Reificação em História e consciência de classe: de Max Weber a Karl Marx

Lukács_mussePor Ricardo Musse.

A determinação da “missão” do proletariado, esforço inerente à teoria que o entende como sujeito (e objeto) da história, conduziu Lukács a desenvolver uma intrincada formulação do que seria a sua “consciência de classe”. Seu livro foi um dos primeiros textos a observar que não se pode tratar da esfera da subjetividade, no âmbito do marxismo, sem retomar a questão do “fetichismo da mercadoria”. Ele se propõe então a recuperar esse conceito, que rebatiza de “reificação”. Assim, traz de volta ao centro do debate uma categoria que foi ignorada por décadas na linhagem marxista e preservada na sociologia alemã com sinal trocado.

A proeminência concedida por Lukács ao fenômeno do “fetichismo da mercadoria” ensejou uma nova via para a interpretação de O capital. Nela, esse conceito tornou-se o feixe estruturante e o princípio explicativo da principal obra de Marx. Ele considerou a própria crítica da economia política como uma dos resultados da crítica do fetichismo da mercadoria. Mais impactante, porém, foi o fato de História e consciência de classe ter alçado a avaliação do teor de reificação em critério decisivo das análises e diagnósticos do presente histórico.1

Nessa leitura de O capital,2 sob vários aspectos inédita, Lukács define a mercadoria como “categoria universal do ser social total”. A “relação mercantil” e seu desdobramento inevitável, o “fenômeno da reificação”, tornam-se assim o nexo primordial da ordem capitalista, o “protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade”.3

O artigo “A reificação e a consciência do proletariado”, peça central do arcabouço conceitual de História e consciência de classe, não limita a consideração do fenômeno do fetichismo da mercadoria ao âmbito econômico. A investigação do predomínio de relações coisificadas no direito e no Estado – mas também na ciência, na arte e na filosofia – procura comprovar que a mesma reificação à qual o trabalhador está submetido no interior da fábrica encontra-se disseminada em todas as classes e esferas da vida social. 

Lukács complementa e atualiza assim uma pauta que permaneceu implícita em O capital. Nesse livro, Marx não teve tempo de desenvolver os resultados e as conseqüências da expansão da relação mercantil nas demais dimensões da sociedade burguesa, tópico que esboçou em outros textos, especialmente no Manifesto Comunista.4

Sem poder contar com reflexões na tradição marxista acerca dos impactos da reificação no âmbito da subjetividade, Lukács se viu forçado a recorrer ao arsenal teórico desenvolvido pela sociologia alemã. História e consciência de classe institui um diálogo crítico com as obras de Ferdinand Tönnies, Georg Simmel e Max Weber, privilegiando as categorias oriundas de uma leitura bastante peculiar de O capital, e, em particular, da incorporação – um tanto distorcida – por esses sociólogos do conceito de fetichismo da mercadoria.

Segundo Lukács, a fonte primária, o polo de disseminação da reificação situa-se na organização capitalista do trabalho. A trajetória histórica de suas modalidades principais, da oficina artesanal à grande indústria, não cessa de ampliar a fragmentação da subjetividade do trabalhador:

Se perseguirmos o caminho desenvolvido pelo processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas humanas e individuais do trabalhador. […] Com a moderna análise “psicológica” do processo de trabalho (sistema de Taylor), essa mecanização racional penetra até a “alma” do trabalhador.5

História e consciência de classe, no entanto, não se restringe à descrição da intensificação da reificação na indústria moderna, ressaltada por Marx na seção IV de O capital. Algumas passagens do livro de Lukács dão a entender que o predomínio da forma-mercadoria exige e estimula uma condição necessária tanto para a produção de bens em larga escala como para o fomento da troca mercantil: o rompimento dos laços que prendiam os trabalhadores à vida comunitária.

Mais que uma reconstituição da narrativa histórica ensaiada por Marx no capítulo de O capital, denominado “A assim chamada acumulação primitiva”, esses trechos de Lukács aproximam-se da contraposição entre “comunidade” e “sociedade”, recorrente desde a obra homônima de Ferdinand Tönnies.6 No endosso dessa dicotomia, todavia, História e consciência de classe adota uma perspectiva ligeiramente diferente da que predomina na sociologia alemã. O conceito de reificação é empregado explicitamente como chave explicativa da distinção entre a experiência social no capitalismo e a vivência própria das formas históricas do passado.

Quando salienta que a linha divisória entre essas duas formas de sociabilidade pode ser melhor aferida a partir dos efeitos da reificação – e por conseguinte, da influência da dimensão econômica sobre as demais esferas da vida social –, Lukács de certo modo, detecta e redimensiona a presença do trabalho abstrato, exposta por Marx em O capital, na gênese do livro de Tönnies.

Essa inferência permite que História e consciência de classe se aproprie, sem muitas ressalvas ou mediações adicionais, de algumas categorias desdobradas por Georg Simmel a partir da leitura tanto do livro I de O capital como de Comunidade e sociedade. Lukács incorpora a transcrição, iniciada por Tönnies e exacerbada na Filosofia do dinheiro, do trabalho abstrato em “razão abstrata”, assim como a “intelectualização” que lhe é conexa – responsável, em certa medida, pela “matematização” característica da ciência moderna.7

No caso de Max Weber, esse mesmo procedimento, concentrado no transplante do conceito de racionalização, gerou, ao longo da recepção de História e consciência de classe, uma teia crescente de mal-entendidos. A maioria dos comentadores, inclusive alguns teóricos do marxismo ocidental, passou a identificar nesse livro uma aproximação insólita de Marx com Weber, determinada pela fusão de “reificação” e “racionalização”.

Uma leitura mais atenta de História e consciência de classe permite observar, porém, que aí a “racionalização” comparece como um subproduto, uma especificação dos efeitos da reificação. Subsumindo a categoria de Weber à doutrina de Marx, Lukács descreve a possibilidade de previsão e cálculo cada vez mais exatos como consequência de um processo histórico, como resultado da progressão da divisão capitalista do trabalho, que retalha o processo produtivo em uma série de operações parciais, abstratas e especializadas.

A própria racionalização da vida é apresentada, na versão de Lukács, como a adequação da ação ao devir das leis objetivas da sociedade. A possibilidade de cálculo e previsão “racionais” decorre assim da sujeição dos indivíduos no capitalismo ao destino comum de “espectadores impotentes”, à atitude contemplativa diante dos fatos sociais. Desse modo, o processo de racionalização não constitui mais que uma das consequências do fetichismo da mercadoria.

Além disso, na interpretação de Lukács – nesse ponto fundamental oposta à posição defendida por Weber –, os desdobramentos da racionalização social não configuram um movimento inexorável. Primeiro, ele ressalta que sua influência restringe-se aos sistemas parciais, que a conexão entre esses sub-sistemas desencadeia uma série de contradições, sintetizadas por Marx na expressão “anarquia da produção”. Em suas palavras, “[…] toda a estrutura da produção capitalista repousa sobre essa interação entre uma necessidade submetida a leis estritas em todos os fenômenos isolados e uma irracionalidade relativa do processo como um todo”.8

O argumento decisivo, todavia, consiste na explicação da reificação – concebida como forma constitutiva, regra universal de objetividade à qual a racionalização subordina-se – como algo não monolítico. Lukács sustenta que a disseminação da reificação não é completa, sendo perpassada por brechas que possibilitam a sua superação, facultando a passagem ao socialismo.

Segundo História e consciência de classe, a lógica da produção capitalista estabelece limites objetivos apenas para a consciência de classe da burguesia. A função prática da consciência impede que essa classe – pela própria “possibilidade histórica” – logre compreender que sua conformação constitui uma etapa determinada e transitória da sociedade humana.

A “atitude contemplativa”, inerente aos que se encontram submetidos a uma organização do trabalho alheia, determina também o comportamento daqueles que, em tese, comandam esse processo, os capitalistas. Mesmo o empresário industrial, “o capitalista como portador do progresso econômico técnico etc., não age, mas sofre a ação, […] sua “atividade” se esgota na observação e no cálculo exatos do efeito objetivo das leis sociais naturais”.9

A burguesia concebe os fenômenos da sociedade capitalista como essências supra-históricas. Incapaz de ultrapassar a prioridade metodológica dos fatos ou de se aperceber de seu caráter histórico, presa à significação imediata dos objetos, a ciência burguesa nunca apreende a totalidade concreta.10

A organização do proletariado como classe, no entanto, descortina modalidades de ação que suplantam a “atitude contemplativa”, generalizada na sociedade pela reificação. Somente quando cotejado em escala individual, como aferição de consciências psicológicas, o operário compartilha a condição de “espectador impotente” com a burguesia. Uma vez organizado como classe, a “possibilidade objetiva de sua consciência” apresenta-se como negação das formas de vida reificadas.11

O estremecimento da supremacia da reificação manifesta-se na conjugação simultânea de dois vetores: o agravamento da crise – em suas diferentes dimensões: econômica, política, moral, cultural etc. – e a emergência da ação revolucionária do proletariado.

Lukács concentra a sua investigação na esfera da subjetividade, examinando os efeitos da reificação no Estado, no direito, na ciência, na filosofia, na arte etc. A compreensão de seus impactos no conjunto da vida social abre, porém, uma rota que lhe permite elucidar a gênese do reformismo (e a subseqüente divisão do movimento operário).

Nessa trilha, História e consciência de classe atribui, em larga medida, a incapacidade das diversas vertentes da socialdemocracia em transformar a sociedade ao fato de que sua prática política encontra-se aprisionada nas malhas da reificação. Não é por mera incompatibilidade política, portanto, que Lukács associa o marxismo da Segunda Internacional à ciência burguesa.

Na equação que ele arma, o proletariado detém a disposição de apreender a totalidade histórica do capitalismo não por uma analogia com o sujeito-objeto idêntico da Fenomenologia do espírito, mas porque se trata da única classe da sociedade capitalista apta a “compreender as formas reificadas como processos entre homens”. Esse movimento de “desalienação”, não custa repetir, depende, sobretudo, da capacidade dessa classe em encetar a ação revolucionária:

Justamente porque é impossível para o proletariado libertar-se como classe sem suprimir a sociedade de classes em geral, sua consciência, que é a última consciência de classe na história da humanidade, deve coincidir, de um lado, com o desvendamento da essência da sociedade e, de outro, tornar-se uma unidade cada vez mais íntima da teoria e da práxis.12

História e consciência de classe altera significativamente a configuração do marxismo delineada pelo último Engels e pela geração subsequente. Tanto o método quanto o sistema (bem como a sua conexão) são redefinidos a partir de uma nova perspectiva que compreende o materialismo histórico como a “teoria de uma prática revolucionária”.

Referências bibliográficas

LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes, 2003.

MARRAMAO, Giacomo. O político e as transformações: Crítica do capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990.

MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo, Hedra, 2010.

MARX, Karl. O capital. São Paulo, Abril Cultural, 1983.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital – rumo a uma teoria da transição. São Paulo, Boitempo/Unicamp, 2002.

MUSSE, Ricardo. “Introdução”. In: MARX, KARL. Manifesto do partido comunista. São Paulo, Hedra, 2010.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. In: revista Mana, 11(2), p. 577-591. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2005.

TÖNNIES, Ferdinand. Gemeinschaft und Gesellschaft. Grundbegriffe der reinen Soziologie. Darmstadt, Wiss. Buchges, 1991.

WEBER, Max. A ciência como vocação. São Paulo, Cultrix, 1972.

NOTAS
1
A elaboração de uma teoria da reificação consiste no ponto mais destacado pela parcela da posteridade que atribui a História e consciência de classe uma recorrente atualidade (recepção que Lukács nunca cessou de contestar). O livro tornou-se, para essa vertente, a matriz de uma série de diagnósticos do presente histórico que se mostraram adequados às modificações do capitalismo – na ocasião de sua publicação ainda quase imperceptíveis e consolidadas plenamente somente após os desdobramentos da crise de 1929. Para um relato das discussões sobre esse período, cf. MARRAMAO, Giacomo. O político e as transformações: Crítica do capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta.
2 Não há como deixar de relevar o mérito da interpretação de Lukács quando se considera que, em 1923, ainda não haviam sido publicados a maioria dos livros póstumos de Marx, em especial os Manuscritos econômico-filosóficos e A ideologia alemã.

3 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, p. 193.
4 Cf. MUSSE, Ricardo. “Introdução” ao Manifesto do partido comunista.
5 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, p. 201-202.
6 TÖNNIES, Ferdinand. Gemeinschaft und Gesellschaft.
7 Simmel apresenta uma síntese desses resultados, desenvolvidos sobretudo em  Filosofia do dinheiro, sob a luz do exame da experiência urbana, em As grandes cidades e a vida do espírito.
8 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, p. 225.
9 Idem. História e consciência de classe, p. 280.
10 Atrelada à sua “falsa consciência”, a burguesia teria sido destituída da capacidade política de comandar a sociedade, fato esse que Lukács considerava incontroverso após os acontecimentos de 1914.
11 Segundo Lukács, o antídoto deriva do fato de o operário vender sua força de trabalho como mercadoria. Na reiteração diária dessa atividade acaba reconhecendo a essência fundamental da sociedade burguesa: a transformação de seres humanos em coisas.
12 Idem. História e consciência de classe, p. 174.

***

Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

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