Simone de Beauvoir e a teoria política
[Simone de Beauvoir, em retrato de Henri Cartier Bresson, 1945, Magnum, Paris]
Por Luis Felipe Miguel.*
A figura de Simone de Beauvoir (1908-1986) ocupa para o feminismo contemporâneo uma posição fundadora ainda mais central que a de Mary Wollstonecraft para seus primórdios. Ela se tornou uma espécie de lenda em vida, encarnação da mulher liberada dos constrangimentos da sociedade machista, capaz de fazer o próprio caminho. Sua relação com Jean-Paul Sartre aparecia como promessa de uma nova conjugalidade, mais livre, equilibrada e satisfatória, uma idealização que ignorava que a ruptura com algumas das premissas predominantes na organização das relações afetivas convivia, no relacionamento entre os dois, com a manutenção de assimetrias muito significativas e a aceitação, por parte dela, de uma posição bastante subordinada.1
Mas a influência de Beauvoir se deveu sobretudo à publicação de O segundo sexo, em 1949. Apesar da flagrante falta de unidade na construção do argumento, do subjetivismo extremado, que faz com que se passe sem escalas da vivência pessoal ou do círculo próximo para a generalização (traço que marcou negativamente muito do feminismo posterior), e do substrato psicanalítico do qual, embora ciente da misoginia de Freud, não consegue se livrar, o livro representou uma tentativa poderosa de entender a construção social do “feminino” como um conjunto de determinações e expectativas destinado a cercear a capacidade de agência autônoma das mulheres.
– Leia também: “O feminismo político do século XX“, no Blog da Boitempo.
A frase famosa que abre o segundo volume de O segundo sexo resume com precisão a ideia força da obra: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”2. Afinal,
a mulher não é definida nem por seus hormônios nem por instintos misteriosos, mas pela maneira pela qual ela recupera, por meio de consciências alheias, seu corpo e sua relação com o mundo.3
Não é exagero dizer que essa percepção funda o feminismo contemporâneo.
Mesmo despida do tom existencialista que marca sua formulação original, a afirmação de que a mulher “deve escolher entre a afirmação de sua transcendência e sua alienação como objeto”4 foi central para o desenvolvimento posterior do feminismo. A objetificação da mulher, a negação de seu potencial de transcendência e sua fixação perene no mundo da natureza (a ser contida pela cultura), bem como o fato de que ela é permanentemente levada a se ver pelos olhos dos homens5, são as constatações que orientam a crítica feminista à submissão das mulheres nas sociedades ocidentais. Ainda que muitas críticas sejam feitas às ideias ali expressas, algumas das quais serão tratadas nos capítulos posteriores deste livro, O segundo sexo permanece como ponto de partida incontornável do feminismo contemporâneo.
No que se refere especificamente à teoria política, Beauvoir avançou pouco. Ao que parece, a política era entendida por ela como uma esfera “superestrutural”, alheia a seu foco na posição das mulheres no cotidiano das relações, sobretudo na posição das mulheres de classe média no que diz respeito ao casamento, à sexualidade e ao trabalho. Ainda assim, O segundo sexo teve importância por contribuir para a redefinição das fronteiras da política, indicando a profunda imbricação entre o pessoal e o social, o público e o privado. Abrindo caminho, enfim, para o provocativo slogan “o pessoal é político”, que seria a marca do movimento feminista a partir dos anos 1960.
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NOTAS
1. Hazel Rowley, Tête-à-tète: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre (São Paulo, Objetiva, 2006). A edição original é de 2005.
2. Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe (Paris, Gallimard, 1949), v. II, p. 16.
3. Ibidem, p. 516.
4. Ibidem, v. I, p. 79.
5. Ibidem, p. 186.
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* Este texto integra o livro Feminismo e política: uma introdução, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli, que reúne em 10 capítulos esquemáticos as principais contribuições da teoria política feminista produzida a partir dos anos 1980 e apresentam os termos em que os debates se colocam dentro do próprio feminismo, mapeando as posições das autoras e correntes atuais.
Confira o Dossiê FEMINISMO E POLÍTICA, no Blog da Boitempo, com artigos, vídeos, resenhas e indicações de leitura de Maria Rita Kehl, Laerte Coutinho, Michael Löwy, Ludmila Costhek Abílio, Flávia Biroli, Maria Lygia Quartim de Moraes, Lincoln Secco, Urariano Mota, Luis Felipe Miguel, Izaías Almada, Ursula Huws, entre outros!
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde editama Revista Brasileira de Ciência Política e coordenam o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Escreveu, em conjunto com Flávia Biroli, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014), entre outros. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.
Republicou isso em O Escribae comentado:
“Que nada nos limite. Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.”
Quase 30 anos após sua morte, Simone de Beauvoir continua mais atual do que nunca. E ouso dizer, mais atual até do que Sartre. (pedras voando em 3, 2, 1….)
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Amei a matéria e quero continuar recebendo. famaju@hotmail.com
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