As coisas não saíram como nós combinamos
O novo filme de Marcelo Masagão como marco e epílogo narrativo para o ciclo do lulismo brasileiro.
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
O filme Ato, atalho e vento (2015) de Marcelo Masagão é composto por retalhos de 143 filmes montados pelo diretor a partir do encontro com o texto O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud. Especialmente no início, ele é um pequeno desafio para cinéfilos, cativados pelas lembranças fortíssimas de imagens de clássicos como Viagem à lua de Méliès ou O homem que não estava lá dos irmãos Cohen. São sequências de divas com Gloria Swanson e Catherine Deneuve, de embarques e desembarques, de navios e de trens. São imagens recursivas como janelas dentro de janelas, viagens dentro de viagens. Lentamente suspendemos nosso impulso narcísico de indexar as cenas com suas histórias originais e somos tomados pela própria mágica da montagem. Passamos então para o momento dos encontros, das pequenas situações, das formas repetidas, da persistência dos movimentos. Somos levados a redescobrir que os próprios atores são o que são: funcionários em busca do melhor ângulo, escravos do gesto perfeito, artesãos da representação, devotos das palmas. Tudo falsidade, ilusão e artifício. É esta a posição enunciativa que se pretende “realista”.
Em outros momentos a estratégia do filme consiste em reter um mesmo ato – por exemplo, correr, comer, olhar ou beijar – variando personagens e paisagens. Somos então confrontados com nossa pobreza de fantasia, tão presente na clínica dos neuróticos quanto na imaginação política de nossa época. O filme nos expõe a miséria de nossa teoria espontânea e intuitiva de que “só mudam as moscas”. De que a vida é apenas uma repetição de um ou dois filmes, essencialmente trágicos, com os quais interpretamos todos os outros filmes que existem, e em geral sentidos como farsas, cópias imperfeitas ou meras confirmações deformadas de suas versões originais. Esta fixação em reencontrar os mesmos inimigos, esta paixão pela identidade do filme, nos poupa o trabalho de, a cada vez, separar moscas e besouros, farsas e tragédias.
O filme de Masagão é um desafio à nossa crença infantil de só há “um e mesmo” filme. Ele quer mostrar, ao contrário, que a essência do filme não é sua continuidade, mas seus pontos de interrupção, que a história é feita de fragmentos reunidos e que os pontos de cruzamento são como ruínas de outros filmes, já filmados ou ainda não filmados. Três exemplos diferentes de como se pode ter visto o mesmo filme antes: (1) o filme de Amarildo parece uma versão do filme de Herzog (2) o filme de Jango é uma versão do novo parlamentarismo peessedebista (3) o filme de Collor é o mesmo filme de Collor.
VALE PARA O CINEMA, VALE PARA A POLÍTICA
Consideremos a experiência diária com a crescente revelação de esquemas de corrupção no país. Não é apenas que nos percebemos enganados. Mais do que isso, agora é como se passássemos a saber como o truque é feito. Este é também o tema do filme Ato, atalho e vento: mostrar como o truque é feito, mostrar como se constroem estruturas de ficção contando sempre, a cada vez, dois pontos e um corte entre eles. Mas o curioso é que, nem o filme nem as revelações da corrupção, chegam a despertar em nós a humildade esperada daquele que é enganado diante de forças e recursos mais poderosos. Quase que o inverso, a primeira reação é ativar nosso complexo de diretor, nossa soberba de maestro, este técnico de futebol travestido de comentarista político, escondido em cada um de nós.
Agimos então como o tolo que acredita piamente que agora que ele descobriu como se faz o truque da bolinha em baixo dos três copinhos ele não será mais enganado. O verdadeiro tolo não é o que é enganado, mas aquele que, depois adquire a inabalável convicção, que agora sabe como o truque foi feito. E é na segunda vez que a aposta é mais alta, e é nela que o tombo dói mais ainda. Como dizia Lacan, aquele que se acredita “não tolo”, “não pato” (non dupe), erra. O “não tolo” está sempre perguntando “quem somos nós” e sempre decepcionado por que não foi isso que “nós combinamos”.
Montar cenas e criar efeitos, inverter perseguidores e perseguidos, orquestrar ódios e gerir preconceitos. Tudo parece fácil quando se sabe contar com máscaras, duplos e projeções imaginárias. O mais difícil é entender porque somos tão facilmente influenciáveis e vulneráveis em nosso estado de “esperteza”. O truque dentro do truque é que não somos só dirigidos por interesses alheios como a propaganda, a media, os produtores profissionais de tendências e atitudes, os pregadores das religiões de resultados… O “verdadeiramente tolo” é aquele que acha que sabe como isso tudo “verdadeiramente funciona”.
Contra isso, o filme de Masagão nos lembra que são sempre muitos filmes. Filmes dentro de filmes, montagens entre filmes, planos e sequencias entre filmes. Contra este mar de contingências está lá a posição do “esperto”. É aquele que desconhece que a verdade possui estrutura de ficção. É aquele que quer apreender o Real a baciadas, nem que seja baciadas de sangue, ódio ou de justiça. O tolo que conclui que se o outro está errado, ele obviamente está com a razão.
BRASIL: QUE CORTE QUEREMOS?
A palavra “plano” tem mais de um sentido. No cinema, designa uma tomada da câmera, entre um corte e outro. Em política, designa algo como uma agenda, um conjunto de intenções de realização futura, que pode ou não ser alterado. E na geometria, designa um espaço formado por um ponto fora de uma reta (ou três pontos não colineares). Como se vê, nos três casos um plano define-se pelo seu corte, pela não-linearidade, por pelo menos um ponto de exceção. O filme de Masagão coloca a questão crucial para o momento: qual corte queremos?
Sêneca dizia que para o tolo (stultos) todos os ventos lhe parecem contrários, porque, no fundo ele não sabe para onde vai. O filósofo estoico estava a nos lembrar que o verdadeiro tolo é aquele que acredita solidamente no plano do Outro. Ele pensa que este Outro lhe estaria a enviar ventos contrários, em vez de considerar que os ventos são proporcionais aos seus planos. Aquele que se agarra ao grande plano do Outro manipulador – seja ele a Esquerda, o Diabo, o Encosto ou as Multinacionais – tende a secundarizar que também somos manipulados pelos nossos próprios desejos desconhecidos, ainda que triviais. Aquele que do alto de sua sabedoria de “metido a diretor do filme” proclama que tudo não passa de dinheiro e interesse dos poderosos, que tudo estará bem “se você pagar a conta do cartão de crédito” não abandona sua teoria de que há um e somente um plano em jogo, sem corte, sem interrupções. Ainda que ele seja o plano do pior.
É por isso que se diz que em política não existe vácuo. Em momentos de anomia ou de crise institucional, em momentos de suspensão de sentido somos ávidos por embarcar num novo plano. Somos afoitos para concluir que as coisas não saíram como combinamos. Somos manipulados por nossa paixão por querer criar sentido, direção e continuidade “no filme” ali onde, às vezes, só existem pedaços de cenas selecionados, ainda que não ao acaso. No filme de Masagão até mesmo a morte muda de figura quando ela aparece em um festival mexicano ou pelas lentes de assaltantes de túmulos. Até mesmo uma frase solta como “deixe-me a sós” se presta a dizer qualquer coisa. Somos manipuláveis por pequenas imagens, que agem como fetiches de um filme, há muito visto e esquecido. A sinopse do filme de Masagão não podia ser mais atual: “as coisas não saíram como havíamos combinado”. É por isso que o filme serve como marco e epílogo narrativo para o ciclo do lulismo brasileiro. Subitamente nos apercebemos que “nós já vimos este filme antes”.
Mas ele serve também como antídoto contra o Grande Plano de purificação moral daqueles que pela denúncia governam e que pela denúncia serão governados. Estamos falando da bancada da bala e da bancada da fé (curiosamente coligados), liderados pelo síndico de ocasião e ecoados pelos intelectuais que querem mais prisões e menos escolas… só porque não vimos este filme antes isso não quer dizer que ele seja novo.
Segundo o Velho Testamento as cidades de Sodoma e Gomorra seriam destruídas pelo fogo e pelo enxofre, dado o grande número de pecadores que ali habitava. Ainda que a exatidão de tais pecados permaneça uma controvérsia hermenêutica, simpatizo particularmente com a versão que afirma que eles eram de três tipos: ganância, apego excessivo à propriedade e maus tratos para com os estrangeiros. Não tendo encontrado dez homens justos os descendentes de Abrahão são salvos, mas com uma condição: não deviam olhar para trás. A esposa de Ló desobedeceu transformando-se em estátua de sal. Corte é corte. Está aí esta nossa tendência a olhar e nos apresentarmos diante da cena, sempre como se estivéssemos fora dela.
Vale para o cinema, vale para o Brasil. Aqueles que pediam o impeachment de Dilma agora se veem, eles mesmos, diante da difícil tarefa de convertem-se em estátuas de sal, fazendo valer para a si a lei que antes clamavam para o Outro. As leis de enxofre e fogo passam por truques como a condução oportunista do projeto de lei sobre a redução da maioridade penal, apoiam-se na injustiça, patente e reconhecida, para praticar a vingança. Esta paixão inconsequente pela falta de ética dos outros (estes estrangeiros), este apego à lei como se ela fosse propriedade privada de seu executor, esta ganância por ser o diretor do filme tem que acabar. Isso não se fará apenas invertendo os polos do Grande Plano, nem imaginando que o qualquer oposto de um erro é naturalmente um ótimo acerto.
Nosso momento é de corte e interrupção. Há um grande desejo de que um certo Brasil termine de vez e fique para trás. Quem quiser gozar com sua destruição que olhe para trás e se vá junto com ele. Com os restos destes filmes desejados, talvez possamos fazer outra coisa, como Masagão nos mostrou.
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Christian Dunker debateu “Nacionalismo, identidade nacional e segregacionismo”, com Gilberto Maringoni e Jessé Souza no Seminário Internacional Cidades Rebeldes. Confira a gravação integral da mesa:
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). Colabora também com o livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo/Carta Maior, 2015). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Amo. Amo cada palavra q C Dunker escreve. É boa fonte. Que texto primoroso a nos fazer pensar e auto analisar. Como é bom beber seu saber. Amplia o peito o fia a alma. Cada dia o amo e curto mais. Parabens!
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