O reino da cozinha: O churrasco e o pós-doutorado
Por Flávio Aguiar.
Durante o pós-doutorado em Teoria Literária que fiz no Canadá, tive o privilegio de estudar com o professor Northrop Frye, na Universidade de Toronto, uma dos mais brilhantes teóricos da literatura de todos os tempos.
Além de grande critico literário, Frye também teorizava sobre o ensino da literatura. Uma das coisas que ele comentou conosco – os jovens docentes vindos de varias partes do mundo – foi que um dos ápices da carreira de um professor era o momento em que ele se tornava capaz de fazer o que chamava de “improvisação erudita”. Este professor tornava-se capaz de, por exemplo, a partir da pergunta de um estudante, discorrer de modo pertinente sobre tema não previsto nem preparado.
Com isto em mente lembro-me sempre de um curso de Sociologia da Literatura que fiz, ainda na pós-graduação na USP, com o professor Rui Coelho. Até hoje não sei muito bem sobre o que era o curso, especificamente, mas recordo maravilhado as excepcionais aulas do prof. Rui. A partir de qualquer pergunta ou comentário, ele revelava sua fantástica erudição em tudo, sobretudo em matéria de romances policiais. Acho que, para além de minhas leituras precoces de Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Miss Marple, Nero Wolfe e uma penca de detetives, vem daí minha imorredoura paixão pelo gênero.
Dá para dizer o mesmo sobre o churrasco e seus derivados, sobretudo estes últimos. Poucas coisas se comparam à delícia do salsichão de ontem no café da manhã de hoje, por exemplo.
E um dos temas mais deliciosos do pós-doutorado é o das variações do arroz de carreteiro.
Este prato é herdeiro das longas viagens levando tropas de boi para lá e para cá, quando os boiadeiros se perdiam (mode de dizer) nas trilhas do pampa, sem mulheres para cozinhar. Na carreta iam arroz, charque, e o indispensável para cozinhar, o sal, azeite de oliva ou comum (chamado de “óleo” no Norte do Brasil, além da fronteira com Santa Catarina), a panela de ferro, a colher de pau e demais apetrechos. O charque tinha de ser deixado n’água para dessalgar, antes de picá-lo para fazer o arroz.
O churrasco de um pedaço de carne grelhado na trempe (grelha) era um prato guerreiro, passível de ser feito em tempos de guerra e correrias. O arroz de carreteiro já era um prato mais pacífico, exigindo tempo para ser feito, um acampamento ou até mesmo um galpão de estância.
Uma das delícias do arroz de carreteiro é fazê-lo com as sobras do churrasco de ontem ou ante-ontem, substituindo o charque pelos pedaços de picanha, costela ou outra carne que tenha sobrado. Uma variante saborosa e simples é o chamado “arroz de puta”. Este consiste em fazer o carreteiro com linguiça ou salsichão picado, ao invés de carne de rês. Por que “de puta”? Porque tradicionalmente esta receita era mais barata do que a feita com carne de sobre ou charque de primeira, costumando ser servida, por isto, nos puteiros de outrora.
Uma variação semântica curiosa é a de que o arroz de carreteiro é chamado de “Maria Isabel” no Mato Grosso. Segundo as historias contadas deve-se o fato a que durante muito tempo caminhoneiro de longa distância era quase sinônimo de gaúcho. E que nesta região havia uma pensão de duas irmãs, Maria e Isabel. Elas serviam o arroz de carreteiro aos caminhoneiros gaúchos e tiveram a gloria extrema de dar o nome a este prato. Aliás, esta é uma das maiores glorias da vida: emprestar o nome a um prato de cozinha, como “Flié a Osvaldo Aranha” no Rio de Janeiro (Bife com fritas, farofa e ovo). É gloria maior do que ter dado o nome à gilete ou a algum acidente geográfico.
Tome-se o pedaço escolhido para fazer o arroz de carreteiro, seja charque (que ficou dessalgando em água) linguiça, salsichão, costela, picanha, maminha (nunca use porco nem frango, porque secam demais). Pique-se o pedaço em pedacinhos pequenos. Piquem-se cebola, alho e tomates (em caso de necessidade extrema pode usar purê de tomate). Ponham estes, naquela ordem, para dourar, no azeite de oliva, em fogo lento. Quando estiverem dourados a cebola e o alho, e o tomate refogado, acrescentem-se os pedaços da carne com um pouco de vinho tinto, e deixe-se refogar por algum tempo. Quando o conjunto tiver reduzido um pouco (não demais), acrescente-se o arroz e mexa-se. Espere um pouco. Daí acrescente a água fervente, na proporção de três para um, isto é, para cada volume daquela mistura, três volumes de água. Prove o caldo para ver se o sal está no ponto. Se não estiver, acrescente um pouco, mas não demais, pensando na futura hipertensão, etc. Tampe a panela (que deve ser de ferro, é claro) e deixe cozinhar. Isto deve durar de quinze a vinte minutos. Tome o cuidado de deixar o arroz molhado, jamais seco, ao tirar a panela do fogo. O melhor, se a companhia permitir, é colocar a panela na mesa, ou então dizer para as pessoas se servirem diretamente no fogão (a gás, é claro, ou de lenha, jamais elétrico). Variantes possíveis: servir junto um tanto de salsa picada, ou também de ovo duro picado. Há quem goste de juntar milho debulhado. Prefiro comer separado. Acompanhe com uma salada rica, queijo com goiabada na sobremesa, e o prato estará feito.
Recomendação: durante o preparo, é de lei tomar um trago de boa canha (pinga, em gauchês) para acompanhar. Pode fazer também um “limãozinho” (espremidinha no Norte), ou seja, cachaça com limão espremido, sem açúcar, no máximo uma pedrinha de gelo. Depois, durante a refeição, um vinho tinto, algo encorpado.
E pronto, seu pós-doutorado está feito.
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Na série O reino da cozinha, Flávio Aguiar fala de vida, política e outros conflitos comestíveis. Para mais churrasco, petisque as crônicas “Minha estreia na churrasqueira” e “A carreira acadêmica na churrasqueira“.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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