O reino da cozinha: A carreira acadêmica na churrasqueira
Por Flávio Aguiar.
Agora que adentramos o mundo do churrasco, ou melhor, da churrasqueira, abordamos um mundo sem fim.
Em primeiro lugar, porque há tantos churrasqueiros e tantas teorias sobre o churrasco, quantas churrasqueiras haja. Pelo menos no Rio Grande do Sul e arredores. De modo que o que aqui será escrito é inteiramente passível de contestações, e só Deus sabe quantas.
Como fui professor universitário durante boa parte de minha vida, cedi à tentação de comparar o mundo do churrasco ao acadêmico. Fosse eu teólogo, estaria aproximando aquele mundo ao das esferas celestes. Ou então entraria em debates sobre as origens bíblicas do churrasco. Na verdade, fiz isto certa vez, lembrando que a primeira coisa que Noé fez depois de sair da Arca do Dilúvio foi queimar toda a bicharada numa gigantesca fogueira em homenagem a Jeová. Este cheirou o delicioso odor, que o agradou. E a partir daí Jeová botou ordem no mundo, criando os dias e as noites e as estações do ano. O que comprova os poderes civilizadores do churrasco. Vamos começar pelas platitudes: o fogo lento, sem chamas, só brasas, o lado da gordura para cima e o osso para baixo, jamais tirar a carne da geladeira e colocar diretamente no fogo, usar sal grosso, excomungar o vinagrete, etc. Dominadas estas obviedades, o candidato a churrasqueiro terá obtido seu diploma de ensino médio e estará prestes a entrar na universidade.
Isto de fazer picanhas e maminhas é a mera graduação, mesmo se antecedidas por salsichões e linguiças, além dos corações de galinha. Bom, sempre se pode refinar este grau, aprendendo, por exemplo, qual é a diferença entre um salsichão e uma linguiça. Mas para isto é necessário ir ao Mercado Público de Porto Alegre ou assemelhado e comprar uma penca de salsichões, que são graúdos e recheado com tempero verde.
A pós-graduação começa com a costela. Não é à toa que Jeová escolheu a costela de Adão para produzir a primeira mulher, firme onde deve e macia onde preciso (estou falando da costela). A questão é manter tudo isto assim, até o fim, isto é, a degustação. Também se sabe que a carne de churrasco deve ser comida mal passada, mas no caso da costela é necessário discernir o exato ponto, porque a capa de gordura (que depois de uma certa idade a gente deve comer com moderação, pelo menos em dia de semana) deve ficar algo torradinha e as bordas da carne também, enquanto o núcleo deve ficar mal passado, mas não em demasia. Também se deve saber a diferença entre as costelas, a minga, pequetita, o costelão, ou seja, a peça quase inteira, e que se grelha na churrasqueira exclusivamente com lenha tornada carvão. Este é o mestrado, depois da vigésima vez feita sem erro. Hoje como a classe média e a burguesia querem se diferenciar muito pelo consumo, se tornou comum favorecer os cortes e as carnes d’alémfronteira. Confesso que as carnes argentinas e uruguaias são atraentes, pela política de abate mais “temprano” – cedo, mas prefiro os cortes brasileiros, ou d’aquém-Prata. “Asado de tira” só fica bom na trempe, e assim mesmo olhe lá. Precisa ter feito um curso de especialização junto ao Prata. E aquilo de misturar churrasco com vísceras, “riñones”, fígado, e saco de touro não é comigo. Quem quiser que se habilite.
Passemos ao doutorado: simples, o galeto. Para quem pensa que é fácil, basta pensar na mistura de carnes, asinhas, peito, coxa, sobrecoxa etc. para ver que a operação é complexa, e ainda com o complemento de fritar ou grelhar a polenta ao mesmo tempo. Sem falar na preparação da salada de radite (termo gaúcho para uma verdurinha amarga muito semelhante à rúcula brasileira), que deve coincidir com o restante (neste caso a salada é servida ao mesmo tempo), incluindo um beiconzinho frito para o pecado ser mais completo. Doutorado complexo, o carneiro. Costela, costelinha, paleta, o que for. Certa vez uma aluna de pós-graduação perguntou a um colega meu, famoso pelos desbocamentos, o que era indispensável para fazer um doutorado. “Bunda”, respondeu ele, referindo-se às necessárias horas de leitura, reflexão e escrevinhação para produzir um doutorado que valha a pena, para o que é necessário estar sentado. Reflexão de pé, é para fila de banco; deitada, é preguiça aristotélica. Ou seja, para fazer um doutorado, é necessário paciência. Com o carneiro é a mesma coisa. Uma boa paleta na churrasqueira leva duas horas em fogo lento (brando é pra fogão a gás). Novamente os estrangeirismos tomaram conta de nossa classe média e burguesia que dão vários dedos por um gostinho colonizado (jamais os anéis), e agora se fala em “carré” e não sei que frescura mais. Não caia nesta. Deixe isto para restaurante paulistano ou carioca. Continue fazendo suas costelas, costelinhas, paletas, ou se for gaúcho, espinhaço e chuleta, vulgo bisteca para os nortistas (é bom lembrar que em matéria de churrasco o Norte começa na divisa entre o Rio Grande e Santa Catarina, que é a fronteira entre o Sul e o Brasil. Não há separatismo político nisto, somente carnal, ou carnívoro). Como já se viu, graças aos exemplos acadêmicos, o doutorado exige uma combinação de paciência e versatilidade. Alem disto, o doutorado é pessoal, exige originalidade. É aqui que o vivente começa a descobrir o seu próprio estilo.
Como o carneiro exige tempo, o churrasqueiro precisa florear o churrasco com mais conversa. E isto depende da habilidade de cada um. Uma picanha pode ser grelhada em silêncio. Uma carne de ovelha jamais. Para tanto o churrasqueiro precisa escolher sua companhia. De preferência alguém que também seja loquaz, mas não demais. Muita conversa num churrasco é como fogo muito alto: erra o ponto. Por isto a melhor ovelha ou carneiro é aquele feito em boa companhia, com uma conversa também a fogo lento, espaçada entre goles de cerveja, bom vinho, ou mesmo tragos de uma boa canha.
Bom, aí vem a livre-docência. Esta consiste em fazer tudo isto ao mesmo tempo, cuidando do momento de cada carne. Ha uma sequência clássica, que começa no salsichão, passa pelas carnes de rês, faz uma pausa no galeto e deságua na ovelha ou carneiro. Depois, para arrematar, um derradeiro pedaço de costela, por exemplo. Entre as carnes, as saladas – tema de futura crônica.
Isto é tudo?
Não.
Faltou a titularidade. O livre-docente se torna titular ao fazer tudo isto ao mesmo tempo, cercado pela horda de intrusos e intrusas ao redor, conseguindo manter o ritmo, a sequência e a qualidade. Os intrusos são invariavelmente machos, e da pior espécie. Há dois tipos. O primeiro é o que fica ao lado da churrasqueira e belisca tudo o que passa. Normalmente é um parente de algum convidado, ou do dono da casa, se o convidado for o churrasqueiro. Ele se vale desta condição privilegiada, como algum baronete feudal, para se colocar nesta área estratégica e furtar, como se fora um direito de imposto, uma bicada de tudo o que passa. E ainda se põe a contar piadas sem graça e a fazer comentários os piores possíveis.
O outro tipo de intruso é aquele que acha que sabe mais do que o churrasqueiro, e passa o tempo todo a dar palpite: “isto aqui vai passar demais, aquele já passou, est’outro ainda não está pronto, mas tu não vai botar aquela costela duma vez?” E assim por diante. Só matando.
As intrusas, normalmente, são mães pressurosas, sobretudo ao norte do Rio Grande, que querem proteger os seus preciosos rebentos. Colocam-se na frente do churrasqueiro, com um pãozinho aberto, muitas vezes com o miolo retirado e cheio do abominável vinagrete, dizendo “eu quero um pedacinho para meu filhote ou minha filhota”. Não adianta dizer que não há nada pronto, porque a resposta vem certeira: “mas ele ou ela está com tanta fome…” O melhor nestes casos é ter algo feito muito cedo, de preferência alguma carne magra que fique bem-amada logo (intrusa costuma detestar carne mal passada), para enfiar goela abaixo do rebento ou da rebenta.
Por estas e por outras um amigo meu, quando fazia churrasco, punha em volta da churrasqueira alguma daquelas fitas de trânsito, amarelas e pretas, avisando: “quem passar daqui corre risco de vida”.
Convenhamos, assim é fácil. Embora este meu amigo retomasse as velhas tradições campeiras das correrias militares que tornaram o churrasco tão popular, evocando os tempos em que um gesto de mais ou de menos na pampa desabrida terminava em degola.
Voltaremos ao assunto. Do churrasco, quero dizer, para falar do pós-doutorado.
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Na série O reino da cozinha, Flávio Aguiar fala de vida, política e outros conflitos comestíveis. Para mais churrasco, petisque a crônica “Minha estreia na churrasqueira”.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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