Morte e ressureição de um fantasma
Por Edson Teles.
Recentemente, assistimos à apresentação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e, posteriormente, de algumas comissões da verdade locais ou de instituições específicas. Nestas peças sobre o passado recente do país houve a apuração de acontecimentos históricos sem, contudo, mobilizar seu potencial de gênese do presente ou os seus efeitos na política democrática.
Alguns relatórios, como o da Comissão da Verdade de São Paulo, foram mais enfáticos em fazer a relação entre momentos políticos aparentemente distintos, como os da ditadura e os da democracia. O que se verificou é que a verdade sobre os desaparecidos políticos, a estrutura de repressão, a venda do país para as grandes empresas, os arquivos militares e outros tantos elementos do projeto político iniciado na ditadura foram minimamente desvendados. O grande esforço e dedicação dos que trabalharam nestas comissões se esvai nas fendas de uma construção política precária.
Quanto mais caminhamos em direção à reconstrução deste passado, mais corroboramos com o esquecimento de seus profundos significados ao apresentarmos uma história morta e sem corpo (ver “A construção em abismo da história“). Sim, de certo modo, é isto que se fabricou no processo de revisitar a história como se ela se encontrasse em um passado que não nos pertence mais – a não ser como herança maldita com a qual a democracia já teria rompido.
Há poucos dias, a morte da história ressurgiu, como normalmente ocorre, na forma do fantasma. Desta vez, o espectro apareceu como “prova” de uma transição política bem sucedida entre ditadura e democracia. Faleceu o general Leônidas Pires Gonçalves, torturador e assassino durante os anos setenta, quando chefiou o DOI-Codi do Rio de Janeiro. Seu nome consta do Relatório da Comissão Nacional da Verdade.
No momento de sua morte, a grande mídia rapidamente se esforçou por apresenta-lo como um dos artífices da transição pois, como ministro do Exército do presidente José Sarney, teria garantido a continuidade do processo após a morte de Tancredo Neves. Grande falácia. Com um pouco de pesquisa, qualquer um de nós pode verificar o quanto aquele general, hoje espectro autoritário desta democracia, destruiu cada passo democratizante do país, forçando a aceitação de “pactos e acordos”, como o da manutenção da impunidade com base na Lei de Anistia de 1979.
Ouvir as notícias da morte do general e da ressureição constante do fantasma do passado nos remete à ideia do impulso do progresso sobre nossas vidas. É como se aquilo que passou já fizesse parte de outro tempo – por isto, é possível contar a história como se ela estivesse morta, ou no máximo como espectro. Trabalhamos com a sensação de que o tempo se apresenta como uma flecha, como nos diz o sociólogo Bruno Latour, de modo que o acontecido fica para sempre eliminado, contabilizado em nossos relatórios sociais como acúmulo do progresso.
O problema é que os acontecimentos se misturam e passado e presente se encontram nas ações da polícia nas periferias e nas manifestações de resistência; na posse da terra por parte de grandes empreendimentos capitalistas e predatórios; na crescente diminuição da liberdade de expressão e no bloqueio das políticas de criação de novas formas de agir. E com isto se amplificam os conflitos, inclusive com o aumento da violência.
As notícias fabricadas no presente, somadas à tese de que houve no passado um conflito extremo entre forças radicalizadas, exigindo a reconciliação nacional e o pacto da transição, parecem indicar que nos alimentamos de nossa história. Mais do que isto, causa a impressão de termos rompido definitivamente com o passado, nos autorizando a construir a história como peça da ruptura, marca dos tempos democráticos em oposição aos maléficos eventos descritos.
Quanto mais se arquiva os tempos da ditadura nos fichários da história, mais se conserva o projeto político experimentado no laboratório autoritário dos anos 60 e 70. Todo relatório de comissões publicado sem a análise e apuração da transição e dos conflitos em democracia, por mais apurado e detalhado que tenha sido, depositou em berço esplêndido a tese do nascimento da democracia por ruptura com a ditadura. Estamos, de fato, tão distante do projeto autoritário “daqueles tempos” como as notícias e os espectros nos fazem acreditar?
Não há resto da ditadura depois de 30 anos de democracia! Há um projeto político autoritário no Estado de Direito brasileiro.
O passado permanece ou, poderíamos dizer neste caso, continua. Quando as formas autoritárias de controle da vida e do cotidiano ressurgem de forma mais violenta, comenta-se sobre uma herança podre da ditadura deteriorando algumas instituições da democracia. Se rompemos com o passado e consolidamos um outro regime, distinto do anterior, o “retorno” do passado só pode se apresentar como recalque, espectro, revanchismo. Não será difícil ouvirmos: “é preciso tomar cuidado, as forças conservadores podem repetir 64, o melhor é defendermos a governabilidade para garantir a democracia duramente conquistada”.
Só é possível acreditar nas instituições do Estado de Direito, na eficácia das leis, nos processos eleitorais e de representação e participação políticas se houver a crença de que rompemos definitivamente com o passado. Sem a imagem de eliminação e finalização dos eventos do outro tempo, não há docilidade e compreensão diante dos conflitos do agora.
A “tese dos dois demônios” somada à estória da reconciliação nacional e do pacto de transição traveste o projeto autoritário experimentado no laboratório ditatorial em fantasmas do regime democrático. Parece-me que vivemos uma democracia de efeito moral (ver, “Democracia de efeito moral“), na qual seu aspecto superficial de liberalismo e de ruptura convive com suas profundezas autoritárias fortemente alicerçadas na história. Ambos aspectos tão reais quanto os fantasmas que nos rondam.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
mouzar: 1- estou promovendo uma oficina de PLAN EJ\AMENTO ESTRATÉGICO neste sábado PARA ETIMULAR A RECONSTRUÇÃO DE UM polo literário em alagoas. quem está promovendo isso é a ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DOS ESCRITORES, que eu asumirei em setembro para durante minha curta gestão transferir a organizaçõ para voce(claro,o amigo terá que virá a maceió), em cuja gestão será desenvolvido um grande plano para a conquista do nobel de literatura deste ano – mouzar o nobel de 2015
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Bando de comunistas, atrevidos e oportunistas que arruinaram o País através da corrupção. A culpa do General é ter sido um frade franciscano no trato com essa corja que hoje destrói o Brasil.
Adriano.
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A ditadura, formalmente, terminou em 1985, porém seus traços mais perversos ainda continuam vivos, inclusive a tortura nos presídios e nas mais variadas formas de brutalidades.
Esses 30 anos não foram suficientes para que pudéssemos, não só fazer uma crítica radical com relação ao autoritarismo, como também construir uma nova cultura comprometida com a democracia.
Isso porque a transição ocorreu com a mistura do novo com o velho, sob o predomínio, em certo sentido, deste sobre aquele.
Grande parte daquilo tudo ainda estão muito presentes, não só através de seus filhotes, conforme ficou demonstrado nas últimas manifestações, como também através de seus traços ideológicos.
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