O castelo de cartas
[Fotograma de título da vinheta de abertura da websérie House of cards, produzida por Netflix]
Por Izaías Almada.
Queiramos ou não, os Estados Unidos da América acabam por ser um país extraordinário. Não exatamente pelos “valores” que muitos de seus admiradores pelo mundo lhe atribuem, em particular os brasileiros, como os novos ricos de Miami, por exemplo, mas – ao contrário – exatamente pela arrogância e ingenuidade que também lhes são peculiares: uma delas, com grande sustentação de sua imensa classe média, a de defenderem acriticamente os tais “valores”. A sua democracia em particular. Ingenuidade? De boa parte da sua população, sim. De muitos dos seus dirigentes, bom, essa já é outra história.
E sobre essa outra história, acabo de assistir pela Netflix as três primeiras temporadas da série House of cards, com o ator Kevin Spacey interpretando um político norte americano, cuja ambição, fruto de vingança pessoal, é mais o poder e a visibilidade do cargo que pode vir a ocupar do que propriamente o dinheiro, embora esse faça parte do jogo, claro. Afinal, são os Estados Unidos da América, dirão alguns com a boca cheia. Spacey se transforma numa espécie, até certo ponto ingenua, de anti-heroi do capitalismo.
Com forte pendor para a tragédia, a série bebe em duas fontes de inegável conhecimento das fraquezas e das iniquidades do ser humano, particularmente daqueles que buscam e usam o poder economico para a conquista do poder político. E que exercem tal poder para satisfação pessoal ou em nome de um ideal que, na maioria das vezes, bate de frente com os desejos dos menos favorecidos na escala social. O que, a rigor, tem desenhado a história da humanidade há séculos e séculos.
Quer a tragédia grega e sua milenar sistematização feita por Aristóteles, com os conceitos de obsessão, falha trágica e catarse, quer o encantamento de ações que se assemelham às tragédias shakespereanas de Macbeth, Rei Lear, Otelo e Ricardo III, ali encontrados, a série desnuda, na medida do possível, como é feita e em que base se sustenta o jogo da democracia americana. Dos grupos econômicos e dos partidos que a sustentam e a tutelam. Os solilóquios, muito ao gosto de Shakespeare, também se destacam por sua acuidade e algum cinismo.
Frank Underwood, o personagem de Kevin Spacey é filho ou neto, já não me lembro, do famoso criador da máquina de escrever que leva o mesmo sobrenome. É um desses políticos que chegam ao congresso dos Estados Unidos, vindo do estado da Carolina do Sul, assim como tantos Eduardos Cunhas, Renans e Aécios, Malufs, Serras e Sarneys vieram de vários estados do Brasil, para ficarmos nesses seis e candentes exemplos, ainda vivos, mais ao sul do Equador.
Tal associação, com absoluta certeza, poderá ser feita na maioria dos países que exibem a série. No caso brasileiro, com duas significativas diferenças em detrimento de muitos de nossos congressistas, é preciso registrar: a primeira delas, convenhamos, é não terem ao seu lado, que seja público pelo menos, uma Lady Macbeth contemporânea, em cuja ambição e maldade bebe a narrativa de House of cards, com o nome de Claire Underwood, interpretada pela bela e excelente atriz Robin Wright.
A segunda é por não exibirem, enquanto políticos velhacos e profissionais que são, a perspicácia e a inteligência de seu homólogo de Washington, não por ser de Washington, que fique bem claro, pois poderia ser no Kremlin, Paris, Roma, cidade do México ou em Downing Street 10, Londres, aliás, berço do livro que dá origem à adaptação feita para a televisão norte americana.
Ou mesmo em qualquer outro importante centro de decisões do jogo político e do comércio internacional. Sempre lembrando que a ambição desmedida pelo poder, embora admirada por muitos espertalhões de cima do muro, não chega a ser propriamente um ato de inteligência, como a própria série revela até aqui (uma quarta temporada está em produção), bem como nos advertem há 2500 anos os grandes poetas trágicos gregos.
As sucessivas armações do casal Underwood, previsíveis muitas delas, não tiram da ação dramática – quanto a mim – o principal mérito da série: expor, sob vários ângulos, a falácia da democracia norte americana. Da chamada democracia representativa. Democracia que ali se impõe internamente pelo aparente jogo de que todos são iguais perante a lei. E externamente pela força de um aparato diplomático e militar que só encontra sérios obstáculos diante de russos e chineses, ainda que esses sejam tratados na trama, e por isso mesmo, como grosseirões (os russos) ou dissimulados (os chineses). Os conflitos com o Irã, a Venezuela e a Coreia do Norte, que não estão na série, mas são reais, deixo-os para a imaginação dos leitores.
House of cards é uma aula de como não fazer política ou, em outras palavras, um escracho sobre o que se vende por aí como serem os EUA o país onde mais a democracia funciona. Mas qual democracia afinal? E funciona de que maneira? Pois, pelo visto, elas são muitas e de matizes diferentes, onde o que vale mesmo é o vil metal, o jogo do faz de conta e a demonstração psicótica e arrogante de poder, só variando o grau de hipocrisia quanto ao verdadeiro nível de efetiva representação popular. Segundo Frank Underwood, na cena em que jura defender a constituição e num de seus magistrais solilóquios, a democracia é superestimada.
“Farinha pouca, meu pirão primeiro”, já diz a sabedoria do povo. Todos os ingredientes de como fazer o jogo sujo da política e mais alguns estão em House of cards: a demagogia, a chantagem, a propina, o uso da imprensa na disputa pelo poder, o sexo, o álcool e as drogas, o uso da polícia e das agencias de inteligência em proveito próprio ou de partidos políticos, de grandes corporações, as ONGs, o nepotismo, a internet, os jogos de cena montados para os telejornais e outros órgãos de comunicação, o crime puro e simples, organizado ou não, o “teatrinho” das supremas cortes de justiça, enfim esse maravilhoso arsenal do faz de conta que nós, pobres mortais, acreditamos estar edificado sobre valores que nos metem goela abaixo desde a infância. Sempre com a ajuda eficiente das mais variadas religiões. O bom e o mau, o certo e o errado, a virtude e o pecado, o céu e o inferno. Não seria descabido dizer que, mais do que na trama da série, mais do que na ficção, a honestidade se transformou de fato em apanágio dos idiotas…
Muitos de nós ainda tentamos aqui e ali defender a ética na política, a honestidade como princípio civilizado de convivência entre homens e povos que acreditamos iguais, a solidariedade, a justiça social, mas a infraestrutura e a muralha de proteção cada vez mais sofisticada à volta do capitalismo selvagem, consumista e predador, tende a lançar a dúvida, a indiferença e o cansaço entre tais defensores. E se dúvidas existem a respeito disso no Brasil dos nossos dias, sugiro que os leitores façam uma séria avaliação do jornalismo excremental a que hoje se dedicam os principais órgãos de comunicação no país.
Essa muralha, que poderá vazar água mais à frente, tem, contudo, conseguido afrouxar os laços de ideologias e sistemas econômicos alternativos, fazendo com que o caráter imediatista e oportunista aflore surpreendentemente em mentes e corações até então insuspeitos de vergonhosas e traiçoeiras defecções.
Porque entre defender propriedades e posses materiais, os ganhos da bolsa e os escorchantes lucros bancários, por exemplo, e defender ideias de transformação social há uma diferença abissal. Não devemos nos iludir quanto a isso. Sobretudo agora que manifestações populares podem até ser feitas através de hologramas.
No jogo cada vez mais claro e não menos hipócrita do faz de conta, onde 1% da população mundial determina o que os outros 99% devem fazer e obedecer, já sobra cada vez menos espaço para o diálogo (eu disse diálogo?) entre arsenais nucleares a defenderem o capital e os que insistem “democraticamente” em defender o trabalho. As aspas aqui ficam por conta da fuga ao enfrentamento mais ostensivo por parte daqueles que acreditam nos tais valores humanistas e solidários quando, abrindo mão da organização de partidos de forte apoio popular, da comunicação mais efetiva com movimentos sociais e principalmente da ruas, passam a fazer oposição no teclado dos computadores, como eu mesmo faço (não fujo à autocrítica), na expectativa de que a dialética da história nos ofereça alguma boa surpresa no dia seguinte.
Pode até acontecer, claro, mas não será com a bunda nas cadeiras em frente aos computadores. Até Frank Underwood, um Iago moderno e diabólico das sacanagens intramuros do Capitólio saía do glamoroso e confortável ambiente do Congresso e da Casa Branca para sua guerra política, com pequenos intervalos para comer uma costelinha bem passada no restaurante simplório de um trabalhador negro, Freddy, talvez o personagem mais simpático de toda a série, interpretado pelo ator Reginald E. Cathey.
O fundamentalismo protestante aliado à selvageria dos conquistadores do oeste, com seus massacres indígenas e o linchamento de escravos “negros e sujos”, deu início à democracia do Colt 45, aos poucos substituída pela democracia da espingarda Winchester, quando resolveram tirar a máscara e criar a democracia dos grandes fabricantes de armas e seus modernos arsenais nucleares. Em nome de uma cínica paz mundial, não permitem a outros povos possuírem nem a democracia, mesmo que de fachada, nem o arsenal nuclear.
Tudo isso, com maior ou menor sutileza está em House of cards. Que surpresas estarão reservadas na quarta temporada? Com paciência teremos que esperar pelo início de 2016 quando será exibida. Por coincidência no mesmo ano das eleições presidenciais norte americanas e das eleições municipais brasileiras.
E para terminar, uma curiosidade até certo ponto intrigante: por qual razão estaria na divulgação da série (uma das principais chamadas é a que ilustra acima o artigo) o simulacro de uma bandeira americana ao contrário e de cabeça para baixo? Premonição? Afinal, todo império um dia acaba, não é verdade?
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Para um raio-x crítico da potência dos EUA, recomendamos a leitura de A política externa norte-americana e seus teóricos, novo livro de Perry Anderson. Descrita por José Luis Fiori como “uma obra sucinta e excepcional” e por Emir Sader como “uma das mais importantes análises que temos sobre os EUA”, a obra fornece uma análise magistral das ideias, das figuras e das práticas que forjaram o império norte-americano. Para o historiador inglês, a oposição radical ao império norte-americano não “exige garantias do seu recuo ou do seu colapso iminente”. Leia aqui o texto de orelha do livro, escrito por José Luis Fiori. Leia aqui a resenha do livro, escrita por Emir Sader, e aqui a resenha escrita por Mario Sergio Conti.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
A democracia representativa, por si só, resultado da construção de um modelo de sociedade, que se estruturou a partir da modernidade, já representa uma falácia, na medida que significa, ao nível da política uma igualdade basicamente formal, que procura esconder, através de uma grande mistificação ( a igualdade jurídica) uma profunda desigualdade social. Ora, esse modelo de democracia, praticado por um país imperialista, que tem a hegemonia sobre o sistema mundial, que se formou sob a égide do “Destino Manifesto”, então, enriqueceu características que potencializaram a arrogância e a prepotência. Porém, sua força é tão poderosa, sobretudo nas formas de divulgação de sua cultura que terminou transformando-se num exemplo de democracia liberal..
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