Violência policial contra os movimentos sociais no Brasil: bala certeira
Sugere-se que a violência policial no Brasil está presente nos inúmeros casos de “balas perdidas”, mas há uma violência institucionalizada, cujas balas são bastante certeiras, quando se direcionam à repressão dos movimentos sociais.
Essa não é, por certo, uma questão nova no Brasil, e remonta à vinda da família Real para o Brasil, em 1808. A questão social, desde então, foi tratada como “caso de polícia”, conforme expressão consagrada pela fala de Washington Luís na década de 20. Lembre-se, ainda, do pronunciamento público do ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Julgman, em 20031, no sentido de que era preciso “baixar o pau da lei” sobre o MST. Expressão que, mais recentemente, no final de 2010, voltou à cena com o atual Reitor da Universidade de São Paulo, João Grandino Rodas, em Editorial do Boletim de Imprensa da Reitoria da USP, para atacar o movimento sindical, também se expressou no sentido de que “ninguém está acima da lei”. Em 2011, para deslegitimar o ato de estudantes da USP, que se postaram contra a presença da Polícia Militar no Campus Universitário, o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, sentenciou: “ninguém está acima da lei”, sugerindo que o ato dos estudantes seria fruto de uma tentativa de obter uma situação especial perante outros cidadãos pelo fato de serem estudantes.
É, como se vê, uma violência em nome da lei, mesmo que a lei, no seu conjunto, não seja aplicada exatamente por aqueles que a utilizam para agir violentamente e que com sua inércia elevam os conflitos sociais.
A questão é que a repressão policial tem aumentado bastante, ultimamente, na exata proporção do crescimento da força dos movimentos sociais.
Em 2011, para a desocupação da reitoria da USP, onde se encontrava cerca de 70 (setenta) estudantes, sendo 25 (vinte e cinco) mulheres, foram utilizados 400 policiais, dois helicópteros, cavalaria e diversas viaturas. Um gasto bastante considerável ainda mais para um Estado, como o de São Paulo, que devia, à época, cerca de R$20 bilhões em precatórios intermináveis, sendo que dos quais R$15 bilhões referem-se a precatórios alimentares, decorrentes de créditos trabalhistas e previdenciários.
Em janeiro de 2012, com fundamento em uma liminar de reintegração de posse, proferida em um processo iniciado em 2004, sem qualquer motivação específica baseada em fato novo, para a garantia de um direito de propriedade que não cumpria qualquer função social, foi determinada a desocupação de um terreno, conhecido por “Pinheirinho”, na cidade de São José dos Campos, onde, depois de vários anos de ocupação, já viviam 1.577 famílias, ou, mais precisamente, 5.488 pessoas, sendo 2.615 com idade entre 0 e 18 anos. Além disso, o assentamento, ou bairro como também era tratado, continha 81 pontos comerciais, seis templos religiosos e um galpão comunitário.
A questão envolvia um feixe enorme de direitos. Assim, ainda que fosse para privilegiar o direito de propriedade, sem a necessidade de justificá-lo pelo pressuposto da finalidade social, haver-se-ia, no mínimo, que assegurar que outros direitos não fossem, simplesmente, desprezados.
O ato da desocupação, portanto, mesmo se considerada legítimo, deveria ser precedido de uma organização tal que permitisse a preservação dos demais direitos envolvidos. Ainda que os moradores se apresentassem armados, dispostos a lutar contra a ordem judicial, as negociações, com todos os meios institucionais possíveis, deveriam conduzir à solução da situação.
Mas não. O Poder Judiciário e o Governo do Estado de São Paulo se uniram contra os moradores do Pinheirinho, tratando-os como inimigos. Mesmo que se pudesse querer utilizar algum argumento de legalidade, o que se viu foi que, depois de quase oito anos de uma situação consolidada, em que um terreno baldio, que servia à especulação imobiliária, foi transformado em um bairro de moradores de baixa renda, foi uma extrema pressa para devolver a posse do terreno à Massa Falida, proprietária do imóvel.
Para tanto, foram mobilizados 2.000 Policiais Militares, helicópteros, cães e armas de todo tipo (não letais). Os moradores foram expulsos, de forma abrupta e violenta, de suas casas na calada da noite de um domingo, fazendo com que essas pessoas deixassem para trás seus pertences, utensílios, roupas e até documentos. Foram conduzidas a abrigos improvisados, sem condições minimamente dignas de sobrevivência, onde foram obrigadas a usar pulseiras com cores diferentes, para que pudessem ser identificadas como moradoras do Pinheirinho.
Aquelas pessoas foram vítimas de uma ação militar típica de guerra, que foi programada durante quatro meses, conforme reconheceu, em recente entrevista, a juíza do processo de reintegração, e que, por isso mesmo, precisou ser executada passando por cima até do acordo judicial assinado pelas partes, no processo da falência, em torno da suspensão da reintegração. E um dado extremamente importante deve ser destacado, que torna a origem da ação policial, a mando do Estado de São Paulo, ainda mais questionável: em entrevista ao Jornal, O Vale, a juíza do processo de reintegração, que concedeu a liminar, confessou que o ato policial não estava plenamente sob o seu controle e que sabia dos riscos que estava impondo aos moradores do Pinheirinho. Disse ela, textualmente: “A operação me surpreendeu, positivamente.”
No domingo de Carnaval, de 2012, nova ação policial na Universidade de São Paulo, determinada por decisão judicial, promove a desocupação da Moradia Retomada. E, mais uma vez, estudantes são conduzidos, à força, a Delegacias de Polícia, para instauração de inquéritos.
O ano de 2013 foi marcado pelos ataques policiais aos manifestantes do MPL, ganhando destaque a violência sofrida pela repórter Giuliana Vallone, da TV Folha, em 13 de junho.
A tragédia que envolveu a morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Ilídio Andrade, atingido na cabeça por um rojão atirado por manifestantes, no dia 06 de fevereiro, durante um protesto contra o aumento da passagem de ônibus, no Centro do Rio, deu o impulso necessário para justificar uma repressão mais violenta ainda das manifestações.
No dia 22 de fevereiro de 2014, em São Paulo, 260 pessoas, dentre as 10.000, que protestavam contra os gastos da Copa, foram cercadas pela polícia e ficaram, então, em cárcere privado, na rua, com sua liberdade subtraída, sem que tivessem cometido qualquer tipo de ilícito. Na ação três repórteres que filmavam a cena foram agredidos, não por coincidência, mas para que não houvesse registro. Além dos jornalistas, que estavam a trabalho, foram detidos dentre outros militantes organizados do movimento estudantil, diretores do DCE da Unicamp, militantes de partido (1o de Maio/PSOL) e um professor da USP (ciências moleculares).
Mas o pior ainda estava por vir, pois sob a desculpa da necessidade de identificar os potenciais baderneiros, “black blocs”, foi iniciada uma seleção de pessoas pela aparência e pela cor da pele, que resultou na libertação dos que eram brancos e aparentemente estudantes, mantendo-se aprisionados os que “pareciam” “black blocs”, quais sejam, os que estavam de roupa preta e os pretos e pobres, segundo o critério adotado…
Para a defesa da Copa, um evento de propriedade de uma entidade privada, a FIFA, a quem se concedeu, inclusive, isenção fiscal plena, a Presidente Dilma disse que “Não há a menor hipótese de o governo compactuar com qualquer tipo de violência. Não deixaremos em hipótese alguma a Copa ser contaminada”, entendendo por violência as manifestações das pessoas que se sentiram aviltadas pela forma como o megaevento abalou a própria soberania nacional. E completou afirmando que para os vândalos e baderneiros será reservada “segurança pesada”2.
Na mesma linha, um dos maiores craques da história do futebol mundial, Ronaldo Cesário, decretou: “nos vândalos, mascarados, tem de baixar o cacete mesmo”.
No dia 15 de maio do mesmo ano, a polícia, literalmente, foi para cima dos manifestantes para desmantelar mais um protesto que se realizava contra os gastos da Copa, e que estava descendo a rua da Consolação.
Em meio a tudo isso, a repressão policial se voltou fortemente contra uma greve de metroviários, que ameaçava “atrapalhar” os negócios do futebol, sendo que no ato de apoio à greve, muitas pessoas foram presas (treze trabalhadores e um estudante da Faculdade de Direito da PUC/SP, Murilo Magalhães).
No primeiro dia Copa, 12 de junho de 2014, houve, em São Paulo, a obstrução da realização de uma manifestação, seguida das prisões dos manifestantes Fábio Hideki e Rafael Lusvargh. Mencionem-se, ainda, a repressão ao ato na Praça Roosevelt, em 1º/07/14; a prisão de 23 ativistas no Rio de Janeiro etc.
Impressiona, por fim, o recente massacre ocorrido no Centro Cívico de Curitiba, no dia 29 de abril de 2015, quando uma força de 1.600 policiais armados com bombas de gás, balas de borracha, armaduras, helicópteros e cachorros pitbulls atacou, de forma violenta, profissionais em greve que buscavam realizar ato político de resistência à votação de uma lei contrária aos seus interesses, lei esta que atinge toda a sociedade vez que interfere na própria configuração do tipo de Estado.
Esse contexto, apresentado de forma extremamente resumida, explica-se pela avaliação há muito realizada por Octavio Ianni, no sentido de que no Brasil,
“Em geral, os setores sociais dominantes revelam uma séria dificuldade para se posicionar em face das reivindicações econômicas, políticas e culturais dos grupos e classes subalternos. Muitas vezes reagem de forma extremamente intolerante, tanto em termo de repressão como de explicação. Essa inclinação é muito forte no presente, mas já se manifestava nítida no passado”3
A criminalização contra os movimentos sociais e a pobreza foi uma constante na história do Brasil, mas nos últimos anos a lógica de repressão chegou a níveis alarmantes, com a tentativa de se editar uma “lei contra o terrorismo”, sendo que, concretamente, o Judiciário até criou uma instituição voltada a condenar, sumariamente, os acusados da prática de ilícitos em manifestações (CEPRAJUD), o que levou a uma nota de repúdio da Associação Juízes para a Democracia:
A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, fundada em 1991, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, tendo em vista a Portaria TJSP – nº 8.851/2013, que institui o Centro de Pronto Atendimento Judiciário em Plantão (CEPRAJUD), instalado neste ano de 2014, ao qual compete a apreciação de comunicações de prisão em flagrante e medidas cautelares processuais penais, relacionadas às grandes manifestações na capital que poderão ser exacerbadas durante a Copa do Mundo, vem a público para dizer:
A criação do CEPRAJUD, composto por juiz assessor indicado pela presidência e juízes designados pela presidência do TJ, sem critérios predeterminados, fere o princípio do juiz natural e a independência judicial.
Em São Paulo há sistema de funcionamento de plantões judiciais, com critérios estabelecidos para designações de magistrados, de primeira e segunda instância, sem o viés restrito, ou seja, para atuar exclusivamente em razão das manifestações (como as que porventura forem realizadas na Copa, ou greve etc…).
O referido Centro é uma jurisdição de exceção, pois criado especialmente para as causas que tenham como fundo as manifestações sociais. Criou-se um tribunal para julgar um determinado cidadão: aquele que protesta.
Cumpre a todos os órgãos do poder estatal a criação de mecanismos de aperfeiçoamento da democracia, sendo que o primeiro instrumento que propulsiona a sua concretização é o ato de protestar.
Nesta medida, o Judiciário Paulista pode fugir à função do Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito, que é o de controle da atividade dos órgãos repressivos e de garantia dos direitos das pessoas. Fechando os olhos para a criminalização das manifestações sociais, transmite para a população que o direito fundamental de manifestar e protestar não é lícito e subscreve o processo de criminalização.
O Estado Democrático de Direito pressupõe o debate aberto e público. Não é possível criar uma sociedade livre, justa e solidária sem o patamar da liberdade de expressão e de reunião, sustentáculos da democracia. Pretender cercear o exercício desses direitos significa retirar dos cidadãos o controle sobre os assuntos públicos.
No núcleo essencial dos direitos, em uma democracia, está o direito de protestar, de criticar o poder público e o privado. Não há democracia sem possibilidade de dissentir e de expressar o dissenso. O direito de protesto é a base para a preservação dos demais.
Diante de inconstitucionalidades e violações de direitos e princípios, a AJD espera a revogação do ato que instalou o CEPRAJUD em São Paulo, mais uma vez lembrando que há plantão judiciário na capital, que presta o serviço jurisdicional, com rapidez e presteza.
André Augusto Salvador Bezerra
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
Fato é que já passou mesmo da hora de se compreender que os movimentos sociais, que representam as parcelas consideráveis de sociedade brasileira que se encontram em posição inferiorizada e que lutam por melhores condições de vida e, por consequência, contra todas as estruturas que privilegiam, de forma totalmente injustificada, alguns setores da sociedade, têm o direito de denunciar que a ordem jurídica só tem sido vista parcialmente e utilizada como instrumento para os impedir de apontar os desarranjos econômicos, políticos e culturais de nossa sociedade e de conduzir, por manifestações públicas, suas reivindicações.
Além disso, sua ação está amparada pela Constituição Federal, que é, como se diz, a Lei Maior, que se estabelece a partir do princípio do Estado Democrático de Direito, consagrando como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º.)
É importante assumir, por fim, que a revolta é uma reação a uma violência, a violência institucional do desrespeito reiterado à obrigação de se implementarem as políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos sociais.
NOTAS
1 Reportagem publicada pelo Jornal Folha de S. Paulo, edição de 29/07/03, p. A-7.
2 Dilma defende legado do Mundial e dia que haverá “segurança pesada”. Notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 17/04/14, p. D-4.
3 Pensamento social no Brasil. Bauru: Edusc, 2004, p. 109.
Confira o dossiê especial “Violência policial: uso e abuso“, no Blog da Boitempo, com artigos, reflexões, resenhas e vídeos de Ruy Braga, Slavoj Žižek, Antonio Candido, Luis Eduardo Soares, Edson Teles, Mauro Iasi, Christian Dunker, Gabriel Feltran, Maurilio Lima Botelho, Marcos Barreira, José de Jesus Filho, Guaracy Mingardi, Maria Orlanda Pinassi, David Harvey, Vera Malaguti Batista, Laurindo dias Minhoto e Loïc Wacquant, entre outros.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
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