Democracia x capitalismo

emir tsipras
Por
Emir Sader.

A Grécia vive, em carne própria, a profunda contradição entre capitalismo e democracia. É revelador que o choque, além de se dar no país da origem da democracia, se dê também justamente no continente que insistia em afirmar a compatibilidade dos dois termos, com o Estado de bem estar social.

A integração europeia, que parecia consolidar a autonomia do continente, expresso numa moeda própria, na verdade estava construindo uma armadilha, que agora se revela em toda sua crueza: por um lado, a destruição do Estado de bem estar social, por outro, a da democracia como soberania popular. Que já estava presente na consulta que levou à unificação europeia: a consulta era diretamente vinculada à adesão a uma moeda única, com todas as consequências de que se vê agora em toda sua amplitude.

Governos renunciam à soberania nacional e à soberania popular, sem que estas sejam substituídas por formas supranacionais de democracia. Como aceitaram a moeda única, os organismos supranacionais são financeiros. O Parlamento europeu não tem nenhuma importância, como se vê agora pela sua ausência total na resolução da crise grega.

Em que consiste a crise grega? Em termos democráticos, de soberania nacional, um governo eleito pelo povo comprometeu o país com uma série de acordos – basicamente de empréstimos escorchantes, que consistem na verdade em tomar dinheiro a juros altos para transferi-los imediatamente aos bancos aos quais devem cada vez mais dinheiro. Em janeiro deste ano o povo grego decidiu dar um basta nessa situação e elegeu o Syriza para terminar com as desastrosas políticas de austeridade.

Mas o governo eleito teve que arcar não apenas com as dívidas, mas com todos os compromissos contraídos pelo governo anterior, tornando impossível o cumprimento de saída da austeridade, que não significasse ao mesmo tempo a saída do Euro, com todas suas consequências catastróficas para o país. Em suma, um governo comprometeu o futuro do país muito mais além do seu mandato e cancelou a possibilidade do povo grego decidir sobre seu destino. As decisões sobre este já estavam dadas.

A Troika europeia não quis saber nada da decisão democrática do povo grego e sim da cobrança dos compromisso assumidos pelo governo anterior, derrotado pelo povo grego. A unificação monetária da Europa esvazia assim o conteúdo democrático do sistema político, fazendo valer unicamente os compromissos estabelecidos pelo governo grego anterior com os bancos.

O capitalismo, na sua era neoliberal, com a hegemonia do capital especulativo, se impõe assim sobre a democracia. O povo grego elegeu um governo para sair da austeridade, em referendo reiterou essa decisão, mas o governo não teve os meios para realizar essa proposta, atado como está aos compromissos assumidos anteriormente.

Um exemplo evidente dos postulados de Ellen Meiksins Wood, em seu clássico livro Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico (Boitempo Editorial, 2003) sobre a contradição entre os dois termos. O Estado de bem estar social foi um formato específico, enquadrado num determinado marco internacional e numa relação de forças especificas entre as classes sociais, que permitiu a compatibilização, durante um certo período, entre democracia e capitalismo. É essa possibilidade que se esgota com a crise grega para toda a Europa.

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Sobre a crise na Grécia, leia também, no Blog da Boitempo, “Capitalismo e democracia na Europa“, por Michael Löwy, “Por quem os sinos gregos dobram?“, por Osvaldo Coggiola, “Grécia: o elo mais frágil“, por Ruy Braga, e “Um novo começo para a Europa?“, por Slavoj Žižek.

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros, Estado e política em MarxA nova toupeira e A vingança da históriaColabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

2 comentários em Democracia x capitalismo

  1. Republicou isso em jizDoc.

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  2. Questões Relevantes // 23/08/2015 às 9:44 am // Responder

    Há uma confusão danada neste artigo. Para começar, Emir Sader não entende o básico: a crise da Grécia não é um problema político, mas econômico. Se não houvesse “o resto do mundo”, ainda assim a Grécia estaria em sérias dificuldades porquê arrecada menos do que tem que pagar internamente para sustentar os custos do estado. Sugiro a leitura de dois artigos que permitem entender tanto a dimensão política quanto a dimensão econômica da grise grega.

    O primeiro chmama-se A GRÉCIA, A MATEMÁTICA E O DESTINO INELUTÁVEL ( https://wp.me/p4alqY-f6 )

    e o segundo chama-se A IGNORÂNCIA NÃO É UMA BENÇÃO.
    ( https://wp.me/p4alqY-f9 )

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