Prostitutas, greves e mortos (os limites do realismo fantástico)
Por Mauro Luis Iasi.
Enquanto isso, em um suposto país imaginário chamado Espanha, duas notícias abalam os cidadãos de bem: as prostitutas de luxo se recusam a fazer sexo com os banqueiros e os mortos estão sendo despejados de seus jazigos por falta de pagamento.
“Buenas noches… a pátria estarrecida enfrenta uma de suas maiores crises”, diz o locutor do jornal televisivo com aquele tom sarcástico que mescla dramaticidade e um toque sardônico, como se dissesse: “Sua mãe morreu… e estou adorando isso.”
Em entrevista, a líder da associação das profissionais do sexo afirma que “nós somos as únicas com capacidade real de pressionar o setor” para que cumpra com suas funções sociais. Segundo os dados apurados por esta emissora, estas senhoras afirmam que os bancos deveriam liberar linhas de crédito especial para os mais pobres e empresas que enfrentam dificuldades. Voltaremos a esta notícia logo após nossos intervalos comerciais.
Logo após alguns minutos de comerciais – alguns inclusive de bancos nos quais se insiste como você pode ser realmente feliz e atingir seus objetivos abrindo uma conta (afinal, o verdadeiro objetivo das instituições financeiras não é o lucro, mas o bem estar de seus clientes) – o locutor volta: “Falamos com figuras eminentes do setor financeiro que deram sua opinião sobre a crise e a posição firme das prostitutas. ‘Esta é uma afirmação caluniosa e descabida’, disse um grande magnata das finanças, ‘querem atacar nossa reputação ilibada e a sagrada instituição da família. Jamais usaríamos de tal expediente para saciar os desejos da carne. Quero aproveitar para desmentir que tenha alterado minha agenda de viagens para paraísos sexuais no terceiro mundo: todos eram compromissos anteriormente assumidos, a senhora pode confirmar com minha secretária… não, com ela não, é melhor com a responsável pela comunicação social de nossa instituição’”.
A esposa do banqueiro também deu uma declaração: “Não nos atingem aqueles que dos escalões chafurdados na perdição e no pecado querem manchar nossa reputação e a honra de nossas famílias. Tenho total confiança em meu esposo, até porque, se for verdade ele sabe que arrancarei seus ovos e servirei na paeja de domingo, cabrón sinvergüenza…”.
Os serviços de segurança afirmam que a líder do movimento não representa de fato a categoria e que os serviços estariam garantidos. “É uma minoria destituída de sentimentos de pátria e de honra, envolvidas com perigosos grupos extremistas”. “Lembremos, disse o oficial de polícia, as palavras de Marx ‘nossos burgueses, não contentes em ter à sua disposição as mulheres e filhas dos proletários, sem falar na prostituição oficial, tem singular prazer em cornearem-se uns aos outros’, a influência marxista é patente”, concluiu o representante da lei e da ordem que foi levado preso logo em seguida por ter citado Marx ao vivo num programa de alcance nacional.
Um especialista da UFRJ, eminente universidade brasileira, afirmou, em férias na Espanha: “A greve é um direito, não somos contra a greve, mas ela deve ser usada somente em último caso, para não banalizar este instrumento tão importante, de forma que as prostitutas deveriam tentar outras formas de luta antes desta tão drástica”. Infelizmente, o especialista não soube indicar quais seriam estas “outras formas”, nem em que casos a greve poderia ser usada, mas insistiu que, “sem descartar o sexo presencial, deveriam se dar preferência a formas eletrônicas e digitais, mais modernas e interativas”.
Outro eminente representante de uma grande casa bancária alemã afirmou que “passamos por um momento de austeridade e cortes serão necessários, mas todos nós sabemos que não será nesta área, até por que se tivermos que cortar alguma coisa será na Grécia”. Imediatamente a Asociación Nacional de los Psicoanalíticos Lacanianos Autênticos (cisão da Asociación de Psicoanalíticos Lacanianos Verdaderos) marcou um simpósio internacional para discutir a relação entre a crise, os cortes e a interrupção do gozo, numa clara referencia a síndrome de castração implicada na declaração, não chegaram, no entanto, a um acordo sobre a referencia à Grécia. Alguns participantes alegam que se trata de uma referência no campo do Real e se aplica ao país que atravessa uma grave crise, enquanto outros afirmam categoricamente que se insere no campo do Simbólico e tem evidentes relações com a pátria do complexo de Édipo. Um terceiro grupo afirma que pode ser as duas coisas e prepara uma nova cisão na Asociación.
O filósofo esloveno Slavoj Žižek não emitiu uma opinião, pois foi acometido de um grave ataque de riso que já dura dois dias, mas afirmou que está preparando um livro de aproximadamente mil páginas sobre o tema.
“Não é possível, está notícia só pode ser falsa, cariño! Como que, então, as prostitutas de luxo podem fazer uma greve”? “Como vou saber Lola, cada uma, como vou saber”? “Como não, pois não trabalha em um banco, cariño”? “Sou bancário… bancário, corazón… não tenho acesso a coisas… de… coisas de luxo”. “Por que você é tão estúpido”? “Eu… eu não disse nada”! “Por que gritas”? “Cariño…” “Carinho un carajo… que nadie va a follar hoy por la noche… la puta madre”!
Outra notícia estarrecedora trata do despejo dos mortos. A administração dos cemitérios afirma que várias famílias deixam de pagar as taxas e que diante da crescente demanda por espaços, será necessário desalojar os mortos para liberar jazigos para os que chegam e podem pagar. Em uma transmissão “ao vivo” nosso repórter foi conversar com os ocupantes para conhecer sua opinião sobre tal ação.
“Estamos aqui, diretamente do cemitério, para saber a opinião dos mortos sobre mais esta medida dramática de nossas autoridades, como o senhor vê a situação?”. “Ora minha filha, eu também acreditei naquela história de ‘descanse em paz’, veja você, aqui está uma confusão só. Não é verdade que falte terra, para os pobres qualquer cantinho serve, estamos acostumados a morrer em vida e não estranhamos a vida na morte, mas os ricos são um problema, com seus túmulos enormes que parecem catedrais, estátuas de anjos com grandes asas a segurar senhoras, analogias de suas profissões em vida, ocupam um espaço enorme”.
Os mortos não reclamam muito das taxas, são os vivos que pagam, mas as moedas para o barqueiro têm gerado muita reclamação. “Ninguém mais enterra ninguém com moedas nos olhos ou na boca, então chega na hora da travessia e o barqueiro não quer nem saber. O serviço está muito ruim, quando era público funcionava, mas depois que privatizaram a travessia virou um caos. Ganhou a licitação uma empresa brasileira, a CCR Barcas, com o slogam ‘nosso serviço é de morte’, e tudo ficou muito confuso por aqui.”
Os mortos ricos não aceitam ir nas barcas com os pobres e exigem o direito de trazer seus iates para a travessia. “Veja só, disse um barqueiro, que não quis se identificar porque é terceirizado, o cara chega com um iate de 170 metros, com onze cabines, tem até um mini submarino, duas piscinas, custando mais de oitocentos milhões de dólares, e aí me dá duas moeda de ouro e me pede para passar ele na frente”. O senhor Caronte, que começou a vida como barqueiro e hoje é um grande magnata que controla várias firmas de terceirização não quis dar entrevistas. Mas sua acessória afirmou que um barqueiro ou outro receber dinheiro para atravessar não é fato novo, que nos velhos tempos tentaram até empurrar um ramo de acácia para passar gente viva para o inferno”.
Os ricos não correm o risco de serem desalojados. No entanto, só por precaução, os trabalhadores madrileños fizeram uma coleta para pagar as taxas do túmulo de Franco. Diante da ameaça de desalojar os inadimplentes, os mortos pobres é que estão preocupados. “Fui desalojado minha vida inteira, primeiro de minha terra, depois de algumas moradias que não consegui pagar e alguns empregos em épocas de crise, minha mulher me jogou pra fora de casa por causa do vinho, só falta agora me jogarem pra fora de minha cova”. “O que me deixa mais tranquilo, seguiu o defunto, é que minha família mudou-se para o Brasil e deve estar bem lá na Vila Autódromo no Rio de Janeiro”.
O problema dos mortos teve consequências também para os vivos. Fora de suas tumbas os mortos têm que se virar entre os vivos e isso tem gerado muitos problemas. “Quando você chega para tentar um emprego, disse um jovem de Barcelona (uma cidade imaginária), agora tem que disputar a vaga também com os mortos. Eles levam uma série de vantagens sobre nós, não comem, não dormem, não ficam mais doentes, alguns estão em danação eterna, então, não ligam muito para as condições de trabalho, embora outras afirmem que no inferno era melhor. Quanto à aparência, é, não é nada boa, mas para telemarketing tá valendo”.
Para o governo, a volta dos mortos não é um problema. “Em algumas áreas, disse um representante do governo, pode ser mesmo uma solução. Veja a previdência, por exemplo, com os mortos no mercado de trabalho podemos aumentar a idade para a aposentadoria para patamares razoáveis até equilibrar as contas”. “Há muito preconceito com relação à morte, disse um grande empresário, nós capitalistas temos a mente aberta a novas possibilidades, já exploramos os vivos até que morram, porque não explorar os mortos até que renasçam”?
Boa noite.
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Leia, na coluna de agosto de Mauro Iasi, “Três crises… falta uma“, uma análise da crise política e da crise econômica, que se entrelaçam na atual conjuntura brasileira.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Genial
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realmente, muito bom o trabalho do professor, temos muito o que refletir! obrigada Profa. Silene, abs
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Mauro Iasi é um intelectual que todo Brasil deveria parar para ouvir e ler. Grande texto!
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Excelente texto!!!! A realidade é tão absurda, que para trazer a tona o real é preciso se distanciar da linguagem carcomida da dita realidade.
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