Potestad
[Celso Frateschi em cena em Potestad, dirigido por Pedro Mantovani]
Por Izaías Almada.
Passando uma vez por Madrid, mais precisamente em 1984, entrei numa livraria apenas por curiosidade, pois não tinha nenhum livro em especial para comprar naquele momento. Tenho esse vício das livrarias até hoje.
Pelo passeio aleatório por estantes e mesas abarrotadas de livros, um deles me chamou a atenção em especial. Já não me lembro do título nem do nome do autor, mas há uma razão especial para isso. Era um livro, talvez dos primeiros, a narrar a guerra suja da Argentina e, em particular, os horrores praticados nos centros de detenção de presos políticos, com destaque para a malfadada Escola Superior de Mecânica Armada (ESMA), onde desapareceram milhares de argentinos.
Tomado pela angústia e pela aflição em ler alguns dos relatos, houve um momento em que me vi obrigado a sentar num dos sofás para eventuais clientes, sentindo o coração bater e o início de um mal estar. Fechei o livro, devolvi-o à estante de onde o retirara e prometi a mim mesmo naquele momento que jamais voltaria a ler um livro com aquelas características. Fechei o livro quando me deparei com a descrição da tortura e morte de uma prisioneira grávida já de vários meses.
O tempo, dizem, se encarrega de curar certos traumas, mas nem todos, acrescento. Ainda assim, fui assistir a alguns filmes argentinos nos últimos anos, filmes que eu sabia abordarem o período negro da ditadura portenha dos anos 70. Aliás, é sempre bom pontuar que em se tratando da memória e da resistência dos que lutaram contra as ditaduras sul americanas, o cinema argentino dá de dez a zero no cinema brasileiro. Não há sequer a possibilidade de comparações.
Filmes como A História Oficial, Kamchatka e O segredo dos teus olhos, para ficarmos nesses três, são verdadeiras obras primas do cinema argentino sobre o tema. O nosso mais conhecido “O que é isso companheiro?” é uma piada do Bruno Barreto.
Em teatro eu não conhecia nenhuma peça a respeito de tão delicado assunto e fui surpreendido por “Potestad” de Eduardo Pavlovisky, um monólogo inteligentemente bem construído em que somos envolvidos – à saída – na lembrança de um pai que procura explicações para o sequestro de sua filha, sua relação com a mulher, a violência do ato, a saudade antecipada pela perda de alguém que se ama, as roupas, os cheiros, gestos, ambiguidades, a cura do próprio sofrimento pelo sofrimento alheio, até nos darmos conta do verdadeiro significado dos acontecimentos que vão sendo narrados.
Com uma segura e magistral interpretação de Celso Frateschi, ator que comemora com o espetáculo 45 anos de palco e arena, o teatro continua mostrando ser uma das artes de comunicação mais intensa entre seres humanos. Ao seu lado a argentina Laura Brauer que além de espectadora privilegiada na sua quase mudez em cena, ainda trabalhou na produção do espetáculo e na concepção de um vídeo apresentado.
A peça foi escrita em 1985, um ano após eu ter me impressionado com as descrições de tortura na livraria madrilenha, só que desta vez, e não propriamente pelo passar do tempo, mas, sobretudo pela engenhosidade dramatúrgica de Pavlovisky e pela sensível interpretação de Frateschi, senti-me quase curado do trauma de muitas lembranças.
Lembranças que no Brasil, apesar do esforço de muitos, ficam mais nas palavras do que propriamente na justiça à memória dos que foram torturados e dos desaparecidos políticos, razão pela qual é possível ainda encontrar entre nós, em pleno ano de 2015, energúmenos que saem às ruas pedindo a volta dos militares ao poder. Pessoas que vivem num passado que desconhecem ou que com ele colaboraram, lançando sobre as atuais Forças Armadas brasileiras a isca do rompimento democrático, devida e recentemente muito bem rechaçada pelo seu comandante em chefe.
Diz o autor Pavlovisky:
“Quando em 1985 me veio à cabeça escrever minha peça ‘Potestad’, o fiz para refletir sobre o drama humano dos raptores de crianças da ditadura. Pensei na ‘ambiguidade’ do drama do repressor em situação limite. É que a repressão brutal também foi sofisticada e criou novos dados psicopatológicos, tanto nas vítimas quanto nos repressores… Em ‘Potestad’ tentei mostrar o sofrimento de um médico do aparato repressivo que, não podendo ter filhos com sua mulher, roubou uma menina numa operação em que foi chamado para dar o laudo de morte de seus pais”.
Drama de altíssima intensidade coroado pela tragédia. Há um tempo construído por Frateschi em cena, graças também a habilidade dramatúrgica de Pavlovisky, que dá a nós – espectadores – a possibilidade de acompanhar a angústia do personagem e ao mesmo tempo refletir sobre o lado perverso da condição humana, essa em que nos confrontamos com a mais sincera busca do humanismo e os nossos desejos mais primários de sobrevivência a qualquer preço. Essa que nos oferece a democracia para votar em homens íntegros e paradoxalmente coloca um insensato na presidência da Câmara de Deputados em Brasília, por exemplo.
Potestad é dirigido por Pedro Mantovani que, nas palavras de Celso Frateschi “representa uma nova geração de diretores que reinventam o teatro revigorando o seu sentido”. A peça foi indicada por Mantovani a Frateschi, tendo o diretor participado de trabalhos de vários grupos paulistas, como o Teatro dos Narradores, Folias, Tablado de Arruar e outros. A química da dupla deu certo e Potestad é um daqueles espetáculos que nos intrigam e comovem, repito, por colocar em confronto interior o médico e o monstro que habita cada um de nós.
Ao encenar Potestad, o Ágora, muito embora se proclame um teatro sem adjetivos, continua na senda dos que acreditam na presença transformadora dessa arte milenar, tão bem representada no Brasil por Augusto Boal, com quem Frateschi iniciou a sua caminhada.
Difícil dizer, num espetáculo que usa a razão, a inteligência, para nos comover e, quanto a mim, consegue tal objetivo, eleger essa ou aquela cena como a mais bem realizada, esse ou aquele efeito como o mais original ou criativo, pois fica evidente que todos os seus criadores usam os recursos que têm à mão para o trabalho coletivo de alto nível, onde as cores isoladas na paleta não refletiriam nem de longe o resultado cromático final. Como a cenografia e os figurinos de Sylvia Moreira, por exemplo.
Ainda assim, vou me contradizer, e salientar uma metáfora visual que me chocou e encantou ao mesmo tempo, sintetizando o horror do que foi a repressão das ditaduras na América do Sul: o momento em que o protagonista, um médico, tira sua luvas clínicas e abre uma torneira para lavar as mãos. Dessa torneira jorra o sangue de seres humanos que outro crime não cometeram senão o de lutar pelos menos favorecidos.
Atual, provocador de reflexões para os dias que se vivem no Brasil, Potestad é um espetáculo a ser visto na sua atual temporada no Teatro Ágora no bairro da Bela Vista (Rua Rui Barbosa, 664) até 04 de julho.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
gostei da narrativa e das criticas a respeito dos militares e dos filmes pós ditadura no Brasil. Me deu vontade de assistir a peça quando vier para o Rio.
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UUUUUUUUUUFA!!!!Cada vez que me deparo com um cenário como os descritos por voce preciso de um sofá camo aquele de madrid pra me sentar e me retorcer por dentro pra não atomizar a angustia do momento atual do Brasil…O antigo som das sirenes avizando dos ataques aéreos foram transformados em um sinal mais covarde,mais entreguista e mais torturante -plim plim.
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