforme como faz sua filha. De um ponto de vista narrativo, ela “não convence”, segundo um jargão clássico (e vazio) da crítica, pois não tem nenhuma utilidade para o roteiro. Mas isso não faz dela uma personagem indiferente, afinal ela participa, compartilha, atrapalha. Ela é uma ajudante, como os seres dos textos de Kafka[26]. Um ser inespecífico, qualquer, que remete a uma cidadania perdida. Estamos de volta ao campo da ausência, mas não se trata agora da compulsão de repetição, da memória reprimida, falseada ou necessária a partir da qual o roteiro de Que horas ela volta? é construído em sua globalidade. Edna é forma incompleta, jamais assumida como personagem plena, que nos lembra de nosso compromisso com o esquecimento.

A caminho da casa dos patrões, Val e Jéssica passam pelo Largo da Batata. Mas o Largo foi desfeito, já não é largo, já não se sabe o que é, já não é mais usado: outro indício da cidadania perdida[27]. Já não cabe perguntar: que horas ela volta?

NOTAS

[1] Muylaert foi co-roteirista do filme. Sua personagem principal, o menino Mauro, também foi interpretado por Michel Joelsas. A ausência não deixa de ser um mote importante na série Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997, dirigida por Cao Hamburguer), onde as peripécias das crianças ocorriam na ausência de dona Morgana (Rosi Campos) e doutor Victor (Sérgio Mamberti). Muylaert foi co-roteirista da série, exibida na TV Cultura.

[2] Pablo Villaça, “Que horas ela volta?” (Cinema em cena, 29/08/2015).

[3] Isto é, quando a má educação jacobina penetra numa sociedade de corte levando a sua modificação. De Zero de conduta (1933, dirigido por Jean Vigo) a Má educação (2004, dirigido por Pedro Almodóvar), o tema parece entrar pela janela de uma sociabilidade que só tem os restos do jantar a oferecer à patuleia. Nesse sentido específico, parece haver uma incompreensão de fundo quando Inácio Araujo critica a má educação de Jéssica (e dos jovens em geral), apagando seu elemento classista. Inácio Araujo, “‘Novelismo’ não turva sutileza de ‘Que horas ela volta?’” e “Muylaert e Casé” (Falha de São Paulo, 26/08/2015 e Cinema de boca em boca, 30/08/2015).

[4] O teatro parece cumprir recentemente um papel de destaque como elemento disruptivo em filmes como Tatuagem (2013, dirigido por Hilton Lacerda) e A história da eternidade (2014, dirigido por Camilo Cavalcante). Os historiadores esperam por uma melhor sorte.

[5] Isso supõe uma distância em relação aos comentários de Carlos Boyero e Camila Moraes, respectivamente em “Ainda a luta de classes” (El País Brasil, 25/06/2015) e “Parece família, mas não é” (El País Brasil, 05/09/2015). Embora francamente simpáticos ao filme e às duas personagens, é nessa simpatia que se reduz o problema: em relação a Jéssica, a sugestão de certa inocência em sua postura implica uma redução da dignidade política de suas atitudes, como figuração do “bom selvagem” a criticar os códigos por desconhecimento; em relação a Val (Boyero utiliza o adjetivo “stakhanovista”), isso significa desconhecer que o conformismo não exclui a percepção da dominação.

[6] Cito especialmente Ronaldo Pelli, “Filme ‘Que horas ela volta?’ motiva reflexão sobre como o cinema atual retrata a busca por cidadania” (O Globo, 30/08/2015).

[7] Luiz Carlos Merten, “Em ‘Que horas ela volta?’, Anna Muylaert posiciona-se ao focar patrões e empregados” (O Estado de São Paulo, 23/08/2015).

[8] Impossível não pensar nos pouco discutidos O leão de sete cabeças (1970) e Cabeças cortadas (1970), que renderam a Glauber Rocha um divórcio crescente em relação ao público europeu. CARDOSO, Maurício. O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-1974). Tese de doutorado, FFLCH-USP, 2007.

[9] “Eu sou o que sou” (Êxodo, 3:14) é a resposta dada por deus a Moisés. Através dela, ele oculta (e não explicita) seu nome. De um ponto de vista exegético, portanto, o argumento de Araujo conserva sua coerência. Passando ao campo cinematográfico, no entanto, é importante lembrar que a “transparência” possui uma larga tradição crítica. XAVIER, Ismail. O dicurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

[10] “Estranhamento” é um conceito tomado aqui de forma ampla, englobando não apenas a tradição brechtiana, mas também as proposições de Viktor Chklovsky. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 15-41.

[11] Gregório Belinchón, “Anna Muylaert: ‘O classismo está arraigado em todos os estratos’” (El País Brasil, 27/08/2015).

[12] Luiz Carlos Merten, “Em ‘Que horas ela volta?’, Anna Muylaert posiciona-se ao focar patrões e empregados” (O Estado de São Paulo, 23/08/2015) e Anna Balloussier e Guilherme Genestreti. “Regina Casé vive doméstica em filme sobre relação com patrões” (Falha de São Paulo, 26/08/2015).

[13] É nesse sentido que se torna emblemática a polêmica em torno da apresentação e debate do filme na Fundação Joaquim Nabuco, em 29 de agosto, com a presença da diretora e de parte da equipe. Nessa ocasião, dois conhecidos cineastas, Lírio Ferreira e Cláudio Assis, interromperam e quase inviabilizaram o evento, assumindo um protagonismo denunciado por Anna Muylaert como significativo a respeito da incapacidade do mundo masculino do cinema aceitar algo inédito como o sucesso de uma diretora. Caio Delcolli, “Diretora de ‘Que horas ela volta?’, Anna Muylaert comenta machismo e o espaço das mulheres no cinema” (Brasil Post, 05/09/2015).

[14] Em termos históricos, o nível da memória impedida diz respeito à memória atada à compulsão de repetição, incapaz de realizar um trabalho efetivo de rememoração. RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, pp. 83-93.

[15] Um indício de que a equipe do filme tem essa sequência como bastante forte é dado em Luiz Carlos Merten, “’Gostei tanto que chorei duas vezes’, diz Mutarelli sobre ‘Que horas ela volta?’” (O Estado de São Paulo, 23/08/2015).

[16] Luiz Carlos Merten, “De olho no Oscar, Regina Casé fala sobre ‘Que horas ela volta?’” (O Estado de São Paulo, 23/08/2015) e Anna Balloussier e Guilherme Genestreti, “Regina Casé vive doméstica em filme sobre relação com patrões” (Falha de São Paulo, 26/08/2015).

[17] A própria Casé, no entanto, lembra que sua primeira participação no cinema se deu com Tudo bem (1978, dirigido por Arnaldo Jabor), em que ela representa o papel da filha de um casal de classe média, cuja vida é tensionada pela presença de pedreiros no apartamento, por ocasião de uma reforma. A respeito da hipótese de Muylaert quanto à especificidade do atual momento, seria o caso de analisar as diferenças e semelhanças entre os dois filmes, que contam com um enredo semelhante.

[18] Caio Delcolli, “Diretora de ‘Que horas ela volta?’, Anna Muylaert comenta machismo e o espaço das mulheres no cinema” (Brasil Post, 05/09/2015).

[19] Gregório Belinchón, “Anna Muylaert: ‘O classismo está arraigado em todos os estratos’” (El País Brasil, 27/08/2015).

[20] Leonardo Sakamoto, por exemplo, faz referência ao filme de modo absolutamente ilustrativo para falar sobre relações de trabalho: “A minha empregada era quase da família” (Blog do Sakamoto, 06/09/2015). Uma importante ressalva à hipótese sociológica é o descompasso do período de produção do filme em relação à situação de crise política e econômica da época de seu lançamento. Alessandro Janoni e Mauro Paulino, “Longa ‘Que horas ela volta?’ retrata Brasil pré-crise política” (Falha de São Paulo, 13/09/2015).

[21] Ao menos dois comentadores classificam o filme como “comédia” ou “comédia dramática”: Luiz Carlos Merten (O Estado de São Paulo) e Caio Delcolli (Brasil Post).

[22] Não é uma impressão indiferente a quem frequenta o circuito de companhias teatrais “críticas” de São Paulo. De modo distante, esse comentário supõe um complemento às observações de Danilo Nakamura a respeito da peça “Ópera dos vivos”, encenada pela Companhia do Latão: “Encenar o impossível – Uma interpretação da peça Ópera dos Vivos da Companhia do Latão“.

[23] A própria opção por tratar exclusivamente do roteiro e não do campo propriamente cinematográfico, não me deixa à vontade para chamar esse texto de “crítica”. Essa observação serve para o conjunto de textos aqui elencados.

[24] Anna Balloussier e Guilherme Genestreti. “Regina Casé vive doméstica em filme sobre relação com patrões” (Falha de São Paulo, 26/08/2015).

[25] Os comentários a seguir valem, em menor medida, para o motorista Vandré (Theo Werneck), a doméstica Raimunda (Luci Pereira) e o jardineiro Antônio (Luis Miranda).

[26] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, pp. 31-35.

[27] O Largo da Batata, tradicional ponto de comércio e diversão populares na zona oeste de São Paulo, foi palco de uma das mais avassaladoras operações urbanas patrocinadas pela prefeitura da cidade.


 

Victor Santos Vigneron é mestre em história social pela USP e pesquisa temas relacionados à colonização do Peru.

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3 comentários em Além da esperança|Uma leitura do filme “Que horas ela volta?”

  1. Emar Vigneron // 23/09/2015 às 4:26 am // Responder

    Excelente! Ainda mais sendo um artigo de um colega na formação histórica, além fo sobrenome em comum.
    Vou imprimir para mergulhar fundo no maravilhoso texto. Parabéns!

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  2. Maria Regina dos Santos // 23/09/2015 às 6:52 pm // Responder

    Muito bom, ajuda muito na compreensão sobre o roteiro. Ainda não assisti o filme, mas lendo esse artigo certamente terei outro olhar para o mesmo. Parabéns!!!

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  3. Grande filme sobre como a consciência pesada mulher por causa da separação com sua família …. eu realmente entender. O diretor do filme, Anna Muylaert, deu mais um bom filme chamado “Mãe Só Há Uma” ( https://filmesonline.video/263-mae-so-ha-uma-2016.html ).

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