Paulo Arantes: O nome da crise

Paulo Arantes nome da crisePostscriptum de Paulo Arantes.

* Este texto foi escrito na primeira semana de abril de 2015 como postscriptum à entrevista “Entre os destroços do presente em que Paulo Arantes procurava fechar um diagnóstico das duas décadas de progressismo brasileiro a partir do clima de “polarização” que aparecia como saldo do processo eleitoral de 2014. Neste postscriptum, atento aos sismógrafos da “tempestade perfeita” que veio à tona nos “idos de março” anunciando a implosão, a poucos meses da posse, do governo Dilma, Arantes procura pensar o que significa a esta altura falar em “crise”. 

* * *

Uma coisa é fechar o diagnóstico de toda uma época, nas minhas contas, os vinte anos do reinado FHC/Lula. Por mais que travem uma luta de morte por uma rapadura cada vez mais ingovernável, formaram um só bloco cujas raízes entrelaçadas remontam ao processo de saída da Ditadura, que por sinal acabou se confundindo com a derrocada de nosso meio século de modernização desenvolvimentista. A desintegração que seguiu foi provisoriamente estancada, porém num patamar social ainda mais rebaixado, mas ainda assim governável in extremis. Esse dique começou a se romper em Junho. Outra coisa imaginar o drama conclusivo que está se desenrolando agora sob nossos olhos. Não dava mesmo sequer para fantasiar que mal iniciado o segundo mandato, o governo Dilma estaria no chão, aplastado. A tal ponto que até mesmo a hipótese de um impeachment se tornou uma turbulência que valeria mais a pena economizar, uma má ideia, na opinião da Economist de 28 de março, mas não a ponto de estancar a paranoia dos que temem que um ajuste em si mesmo insano, como provaram ser os regimes de austeridade impostos à periferia europeia, possa dar certo (sic) e se inicie uma recuperação sob medida para uma vitória eleitoral lá na frente. Daí a correria intempestiva, ora à frente, ora atrás das ruas em movimento. Seja como for, tamanha queda, e assim precoce e vertiginosa, jamais se viu. Mas não farei o diário da queda, nem recapitularei a escalada da crise que a precipitou. Como a saturação com todo tipo de palpite e especulação é geral, não vou nem de longe enfiar minha colher de pau na cozinha da conjuntura. Aliás logo estarão se multiplicando as inevitáveis reportagens investigativas sobre as grandes manobras que culminarão num desfecho que ainda ignoramos, embora desconfiemos que de qualquer modo não será uma saída para nenhum dos lados envolvidos nessa queda de braço. E se a queda que se avizinha, ou já aconteceu faz algum tempo, não for uma crise como as outras?

Nunca se falou tanto em crise, há crise por todos os lados e para todos os gostos, geralmente no modelo esgotamento ou exaustão disso e daquilo, encavaladas e se reforçando mutuamente. Em todo caso, nessa avalanche de diagnósticos, possivelmente ofuscados ou manipulando as guerras culturais entre “petralhas” e “coxinhas”, ninguém se lembrou de reparar na falta de um ingrediente indispensável em todas as crises históricas do país, a subversão. E por uma razão muito simples e tenebrosa: ela foi extirpada com sucesso em 1964. Era essa a ideia, e de acordo com ela encaminhou-se a posterior legalização da nova esquerda, sendo a campanha de criminalização de agora o preço cobrado por aquele indulto. A crescente, inclusive em letalidade, gestão armada da vida social hoje obedece a uma outra racionalidade política, muito diversa do dispositivo militar de outros tempos, que dorme sossegado nos quarteis o sono da garantia da lei e da ordem, nos termos de uma Constituição que normalizou a relíquia arcaica do Golpe. Sem subversivos a caçar, salvo o resíduo amotinado de Junho, devidamente cadastrado pelas derrogações previstas nas brechas da lei, a crise pode até resvalar na anomia, cujas condições, segundo alguns observadores, estão dadas, mas decididamente se trata de uma crise sem inimigo, por mais que vermelhos e azuis queiram passar ao ato e se estripar. Crise sem inimigo: foi assim que nos anos 1990 alguns teóricos começaram a se referir às catástrofes desencadeadas por eventos extremos, “naturais” ou provocados por tecnologias de alto risco, querendo dizer com isso que estavam abandonando o paradigma militar predominante até então, ainda centrado na ideia de ameaças vindas de fora e percebidas como uma agressão desencadeada por agentes destruidores, sendo a crise, naquele modelo concebido ainda sob o efeito dos desastres coletivos da grande guerra e a paranoia da hecatombe nuclear, encarada como uma provação, a hora da verdade na qual a realidade oculta de uma coletividade se revelaria. Estaríamos assim, nesta crise sem subversivos de agora, como que diante de um evento extremo, a terra começando a tremer sob os pés de uma sociedade no entanto inteiramente pacificada desde a nossa última catástrofe, num outro março há 51 anos atrás.

Disponho apenas de uma pista nesta primeira tentativa de identificação. Até onde sei, lá pelo fim do ano de 2013, o prognóstico de que uma tempestade perfeita estava a caminho conheceu uma discreta difusão. Não pesquisei muito, mas parece que por essa época o ex-ministro Delfim Neto já anunciava em suas colunas que uma tempestade perfeita (ainda com aspas) se avizinhava, podendo desabar no primeiro semestre do ano seguinte caso não déssemos a devida atenção às “ameaças” das agências de rating de rebaixar a nota de crédito do país, sem falar no início do fim dos estímulos monetários americanos: em algum momento a “emergência” gerada explodiria num desequilíbrio fiscal, inflacionário e cambial que reduziria a pó a economia nacional. Essa “conspiração” obviamente objetiva de eventos simultâneos resultaria na tempestade perfeita que nos puniria sem dó nem piedade. Nesse meio tempo devo certamente ter deixado escapar outras menções do referido alto personagem a essa conjunção tempestuosa que continuaria a nos espreitar caso não nos “ajustássemos”. Uma ocorrência na primeira semana de março, ainda na condição de espada de Dâmocles, trazia por certo embutida a memória da débâcle política e moral em curso.

Para quem não se lembra, a frase tornou-se comum no inglês coloquial americano desde que um bestseller com esse título, depois transposto para o cinema, consagrou-a como sinônimo de evento desastroso produzido pela convergência excepcional de circunstâncias adversas, no caso gerador da metáfora, o naufrágio de um barco pesqueiro colhido em alto mar pela combinação catastrófica de três tempestades, nada mais nada menos. Um outro naufrágio, o do Lehman Brothers e sua constelação de megadesastres, generalizou de vez seu emprego na caracterização de uma crise aparentemente de novo tipo. Desde então assumiu também, segundo pude ler na Wikipédia, uma conotação hipotética do pior possível entre todos os cenários.

De volta ao Brasil em “queda livre”, segundo matéria de capa da revista Exame. Lá pelo dia 20 de janeiro, um colunista de O Globo cravava: a “tempestade perfeita” que os mais agorentos previam já está soprando com força mal decorridas duas semanas do segundo mandato, como se poderia constatar apenas pela escalada negativa dos indicadores econômicos básicos, impostos, taxas, juros, tarifas e ameaça real de desemprego rondando. Uma semana depois era a vez do Estadão, mas agora adicionando novos ingredientes, pois a nuvem negra da tempestade perfeita no horizonte seria sobretudo social. Ou melhor, social e climática. Estava demorando a cair a ficha pois segundo consta o emprego original da expressão remonta a uma previsão um pouco mais estilizada de algum serviço metereológico norteamericano, variando apenas a data e o serviço concernido, reservando-se desde então a evocação do termo sempre que ocorrer uma combinação obviamente tempestuosa de muitos fatores. Há registros posteriores também quanto ao teor digamos literário da frase, como uma tempestade perfeita de aplausos ou de simpatia. Mas voltemos ao Estadão, ao resumo inspirado do articulista (José Roberto de Toledo): “enchente com falta d’água, calor excessivo com falta de energia, recessão com inflação, crescimento do desemprego com diminuição de benefícios a desempregados – tudo ao mesmo tempo”. Agora? Ou daqui a pouco, tanto faz, o que importa mesmo é que no mais tardar em 2016 essa combinação estará entrando em fase com uma outra tempestade perfeita, desta vez fabricada no copo d’água explosivo das guerras culturais travadas nas redes sociais durante o período de fúria eleitoral. O ponto cego dessa “tempestade social perfeita” encontra-se na dramática dissociação entre fenômenos climáticos cada vez mais intensos, num cenário de oscilações também cada vez mais frequentes entre extremos opostos, e a rotina de inoperância imediatista da casta governante. Devolvendo assim a metáfora à sua matriz, e deixando um pouco de lado o para-raios da crise em que o mandato recém inaugurado se convertera, a primeira nota inteligente encontrada na enxurrada de comentários dos jornalões e adjacências, repercutindo uma queda tão ansiada e cavada, identificava na imagem da crise como uma tempestade perfeita algo como uma mudança radical do “clima” da política – o “tempo” que politicamente está fazendo –, na medida em que, persistindo justamente essa dramática confluência de circunstancias, “o cenário político vai ser radicalmente mudado pelo cenário climático”, e quanto mais radical o novo “clima”, tanto mais irá perdendo valor tudo aquilo que for apenas médio, do estatístico ao político – conforme a conclusão daquela nota preciosa, sem dúvida temendo por sua vez algum surto berlusconiano nativo, nada improvável ante o cenário de anomia que se desenha. E como vimos ao longo da conversa anterior, num ambiente polarizado como o atual, mesmo assimetricamente, dado o eclipse total da esquerda, as situações intermédias tendem a sucumbir, sejam as indefectíveis obras de infraestrutura rotineiramente projetadas para mitigar efeitos no entanto extremos, seja analogamente ideias singelas de repactuações políticas, também receita nativa clássica.

Ainda nesta mesma linha de caracterização de uma tempestade perfeita se formando pela conjunção dos dois extremos, o da reversão brusca e drástica das expectativas políticas e os sinais enviados para quem sabe decifrá-los pelo novo regime termodinâmico do planeta, cuja decodificação hesitante vai no limite alimentando um indefinido porém intenso sentimento de impotência, na exata acepção em que o evocamos lá atrás, a certa altura da nossa “entrevista”, a propósito da inibição de certas respostas humanas comensuráveis, no caso de uma chuva radioativa por exemplo, o sinal de alarme já soara para a jornalista Eliane Brum, descrevendo para o El País o desenrolar da campanha eleitoral em São Paulo e seu rol de dissociações cognitivas aberrantes, a principal delas a pulsão negacionista ante o colapso do abastecimento de água na região metropolitana, candidatos e gestores da desgraça disputando no máximo a autoria do nó no rabo do gato. A reeleição avassaladora do negacionista mor, que atravessou o primeiro turno repetindo “não vai faltar água” quando a água já faltava, é o fruto envenenado daquela impotência diante de uma crise do quê ninguém sabe ao certo. Segundo Eliane, o referido personagem foi de fato consagrado pela mesma negação da realidade que o eleitor queria confirmar, de sorte que venceu não apesar da crise da água mas também por causa dela, todos embalados pela mesma ilusão do controle. Como se trata de uma crença desesperada num futuro cuja data todos fantasiam, caminhões pipa com escolta policial farão parte daquele cenário político radicalmente mudado pelo cenário climático mencionado há pouco. Noutras palavras, um poder soberano de polícia, enquanto paradigma de governo das crises, será objeto de uma verdadeira demanda popular. Como meses depois, a demanda por intervenção, qualquer intervenção, desde que alguma coisa seja feita. Se há algo que deveria de fato assustar na atual crise com inimigo difuso, é a antevisão igualmente embaçada de uma passagem ao ato de todo esse sentimento de impotência.

Mas adiantemos o relógio. As chuvas abundantes de fevereiro e março lavaram a alma inconstante de governantes e governados e fez sumir do radar da tempestade perfeita, enquanto metáfora maior da crise, a sinergia dos extremos climáticos e sociais, substituída por uma outra confluência de tempestades adversas comandadas pelo espetáculo jurídico, do qual até agora ainda mal se entreviu o prólogo policial.Quando o bordão voltou – na mesma semana em que o Brasil atolado foi capa da Economist, depois de enumerar as razões que poderiam levar o país ao precipício, o Time também concluía que o Brasil parecia viver uma tempestade perfeita… –, a chuva de escândalos estava de volta ao seu lugar cativo numa crise invariavelmente apresentada sempre como tridimensional. Como é descrita, por exemplo, numa entrevista do cientista político Marcus Melo. Novamente uma tempestade (desta vez política) perfeita em que convergem políticas de austeridade ceifando empregos, megaescândalos e gente na rua. Embora ainda não tenha recorrido à imagem da tempestade perfeita, um outro alto personagem, FHC, que não dá ponto sem nó tal como seu desafeto Delfim, vem multiplicando declarações e artigos semeados de recados do tipo “chegou a hora”, por enquanto apenas de “interrogação”, nos quais não faltam a indefectível enumeração dos três elementos em sinergia desastrosa: na última contagem, pela ordem, clamor da rua, avanço do processo judicial e mídia.

Quanto à esquerda desmastreada, sente a tempestade mas ainda não a tinha nomeado, tal a obsessão conspiratória, acrescida da mágoa com a ingratidão de um sistema que a está expulsando pela porta de serviço, até que um artigo no Brasil de Fato, não resistindo ao bordão, colocou tudo, menos o novo “clima” da política, no copo d’água da tempestade perfeita, dos suspeitos de sempre, mídia golpista em primeiro lugar, ao inesperado reconhecimento de que no assim chamado campo popular reinam dúvidas, confusão e conflitos – a matéria é anterior aos 60% de desaprovação entre a renda familiar mensal de até um salario mínimo. E só. Mas não é pouca coisa admitir que desta vez o realejo do governo eternamente em disputa parece desafinar, tampouco o mantra da conspiração sai ileso, pois afinal a sabotagem parece vir de dentro, os infiltrados não são penetras mas convidados de honra. Mais uma vez, esse o ponto cego de uma crise não por acaso encarada como uma tempestade perfeita, que aos poucos vai deixando de ser um lugar comum nascido do jargão metereológico, na mesma medida em que a crise que ela anuncia já não corresponde mais ao antigo conceito de crise.

Como se há de lembrar, um conceito dramático por excelência, cuja aclimatação como conceito de época foi reconstituída nos estudos clássicos de Koselleck. Para efeito de contraste, que não poderia ser maior, uma recapitulação sumária dessa translação cujo ponto de origem se encontra nalgum lugar de uma antiga superposição de significações provenientes de três esferas, jurídica, médica e teológica. Em qualquer uma delas, estão em jogo alternativas sem resto entre certo e errado, vida e morte, salvação e danação, exigindo escolhas decisivas. No roteiro que estamos considerando, durante um longo período a acepção médica prevaleceu sobre as demais, seu uso metafórico estendendo-se aos mais variados domínios desde o início dos tempos modernos, salvo o surpreendente retorno, embora secularizado, de sua acepção apocalíptica, para lidar com a novidade da Revolução Francesa enquanto revelação de um novo tempo, precisamente o de um mundo sacudido por crises que anunciam tanto um fim quanto uma passagem de época. Desde então, encarada como uma espécie de abertura teatral de todo um horizonte de expectativas, a ideia de crise passou a admitir diversas filtragens, ora como um encadeamento de eventos culminando num ponto decisivo a partir do qual é preciso agir, ora como um ponto único e final, a partir do qual o curso histórico do mundo não será mais o mesmo. Desde sempre nos reconhecemos neste quadro, ao qual Marx acrescentou (ou nele se inspirou) a ideia de que as crises são soluções violentas de contradições existentes: socialmente destrutivas mas mesmo assim “soluções”, é verdade que muito peculiares, nas quais se restabelece momentaneamente o equilíbrio rompido até a próxima erupção. Elas seriam o “negativo do capital”, na formulação bem conhecida de Jorge Grespan, e nesta condição, essencial na definição da temporalidade típica do regime social presidido pelo capital. Desde sempre quer dizer desde que este regime específico de historicidade (François Hartog etc.), se abriu a perdurou durante dois séculos de grandes esperas, ao longo das quais gerações antagonistas foram completando sua educação política pela espera ativa do ponto crítico de uma reviravolta.

E se a rotina dessas crises recorrentes não for mais recuperadora? E se o estado crítico no qual se encontra o capitalismo hoje não apontar para qualquer saída digamos reguladora, para dizer o mínimo, tanto à esquerda ou muito menos à direita? Numa palavra, e se a crise, que não é de agora, for de um tipo totalmente novo? Pelo menos vai nessa direção Wolfgang Streeck, o sociólogo alemão ao qual recorri em mais de uma ocasião ao longo da “entrevista” feita ainda no escuro do apagão político que viria pela frente. Como se há de recordar, é dele a ideia duplamente herética de que o capitalismo está agonizando, mas que o seu fim é um processo e não um acontecimento disruptivo, e um processo destrutivo por incapacidade de autocontenção, uma vez desmantelados os mecanismos que historicamente exerciam tal função, como as falsas mercadorias trabalho, natureza e dinheiro, na distinção clássica de Polanyi, e mais, seu fim está chegando sem que nenhuma sociedade melhor e mais avançada esteja à vista e devidamente impulsionada por um sujeito portador da tarefa histórica de abrir-lhe caminho, o que suporia um grau de controle político sob o nosso destino comum com o qual não sabemos mais sequer sonhar. Sei que é duro de engolir, mas chega a ser quase intuitiva, quando se olha à volta, essa imagem de um sistema social em desmantelo crônico por razões internas e independentemente de uma alternativa viável. Mais duro de engolir enfim a ideia de que pode estar acontecendo da humanidade não se defrontar mais só com os problemas que pode resolver. Em tempo, isto não é o fim do mundo. Apenas o fim de dois séculos de espera “progressista”, encerrado justamente por uma crise de um novo tempo, por assim dizer empurrada com a barriga, ritualmente adiada pela compra de tempo, pela renovação dos prazos para o desastre, que ficará para a próxima vez etc. E no entanto, nada mais familiar do que esse cenário de inação, mal camuflada pela frenética proliferação de correções provisórias para gerir a multiplicação das crises de todo tipo no curto prazo. Salvo para aprofundar o estrago, como na concepção do capitalismo de desastre segundo Naomi Klein. Pela primeira vez (e última, por definição) Crise não é mais sinônimo de abertura de oportunidades, para agentes reformistas ou revolucionários, nem mesmo ou melhor, sobretudo, o aquecimento global enquanto janela de oportunidades para relançar a acumulação, muito menos, como argumenta a mesma Naomi Klein em seu último livro, a brecha  para a reviravolta anticapitalista sonhada pela última vez, pois se é verdade que a mudança climática muda tudo, ela mudou também a natureza da crise, pois nesse cenário específico é ainda mais flagrante, nunca será demais repisar, a inoperância autodestrutiva geral. Definitivamente, não haverá mais um novo Agosto de 1914.

Vamos encurtar, já que por esse atalho chegamos mais rapidamente ao meu ponto. Vejamos se não é o caso: ao enumerar e reunir numa confluência desastrosa as cinco doenças sistêmicas do capitalismo agonizante de hoje por motivo de enfraquecimento das restrições (tradicionais, institucionais e políticas) ao seu avanço desimpedido (estagnação, redistribuição oligárquica, pilhagem do setor público, corrupção endêmica e sistêmica, anarquia geopolítica global), penso que o nosso teórico (Wolfgang Streeck) está descrevendo o desenrolar concatenado de uma tempestade perfeita, cuja duração no entanto pode se estender por anos a fio até alcançar a marca fatal dos dois graus centígrados a mais que arrastaria consigo o que porventura sobrar até lá, por isso o sistema não pode parar de comprar tempo. Que é inteiramente outro, para início de conversa, sendo outro, como sugerido, literalmente, o “clima” da política, como mudou o da história, revista pelo prisma do tempo geológico do Antropoceno. Mas passemos. A outra metade do argumento viria da redescrição da mudança climática também como uma tempestade perfeita, cada vez menos metafórica, como na “tempestade para os meus netos”, de James Hansen. Para uma demonstração de A a Z, sobretudo no que concerne à inércia política, à dilatação indefinida dos prazos, Stephen Gardiner construiu um modelo de tempestades convergentes, alimentadas por uma tal assimetria de poder que torna os agentes relevantes cada vez mais vulneráveis a uma espécie nova daquela corrosão do caráter identificada por Richard Sennett no mundo do trabalho contaminado pelas estratégias perversas de investimento no capital humano. Tudo bem pensado, nos dois processos de agonia como tempestade perfeita, a do capitalismo e a mudança climática, dois metabolismos enfim reunidos num só bloco comido pela entropia, ainda falar em “crise” é apenas uma maneira de dizer para nos fazermos mal e mal entender, pois saiu de cena o personagem capaz de tomar decisões no ponto crítico máximo da crise, ou melhor, como a cena é de inoperância e muita gesticulação ao redor, este ponto de virada pode até dar o ar de sua graça porém inutilmente, tal a amplitude do “tétano do não-ir-adiante” que essa crise sem crises propagou. Feita a ressalva, podemos até compreender o vocabulário e a gramática da crise, mas o seu imaginário de fundo, histórico aliás, já não é mais o nosso. De um modo ou de outro, sabemos disso. Tanto que a imagem da tempestade perfeita se alastrou até a saturação, e como tal nos alcançou num momento em que logo faremos a experiência de que a hipótese de uma estagnação secular já é o “novo normal”, nas palavras de um oráculo financeiro em Washington, e sumidades neokeynesianas dizendo amém.

Então é isso, a tempestade perfeita que está nos sacudindo é mais que uma simples metáfora para uma crise mais inusual do que as usuais, tanto é que compartilhada (argh!) por gregos e troianos, na verdade a sinalização em busca de um conceito comum. De sorte que a “seca” anunciada pelo regime de austeridade em que estamos entrando para valer, por exemplo, pode ser entendida igualmente como um evento tão extremo tal como a outra, a seca propriamente dita e que isto que pode parecer apenas um jogo de palavras, isto sim, “muda tudo”, como no título do livro em que Naomi Klein narra a guerra do capitalismo contra o planeta. Extravagancia? Pode até ser, nunca se sabe. Todavia não seria menor o disparate, imaginar ao contrário que a hora é agora, que chegou enfim a hora de tirar da cartola da crise um coelho novo porém idêntico ao falecido quando jovem. Não será demais insistir mais uma vez, agora na intenção da geração antagonista que irá literalmente respirar os ares de um outro planeta, que o clima da história também mudou, por isso a crise não comporta mais um momento ótimo de resolução, pois é uma longa tempestade perfeita.

***

Paulo Eduardo Arantes é filósofo, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou entre 1968 e 1998. Publicou, entre outros, Hegel: a ordem do tempo (1981), Ressentimento da dialética (1996), Extinção (2007) e O novo tempo do mundo (2014).  Coordenador da coleção Estado de Sítio da Boitempo, colaborou com O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles, com o ensaio “1964, o ano que não terminou”.

1 comentário em Paulo Arantes: O nome da crise

  1. Emir, observe acima link com o festival de bobagens de Daniel oGGentil li e uma suposta estrangeira que resolveu decifrar o cenário político brasileiro.

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