Manual de autodefesa intelectual (II)

15 06 03 Izaías Almada Manual de autodefesa iiPor Izaías Almada.

“Para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, colocar todas as coisas em dúvida tanto quanto se possa.” Essa frase do filósofo René Descartes (1596-1650) foi extraída de seus Princípios da Filosofia e Meditações Metafísicas e está citada no programa da peça. Que começa ao som do belíssimo samba de Eduardo Gudin e Roberto Riberti “Velho Ateu”, na voz de Beth Carvalho.

A partir daí, é como se todos nós fossemos convidados ao exercício da dúvida ou, se quiserem, das dúvidas. Um desafio às nossas certezas. Não com a obviedade com que escrevo no parágrafo abaixo, claro, mas com sutilezas, com alguma poesia…

Deus existe? O papa é o seu representante na terra? O medo é um sentimento natural? A covardia é fruto do medo? O que eu leio na imprensa á verdade? Quantas mentiras geraram a invasão do Iraque? Liberdade é poder vestir jeans? Comunista comia criancinha? Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha? A corrupção só chegou ao Brasil em 2002? O primeiro milho é dos pintos? Homem mau dorme bem? Todo político é corrupto? A propaganda é a alma do negócio? Cristo ou Barrabás? A raça branca é superior? Quem semeia vento colhe tempestade? A razão do mais forte é sempre a melhor? Capital ou trabalho?

Com interpretações sob medida para um espetáculo que nos convida à reflexão, as atrizes Fernanda Azevedo, Maíra Chasseraux, Maria Carolina Dressler e o ator Vicente Latorre não só confirmam o talento que têm para o palco, mas – sobretudo – o talento que têm para nos conduzir por um mundo repleto de enganadoras certezas.

Nada me pareceu gratuito na representação do grupo Kiwi, que aponta – entre outras advertências – para o círculo de giz caucasiano que nos cerca. Ou que nos é imposto. Como, por exemplo, a de nos induzir a discutir questões éticas dentro do sistema capitalista, se ele, o sistema, é falto de ética? Perguntem ao José Maria Marin, homem íntegro do futebol brasileiro e que chegou a governar São Paulo durante a ditadura.

Alguém aí na platéia conhece a história dos cinco irmãos Rothschild e de como amealharam uma das maiores fortunas do mundo já no início do século XIX? Ou de como se formaram os bancos? A Bolsa de Valores? O que gera o lucro? Ou quais os verdadeiros interesses que fomentam as guerras modernas e as “crises” capitalistas?

Contudo, chega a ser delicado destacar essa ou aquela cena da peça, como a metáfora machadiana do canário, a distribuição de signos do zodíaco pela plateia, a “impressionante” levitação de uma mesa ou a desconstrução de um tema minimalista composto pelo músico estoniano Arvo Part, para muitos uma música celestial, para outros uma espécie de introdução ao estado hipnótico, à catatonia. Nesta sequencia, em particular, serão justos os aplausos para os músicos Elaine Giacomelli e Eduardo Contrera, também diretor musical do espetáculo.

Vou aqui arriscar um lugar comum, uma premissa, se quiserem: o mundo é cheio de contradições! Maravilha de pensamento, não? Profundo, tão original quanto qualquer pensamento do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e muitos de seus sequazes. A partir daí tudo se justifica: a guerra, a injustiça, a exploração do trabalho, as indulgências, os gigolôs da fé, farinha pouca meu pirão primeiro, os juros bancários, as acusações sem provas, a violência contra a mulher, o racismo, todos somos iguais perante as leis, eu não tenho nada a ver com isso… Vá prá Cuba!

Se eu pudesse resumir a uma ou duas frases a montagem do Kiwi, arriscaria fazer as seguintes perguntas: com quantos dogmas se constrói a ignorância? Com quantas verdades se impõe uma mentira? As respostas? Bom, que o leitor arranje um tempinho e vá ao Galpão do Folias em julho e assista a continuação da temporada desse Manual de Defesa Intelectual e terão as respostas da Maíra, da Fernanda, do Latorre, da Maria Carolina, da Elaine, do Contrera e também do Clébio de Souza lá no seu cantinho operando a luz e o som.

A resposta do encenador Fernando Kinas está no final de seu texto no programa da peça:

“Em muitos casos, para além de divergências políticas, culturais ou filosóficas, estão em jogo mistificações e manipulações grosseiras que ganham força pela ausência do debate público plural e informado, e pela tibieza no exercício do pensamento crítico. Isso não significa dizer que seja possível mudar o mundo mudando as idéias (seria outra espécie de idealismo), mas que mudar as idéias exige a mudança do mundo. Nesta dificílima tarefa – citando apenas alguns marcos do pensamento ocidental – Platão não nos ajuda, Descartes e Espinoza deram pistas valiosas e Marx escancarou as portas”.

O problema, Kinas, é que por essas portas escancaradas por Marx entraram muitos oportunistas em seus Cavalos de Tróia… O que não deixa de ser uma atualíssima e necessária reflexão, sobretudo no Brasil atual.


Manual de autodefesa intelectual | Kiwi Companhia de Teatro
Temporada de 03 de julho a 02 de agosto de 2015, sextas e sábados 21h e domingos 20h
Local: Galpão do Folias – R. Ana Cintra, 213 – Campos Elíseos, São Paulo SP (ao lado do metrô Santa Cecília)
Recomendado para maiores de 14 anos
Ingressos: 20,00 (inteira) e 10,00 (meia entrada)

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em Manual de autodefesa intelectual (II)

  1. Desde os anos 60, o teatro foi uma das expressões mais contundentes do instante vivido pelo país que infelizmente se perdeu pelas imposições da alienação capitalista – “cultura pop”, “cultura de massa”, entretenimento etc etc etc…Salve, salve o retorno dos bons grupos, dos bons textos, junto a essa gente que ressurge na melhor das artes. O grupo deveria ter um grande patrocínio para levar a peça à maior parte da população brasileira.

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  2. Francisco de Araujo Santos // 04/06/2015 às 2:05 pm // Responder

    Imagine um chefe e seus colaboradores. Um dia se dá conta de que está sistematicamente, mas sutilmente, roubado. Tem que examinar um por um.Da mesma forma idéias falsas são ladras da nossa vida intelectual. Têm que ser analisadas uma por uma, para eliminar depauperação mental.

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