A crise e os golpes contra a classe trabalhadora
É importante saber que, se há uma crise econômica isto se dá porque no capitalismo as crises são cíclicas e inevitáveis. E sendo certo que se o capitalismo tem sido capaz de se reinventar na superação de cada crise, também é certo que as crises, no processo dialético, têm sido cada vez mais graves e profundas, exigindo que se leve a sério a necessidade de se pensar na organização de um novo modelo de sociedade, sob pena de, falseando a realidade, sermos conduzidos à barbárie pensando que estamos fazendo algo efetivo para melhorar as coisas, como se dá, por exemplo, com o projeto de redução da maioridade penal.
Claro que a inevitabilidade da crise não retira as responsabilidades de ações políticas e econômicas que podem acelerar o ciclo ou piorar o problema. Há, por certo, várias críticas que se podem fazer ao governo federal neste assunto, como, por exemplo, referente ao modo como lidou com os direitos trabalhistas, tratando a classe que vive do trabalho como mera reprodutora da lógica do capital, propondo uma inserção social apenas por meio do consumo e não pela realização de projetos sociais de base.
Mas não é possível concluir que sem os erros que possam ser apontados não adviria uma crise, como se o capitalismo fosse sempre justo, bom e equilibrado e que são os governos os culpados de algum eventual desajuste, sendo mais grave ainda querer obter um benefício político eleitoral da crise, tentando fazer supor, de forma absolutamente artificial, que a crise não adviria caso outros nomes sejam conduzidos ao poder governamental.
Por outro lado, parece-me também equivocado imaginar que não se possa interferir no percurso histórico e que toda racionalidade só tem sentido para o desencadear de um processo revolucionário. Mesmo com limites, muito pode se fazer quanto à declaração e à efetivação de direitos sociais e tanto os governos quanto às instituições e a classe trabalhadora, na cobrança e na luta, são responsáveis pelo incremento dessa obra, que se não é suficiente para superar a lógica capitalista, baseada na concorrência e na exploração do trabalho, que parte do pressuposto da acumulação do capital e da desigualdade social, ao menos é capaz de minorar os sofrimentos pessoais, o que é, para tantos, essencial, além de estimular a organização política e as próprias práticas emancipatórias.
Vale perceber, também, que o tamanho real da crise não há como ser medido e esta pode, portanto, ser bastante aumentada por rumores e medos. Os receios e as incertezas do futuro fazem com que muitas empresas, para não sofrerem perdas que possam, mais adiante, virem a ser irreparáveis, pensem em saídas como a diminuição de custos com a redução de pessoal ou mesmo como a diminuição de salários por meio da redução da jornada. Isso, no entanto, apenas reforça a lógica da crise, vez que o desemprego piora o consumo, seja pela perda mesmo de consumidores, já que os desempregados perdem os seus ganhos, seja pelo medo que aqueles que ainda estão empregados têm de consumir, preferindo, em atitude responsável, poupar o dinheiro. Essa redução drástica do consumo causa prejuízo às próprias empresas, mesmo àqueles que buscaram soluções por meio de demissões.
O que se percebe no noticiário de boa parte da grande mídia é que muita gente, infelizmente, está apostando na crise, isto é, incentivando os sentimentos que a agravam.
A quem interessa isso? As respostas não são óbvias. No entanto, a hipótese mais visualizável é a de que a crise econômica interessa a quem deseja estimular o advento de uma crise institucional.
Claro que os fatos noticiados na grande imprensa são relevantes e devem mesmo ser veiculados, apurados, para que os responsáveis sejam efetivamente punidos. No entanto, se os casos estão sendo noticiados, se as instituições (Justiça Federal, Ministério Público Federal e Polícia Federal) estão funcionando, com políticos e empresários de grandes corporações presos, parece-me que o propósito dessa desintegração social vai além de trocar os nomes dos governantes e do partido no poder.
O que se pretende, segundo se anuncia na já divulgada Agenda Brasil, é justificar demandas de redução de direitos trabalhistas, pressionando o governo para encampar as medidas políticas necessárias para tanto, sendo este um percurso facilitado por uma suposta dificuldade de resistência da classe trabalhadora, que se vê diante do dilema de se opor à desestabilização institucional e com isso favorecer a preservação de um governo que tem partido para cima, literalmente, dos direitos trabalhistas, tendo encampado, inclusive, o nefasto projeto de ampliação da terceirização e de privatização das instituições públicas ligadas à educação, saúde, ciência, tecnologia, desporto e meio ambiente, por meio da terceirização e da entrega da administração de serviços públicos nas áreas mencionadas a OSCIPs e OSs, ou de não fazer nada, para não se aliar aos propósitos de sustentação do governo, e com isso ver seus direitos perecerem sem sequer ter lutado por eles.
O mais grave é que a lógica de diminuição do Estado e do ataque frontal aos direitos sociais, criada no governo Collor, aprofundada no governo FHC e continuada nos governos petistas, serviu para fragilizar a classe trabalhadora e ao mesmo tempo aumentar o poder e a influência de alguns setores econômicos, favorecendo a promiscuidade entre o interesse público e o interesse privado da qual se alimenta a corrupção. Assim, quando se pensa em mudanças na sociedade para a correção da corrupção, da forma como o tema tem sido tratado, na linha da pessoalidade, não se está cuidando, nem perifericamente, da reversão desse estado de coisas. Com isso, mesmo o movimento pela moralidade está a serviço de interesses privados não revelados, não sendo apto para a correção dos problemas da corrupção.
À classe trabalhadora é essencial perceber que está em curso, de forma extremamente forte, um grande golpe engendrado para a destruição da garantias sociais historicamente conquistadas: MPs 664 e 665 (já convertidas nas leis n. 13.134/15 e n. 13.135/15) que ampliaram os requisitos para obtenção de benefícios previdenciários; MP 680, que apresentou para os trabalhadores a conta da crise, absolvendo empresas que obtiveram enormes lucros nas duas últimas décadas; PLC 30/15, que trata da ampliação da terceirização; PL 8.294/14, que propõe a eliminação do direito do trabalho quando: “I – o empregado for portador de diploma de nível superior e perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social; II – o empregado, independentemente do nível de escolaridade, perceber salário mensal igual ou superior a três vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social”, retomando, mais uma vez, de forma indireta, a ladainha do negociado sobre o legislado; e dois esdrúxulos Projetos de Decreto Legislativo (PDL), um com trâmite no Senado Federal, n. 43/15, e outro com trâmite na Câmara dos Deputados, n. 1408/13, que visam sustar a aplicação da NR-12, do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata da Segurança no Trabalho em Máquinas e Equipamentos1.
Em paralelo a isso, como forma mesmo de se conseguir enfim levar às últimas consequências o projeto neoliberal, se está produzindo uma destruição das instituições públicas que seriam, ao menos em tese, responsáveis pela aplicação do direito social e de sua racionalidade.
Para a classe trabalhadora há uma necessidade, paradoxal, portanto, de sair em defesa das instituições democráticas, sem, com isso, legitimar tudo o que os governos, nos últimos 20 anos têm realizado, e que ainda prometem realizar, no que se refere ao ataque a direitos trabalhistas.
É importante afastar-se dos dilemas políticos partidários e das chantagens da crise, que só servem para mascarar a realidade e para evitar a produção de um raciocínio voltado ao enfrentamento dos efetivos problemas que nos impedem de possuir uma sociedade sem corrupção, sem desigualdades, sem opressões de toda espécie, sem miséria e justa.
Aliás, ao falar isso já antevejo comentários, vindos de todos os lados, acusando-me de sonhador, iludido ou utópico. Mas o problema desses burocratas, que querem manter suas regalias ou tentar assumir as regalias dos outros, pautando-se na inexorabilidade ou na lógica do mal menor, é exatamente o de vedarem a toda uma geração a possibilidade de ter sonhos e de lutar por um mundo melhor, buscando mergulhá-los na individualidade egoísta.
Além disso, os ajustes de sustentabilidade já firmados pelo governo com o setor econômico, à revelia do debate popular, notadamente com a classe trabalhadora, carregam consigo, em razão do próprio modo como estão sendo concretizados, uma carga autoritária muito forte, sendo certo que a sensação de um poder quase absoluto, percebida pelos setores que estão conseguindo acuar o governo (que, de todo modo, não pode ser visto como vítima), não verá limites para promover ações persecutórias, de índole ideológica, no âmbito de instituições públicas e mesmo privadas.
Veja-se, por exemplo, a publicação, em 20/08/15, da Carta Aberta de Professores Eméritos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nenhum deles ligados ao Direito, direcionada ao Ministro da Educação, pedindo a este que tome providências contra o Reitor da Universidade, Prof. Eduardo Serra, precisamente porque este Reitor, enfim, após longos anos de negação da ordem constitucional, resolveu respeitar o direito de greve e sua lei reguladora (Lei n. 7.783/89), que determina que a continuidade dos serviços essenciais deve ser deliberada de comum acordo com os trabalhadores em greve. A Carta dos Eméritos em questão representa, claramente, a tentativa de supressão das instâncias institucionais, judiciais, para solução de conflitos, buscando uma “solução” autoritária, ditada pelo império das próprias razões e com uso da força do Estado impulsionada pela pessoalidade, ferindo, inclusive, os princípios constitucionais do ato administrativo (art. 37).
A Carta serve, portanto, para demonstrar como as articulações para um golpe fazem escola e para advertir quanto é importante defender as instituições democráticas em momentos de pouca tolerância e escassa racionalidade como o que vivemos.
Há, pois, uma emergência na defesa das instituições democráticas e dos direitos sociais e humanos, não representando isto uma defesa do governo e muito menos da impunidade.
O fato é que a quebra da institucionalidade seria, por certo, um problema imediato para toda a sociedade e, em especial, para a classe trabalhadora. Claro que não seria o fim da história e pode até ser que deixar a crise do capitalismo chegar ao extremo, como pretendem mesmo alguns setores do grande capital, conduza a um processo dialético mais intenso, sendo compreensível, por isso, que parte da esquerda também aposte na crise e até mesmo que parte do setor econômico, também percebendo isso, comece a reduzir seus impulsos para estimular o aprofundamento da crise econômica, política e institucional.
Mas não me parece que seja racional e mesmo humano apostar no caos. O processo histórico dialético, certamente, é complexo e imprevisível. De concreto mesmo o que se tem até agora é um ajuste entre o governo e alguns setores da economia para fazer com que os trabalhadores paguem a conta da crise, haja vista o advento abrupto, de cima para baixo, de uma tal “Agenda Brasil”, que massacra os trabalhadores e esfacela as instituições públicas.
Ocorre que sem uma oposição a tudo isso, com a pretensão de corroborar a Agenda ou com o objetivo de apostar no caos para incrementar uma ação revolucionária mas sem uma agenda concreta, ou seja, não se apresentando ao menos uma racionalidade pautada pela fundamentalidade da democracia e dos direitos sociais e humanos, que, bem ou mal, trazem algum projeto, o que resta é apenas a sensação de uma completa desordem, que elimina utopias. Isso não apenas atrai um individualismo pragmático, mas também gera intolerância, alimentando ódios, violências, linchamentos, reações xenófobas e até o advento de seitas fundamentalistas ou, simplesmente, desesperança, desilusão e desânimo2. Não se trata, pois, de proposições que favorecem a avanços, e sim a graves retrocessos.
É urgente, pois, tentar estabelecer uma racionalidade sobre as complexidades que envolvem o ponto central da vida na sociedade capitalista que é a relação capital-trabalho, inclusive para aproveitar a força que está nas ruas, que não deixa de ser, ainda, um reflexo de junho de 2013.
Em vez da classe que vive do trabalho ficar acuada e temerosa quanto às possibilidades de retrocesso, precisa retomar as ruas e colocar as suas pautas, que devem ser: a defesa da democracia, das instituições públicas e dos direitos trabalhistas e sociais. É totalmente pertinente, portanto, os lemas que correm entre os trabalhadores: “nenhum direito a menos” e “os trabalhadores não vão pagar pela crise”.
Do ponto de vista jurídico, impõe-se a defesa da ordem constitucional vigente, que instituída a partir da noção de Estado Democrático de Direito, prevê, em seu artigo 3º, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Esta mesma Constituição, ademais, fazendo menção às relações internacionais, deixa claro que o Estado brasileiro se rege pelos princípios da prevalência dos direitos humanos (inciso II, art. 4º); da defesa da paz (inciso VI, art. 4º); da solução pacífica dos conflitos (inciso VII, art. 4º); e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (inciso IX, art. 4º). A propriedade possui, necessariamente, uma função social (conjugação dos incisos XXII e XXIII do artigo 5o e incisos II e III do art. 170 e art. 184).
A economia, por sua vez, deve pautar-se pelos ditames da justiça social (art. 170) e os direitos sociais, no projeto constitucional, foram alçados ao Título dos Direitos e Garantias fundamentais. O artigo 6º garante a todos os cidadãos “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. O art. 7º consagra o postulado da melhoria da condição social aos trabalhadores. E o art. 9º confere aos trabalhadores o direito de lutar por meio da greve.
Desses dispositivos todos decorre o princípio do não-retrocesso, que impede, concretamente, a redução de direitos, sobretudo como fórmula para sair da crise. Além disso, impedem dispensas coletivas e garantem aos trabalhadores os direitos de resistência e de greve, para se oporem contra os ataques aos seus direitos e para lutarem por melhores condições sociais e econômicas, que adviriam com a eliminação da terceirização3, a garantia contra a dispensa arbitrária, a redução da jornada sem redução salarial, a proibição do trabalho em horas extras de forma habitual4, o respeito ao concurso para acesso ao serviço público, a reversão dos efeitos da ADI 1923 (dos convênios no serviço público), a revogação das leis n. 13.134/15 e n. 13.135/15 etc.
Sem a necessidade de qualquer advento futuro, cumpre verificar que a jurisprudência trabalhista atual, que começou a ser construída por ocasião da crise de 2008 para impedir que as ameaças de desemprego fossem utilizadas como argumento para a diminuição de direitos, já se posicionou claramente no sentido de que as dispensas coletivas, que requerem comprovação dos motivos técnicos e econômicos por parte dos empregadores, devem ser definidas em negociação coletiva com o sindicato dos trabalhadores, considerando exercício abusivo do direito a dispensa que não atenda a essa condição. Vide, a respeito: TRT 2ª R., SE 2028120080000200-1, AC. SDC 00002/2009-0, j. 22.12.08, Relª Juíza Ivani Contini Bramante, LTr 73-03/354; TRT 15ª R., DC 309-2009-000-15-00-4, AC. 333/09, DO de 30.03.09, Rel. José Antonio Pancotti, LTr 73-04/476 e PROCESSO Nº TST-RODC-309/2009-000-15-00.4, Rel. Ministro Maurício Godinho Delgado.
E mesmo essa negociação não pode servir como mero instrumento de legitimação das dispensas vez que os fundamentos da normatização coletiva são: a) fixar parâmetros específicos para efetivação, em concreto, dos preceitos normativos de caráter genérico referentes aos valores humanísticos afirmados na experiência histórica; b) melhorar, progressivamente, as condições sociais e econômicas do trabalhador.
Assim, não cumpre aos instrumentos coletivos, fruto das negociações coletivas, apenas autorizar as dispensas de trabalhadores. Uma negociação coletiva neste sentido é juridicamente inválida. O requisito jurídico, estabelecido pela jurisprudência relacionada, não é formal, mas de conteúdo. Exige, pois, que se estabeleçam compensações para que se chegue ao sacrifício dos trabalhadores, sacrifício este que deve atingir, igualmente, a diretores e a acionistas da empresa. A negociação, além disso, deve ser necessariamente precedida de demonstração da dificuldade econômica e de estudos que demonstrem o resultado positivo da diminuição de empregos, garantindo aos que ficam condições de trabalho em padrões de quantidade, para que não se tente compensar a produção da saída de trabalhadores com o aumento da produção dos que ficam. Além disso, a situação deve se regular como temporária, fincando-se o compromisso da retomada da situação anterior, já que o princípio do direito do trabalho é o da melhoria da condição social dos trabalhadores e não o de se adaptar às deficiências do modelo econômico.
O projeto constitucional é o da justiça social e o que vem a ser justiça social? Nada mais é do que a consideração valorativa de que todos os seres humanos estão integrados a uma “família humana”, como consignado, aliás, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, sendo certo que essa consideração faz com todas as pessoas, pelo simples fato de terem nascido, devem ter acesso aos meios necessários que lhes assegurem uma existência digna, isto é, sem passar por privações que lhe impeçam a sobrevivência e a elevação moral, intelectual, física, psíquica, econômica, social e política da sua condição humana, tomando-se esse acesso como um direito, ou seja, como obrigação do Estado e de todos os demais cidadãos nas suas correlações subjetivas, e não como mero favor.
A fórmula jurídica básica para se estabelecer esse valor nas relações sociais emerge da fixação do princípio de que “o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de comércio, mas como colaboração livre e eficaz na produção das riquezas” (art. 427, da Constituição da OIT). Ora, lembrando-se que o capitalismo é um sistema pelo qual a sociedade de classes se organiza polarizada em duas classes sociais mais evidentes, uma que ostenta o capital e os meios de produção e outra que para sobreviver precisa vender seu trabalho para a produção de mais valor em benefício da primeira, o que só foi possível com a transformação histórica do trabalho humano em força de trabalho, qual seja, em uma mercadoria como outro qualquer que se comercializa com obediência da lei da oferta e da procura, de modo a favorecer a reprodução do capital, ao se dizer que o “trabalho humano não é mercadoria” estabelece-se um mecanismo com o qual se busca distribuir de forma mais equânime a riqueza socialmente produzida, visando à satisfação dos objetivos relacionados.
A função do Direito Social (em especial, o Direito do Trabalho, por lidar com a relação básica da sociedade capitalista, que é a relação trabalho-capital) é, portanto, distribuir a riqueza coletivamente produzida, para fins não apenas de eliminar, por benevolência, a pobreza, mas para compor o projeto de uma sociedade na qual todos possam, efetivamente, adquirir, em sua significação máxima, o sentido da cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo certo que um dos maiores problemas que agridem a humanidade é a injustiça.
A defesa concreta da dignidade humana é a expressão máxima do Direito Social, na medida em que vislumbra a formalização das bases existenciais necessárias para que esses valores humanos sejam efetivados, sendo de se destacar que a maior relevância do direito neste assunto diz respeito às pessoas que estão em posição inferiorizada na sociedade dos pontos de vistas político, cultural, social e econômico. A racionalidade imposta pelo Direito Social deve permitir que se vislumbrem as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente, incentivando a prática de atos voltados à efetiva defesa dos seus direitos.
Do ponto de vista normativo, a Declaração e Programa de Ação, fruto da Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993, estabelece, em seu item 15, que “o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem distinções de qualquer espécie, é uma norma fundamental do direito internacional na área dos direitos humanos”.
Conforme consta dos “considerandos” da Declaração de Viena, de 1993, repetindo diretriz já traçada na Carta das Nações Unidas, os Estados devem implementar políticas necessárias para “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, de estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações emanadas de tratados e outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, de promover o progresso social e o melhor padrão de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade, de praticar a tolerância e a boa vizinhança e de empregar mecanismos internacionais para promover avanços econômicos e sociais em benefício de todos os povos”.
A mesma Declaração destaca que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”, estabelecendo que “a comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.”
Além disso, como signatário da Declaração Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), o Estado brasileiro deve responder à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelos seus atos e omissões que digam respeito às normas do referido Tratado, podendo ser compelido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a inibir a violação dos direitos humanos e até a reparar as consequências da violação desses direitos mediante o pagamento de indenização justa à parte lesada (art. 63, Pacto São José da Costa Rica).
De fato, com todos esses instrumentos normativos, válidos no âmbito nacional e internacional, nas mãos de instituições que estejam em regular funcionamento, não é preciso se submeter aos interesses eleitorais de alguns partidos políticos que se preocupam mais com sua estrutura interna do que com as políticas públicas e que para se preservarem fazem ajustes com segmentos econômicos específicos, em quatro paredes, sem qualquer participação popular.
O funcionamento adequado dessas instituições não é, de todo modo, uma questão de formalidade. É preciso que busquem realizar uma atividade com a racionalidade do serviço público, comprometendo-se, pois, com as causas e os interesses das pessoas em situação fragilizada nos arranjos sociais, como, ademais, consta do projeto constitucional, sendo que para que isso efetivamente ocorra é necessário que os movimentos sociais, trabalhistas e populares estejam mobilizados e em luta constante, porque é da força desses movimentos que a democracia social se produz concretamente.
Não há a mínima possibilidade de se realizar um projeto de Estado Social, conforme previsto na Constituição, sem que se confira uma real possibilidade de mobilização dos segmentos da sociedade mais diretamente interessados na conclusão dessa obra. Há uma urgência nesta reivindicação do reconhecimento da legitimidade dos movimentos sociais, que inclui, necessariamente, um claro direcionamento dos próprios poderes públicos, que devem agir sob o comando da ordem jurídica, pois a incompreensão das instituições acerca da vigência do Direito Social tem provocado uma situação de intolerância frente aos movimentos sociais extremamente prejudicial à democracia.
É essencial para a efetivação do Estado Democrático de Direito Social que os movimentos sociais se mobilizem para exigir das instituições, que até se beneficiam pela atuação popular em sua defesa, que se empenhem de forma concreta para levar adiante o compromisso internacionalmente assumido pelo respeito aos direitos humanos de índole social, reconhecendo, sobretudo, os direitos de liberdade de expressão e de reivindicação dos segmentos em situação de vulnerabilidade na sociedade: sem-teto, sem-terra, desempregados, trabalhadores e trabalhadoras, estudantes, mulheres, população LGBT, negros e negras, indígenas, pessoas com deficiência, repudiando-se todas as práticas opressivas e repressivas, antissindicais, antidemocráticas, discriminatórias e preconceituosas, pois só assim se pode evitar o autoritarismo e caminhar em direção concreta na construção de uma sociedade sem desigualdade social e econômica e que garanta as diversidades.
O momento, portanto, é de defesa incondicional da ordem constitucional, dos direitos sociais e trabalhistas, como forma de evitar retrocessos políticos, econômicos e sociais, de modo a proporcionar meios para que se prossiga no avanço da realização do projeto inacabado da condição humana.
NOTAS
1. “Mais de 55 mil trabalhadores sofreram acidentes com máquinas em 2013“, por Alessandro da Silva e Vitor Araújo Filgueiras, Repórter Brasil, 11/07/14
2. Vide, a propósito, a crônica de Denise Fraga, Chacina, Faxina e Lava Jato, publicada na Revista da Folha, em 30/08/15, p. 98.
3. “Terceirizado está mais sujeito a acidente de trabalho, diz MTE“, por Bianca Pyl, Repórter Brasil, 26/04/12
4. Caminhoneiros são os trabalhadores que mais morrem no Brasil, por Bianca Pyl, Repórter Brasil, 26/04/12.
***
Jorge Luiz Souto Maior define de forma concisa o que é um megaevento, e os sentidos desse tipo de dispositivo para o Brasil no contexto do capitalismo global. Confira:
***
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
Muito válida e instigante, como sempre, as reflexões do professor.
Apenas uma correção: o reitor da UFRJ é o prof. Roberto Leher, e não Eduardo Serra.
CurtirCurtir
As crises sempre são seguidas de ações, tanto pelo Estado como pelos diversos grupos sociais, no sentido de tentar barrar seus efeitos ou transferir esses efeitos numa determinada direção.
Nesse caso, como o Estado não é neutro, assume sempre a defesa dos interesses dos mais fortes, que são aqueles que compõem seu núcleo central e que, portanto, possuem o controle dos instrumentos capazes de acioná-lo.
Como no sistema vigente a hegemonia pertente aos donos da riqueza, então é para eles que as ações se dirigem.
Assim, recursos precisam ser desviados de umas atividades, que beneficiam uns para recuperar as perdas de outros. Nesse caso, em nome da salvação do sistema e da promessa de que, no final vai ser bom pra todos, tanto os recursos como os direitos vão sendo subtraídos para preservar a margem de manobra daqueles que consideram vitais ao sistema: os empresários.
No caso do Brasil, então,que possui uma tradição forte de autoritarismo, de concentração de renda e de desrespeito aos direitos, bem como uma precária tradição de organização e de resistência dos trabalhadores, essas manobras são feitas sem a menor cerimônia.
CurtirCurtir
Aprende-se muito sobre a legislação como Jorge Luiz. Obrigada!
CurtirCurtir