Cultura inútil: Algumas considerações sobre a cachaça

cachaça mouzarPor Mouzar Benedito.

Uma história que já contei por aí começa com uma pergunta: numa guerra, como é que um soldado que pode ser gente boa e pacífica sai dando tiro em “inimigos”, matando gente que nunca viu?

A resposta, li em algum lugar, sobre a Guerra do Paraguai: antes dos combates, os oficiais davam a cada soldado uma caneca de cachaça, eles pegavam a pólvora de um cartucho, misturavam na dita cuja e bebiam. Imagine! Dariam tiro até na mãe, se ela lhe aparecesse na frente.

Mas isso não é coisa só daqui. Um militar me disse certa vez que na Batalha de Stalingrado a principal carga de abastecimento permanente dos russos era de vodka, que chegava lá regularmente, considerada mais importante do que comida e qualquer outra coisa. E do outro lado, o que não podia faltar para o exército de Hitler era conhaque.

Bom… Mas cachaça – e seus equivalentes – não é coisa usada só para maldades. No frio, ela serve para esquentar (não é à toa que a chamam de cobertor de pobre); no calor, para refrescar. Para quem quer entrar numa briga, serve para dar coragem; para os machões do coração duro, serve para soltar o choro. Ela dá eloquência aos tímidos. Um que queira se declarar a uma mulher e não tem coragem (diferente da coragem para brigar), cria essa coragem com uma dose da danada.

A cachaça tem mais de mil sinônimos no Brasil. Seria até um tanto chato tentar listar todos. Mas vou listar alguns, em tópicos intercalados com historinhas, de acordo com o “ângulo” que se usa para vê-la e designá-la. Começo por aqueles positivos, afetuosos. Aí vão alguns:

Adorada / cem-virtudes / afamada / apetitosa / carinhosa / distinta / bicho-bom / lindinha / salve-ela / purinha / danadinha / quero-mais / faz-xodó / santinha / virgem afamada / cheirosinha / vexadinha / abençoada / preciosa / sinhazinha / dengosa / imaculada / lágrima de virgem / xixi-de-anjo

Pode inventar que ele entende

Uma vez, numa pequena cidade de Minas Gerais, comentei com um amigo paulista que, além dos mais de mil sinônimos, podíamos inventar outros na hora que o vendeiro entendia só pelo tom de voz que a gente usasse. Ele não acreditou. Eu disse que ia provar. Entramos numa venda, ele, eu e dois primos meus. Bati no balcão e pedi: “Quatro bostas”. O vendeiro não vacilou: pegou quatro copos e serviu uma dose caprichada em cada um deles.

Meu amigo continuou não acreditando, disse que eu sabia que bosta era sinônimo de cachaça ali. Propus que na venda seguinte ele pedisse, inventando o nome que quisesse. Topou. Bateu no balcão e pediu: “Quatro martelos”. Sem falar nada, o vendeiro serviu quatro doses.

Muito bem, fiz primeiro uma lista com sinônimos “positivos”. Agora, lá vai uma com nomes que estão mais para encrenca ou outras coisas “negativas”:

Marvada / nó-cego / engasga gato / acaba-festa / sururu / arranja-briga / a que matou o guarda / água de briga / braba / tira-prosa / tira-teima / trombada / desmancha-samba / espanta-moleque / precipício / sopapo / arranca-bofe / tira-teima / turbulenta / valentona / mijo de cão / venenosa / corta-bainha / já-começa / cascavel / tenebrosa

Dar um gole pro santo

Caipira que é caipira mesmo não bebe sem despejar no chão umas gotas “para o santo”. Será que santo bebe? Bom, pelo menos alguns acreditam que há protetores divinos para quem está bêbado. Uns dizem que Deus protege as crianças e os bêbados. Mas com tanta criança e tanto bêbado, seria serviço demais pra um Deus só. Aí entram seus auxiliares.

Você sabe quais são os santos protetores dos cachaceiros?

Santo Onofre, que era um eremita, tem na imagem uma cuia pendurada no ventre. Oficialmente é uma cuia com água, mas para os apreciadores da “marvada” aquilo tem é pinga mesmo. Santo Onofre é considerado por muitos como o “padroeiro dos cachaceiros”, e também das prostitutas e dos jogadores de baralho. Um santo da pá virada! Mas nas piadas há outros padroeiros dos pinguços: São Sebastião, que morreu num pau só; Santa Joana D’Arc, que morreu no fogo; São João, que morreu na brasa, e São Jorge, que matava o bicho.

Um intervalo agora, para alguns sinônimos dela que certamente foram criados por homens que a comparavam à mulher amada:

Chica-boa / Maria-teimosa / mulata / moça-branca / maria-branca / sedutora / filha de senhor de engenho

Tomar uma, para alguns, é matar o bicho, expressão usada inicialmente para se referir à primeira dose, tomada de manhã, e depois passou a ser usada também para as primeiras doses tomadas a qualquer hora do dia a branquinha, amarelinha ou azulzinha (nomes que ela recebe conforme o recipiente em que é descansada). Em alguns lugares, usa-se a expressão “salgar o gato” com o mesmo significado.

Voltemos aos sinônimos da pinga. Muitos dos nomes usados para falar dela a tratam como remédio. Alguns deles:

Mata-bicho / cura-tudo / penicilina / homeopatia / canforada / depurativo / tira-frio / antibiótico / curandeira / sossega-leão

Eta água boa!

Alguns falam dela como “agüinha” (com trema mesmo, para que ninguém leia errado se escrever aguinha – que horror, o fim do trema), pensando que é uma gíria exclusivamente brasileira. Nada disso. Vodka, em russo, também é agüinha – simplificando, adaptando ao o palavreado russo ao nosso linguajar, vod é água, e ka o diminutivo. E “água” aparece em vários sinônimos de cachaça, como é o caso de água benta e água que passarinho não bebe. Mas vamos a algumas palavras que não se enquadram nas categorias anteriores, mas que acho interessantes, como sinônimos de cachaça:

Cajibrina ou canjibrina / lamparina / abrideira / zuninga / gasolina / querosene / petróleo / péla goela / não-sei-quê / suor de alambique / sumo de cana / purona / quebra-jejum / teimosa / tome-juízo / girgolina / friinha / jinjibirra / otim-fim-fim / retrós / ximbica / delas frias

E os caras que não querem que saibam o que estão bebendo? Na minha terra, um rapaz que bebia todas, sempre que queria tomar uma dizia que ia comprar fósforo, só que a nossa pronúncia caipira ali era “fósqui”. Ele entrava na venda ao lado e pedia um “fósqui”, e era servido meio escondido.

Parati, birita, caninha…

Isso faz lembrar a história de alguns nomes que lhe deram. No Rio de Janeiro, até as primeiras décadas do século XX, a cidade era abastecida com cachaça produzida em Parati, e a palavra parati virou sinônimo da distinta. Basta lembrar o samba de Assis Valente: “Em vez de tomar chá com torradas, ele tomou parati”. Hoje em dia, Parati produz muita cachaça de novo, e há alambiques que, dizem, funcionam desde o século XIX. Pode ser, mas com certeza eles pararam um tempo de produzir, ou pelo menos de produzir para vender, pois na primeira vez que fui a Parati, quando ainda não existia a rodovia Rio-Santos e o único jeito de chegar lá por terra era uma estrada precária que parecia mais uma trilha perigosa, que descia a Serra do Mar a partir de Cunha, só encontrei nos botecos de lá duas marcas de pinga: a Labareda e a Quero Essa. Isso foi lá por 1969 ou 1970. Claro que com a estrada asfaltada, veio o turismo mais forte, bares e restaurantes chiques, e os alambiques devem ter voltado à ativa, ou voltado a produzir comercialmente.

Em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, havia uma das pingas mais famosas da Bahia, a Birita, e birita virou também sinônimo de cachaça. Desse sinônimo, surgiu a variante birinaite.

Napoleão Bonaparte teve algo a ver com a produção de cachaça aqui também. Não acredita? Quando a família imperial portuguesa veio para cá, fugindo de Napoleão, a vingança de Dom João VI foi ocupar a Guiana Francesa. Mais tarde, teve que desocupar, mas trouxeram de lá uma variedade de cana muito boa para a produção de cachaça, e ela tinha o nome da capital daquela Guiana, Caiena. Aqui, o nome mudou para caiana, variedade que se tornou uma das preferidas dos alambiqueiros.

Outra variedade muito apreciada pelos produtores era a caninha, uma cana fininha e pequena, mas com alto teor de açúcar, o que dava uma ótima cachaça. Mas ela era hospedeira de uma doença que nela não fazia mal, mas passava para outras variedades e nessas era muito prejudicial. Getúlio Vargas era o ditador na época e mandou exterminar a caninha para evitar a doença nos canaviais, só sobraram algumas plantações clandestinas dela. Mas sobrou o nome caninha… Em Monte Alegre do Sul, estado de São Paulo, há muitos anos, descobri um alambique que produzia cachaça com caninha, mas ela custava bem mais caro que as demais.

Bêbado como?

“Cachaceiro é quem produz a cachaça, eu sou consumidor”, ouvi quando criança um dos maiores consumidores dela.

Há muitas expressões divertidas para falar de quem bebeu demais. Uma delas é dizer que o cara está cercando frango. Quem já pegou frango na horta sabe aquele andar cambaleante, fazendo que vai pra um lado e indo pro outro, justifica a expressão.

Outra é que o fulano está bêbado que nem gambá. Na roça, os gambás costumavam atacar os galinheiros para comer ovos, e um jeito que os roceiros usavam para pegar o bicho era colocar ao lado de um ninho de galinha um prato com pinga. Dizem que o gambá gosta muito da marvada, e bebe até cair. Então, de manhã, o sujeito vai lá e encontra o animal ainda bêbado, dormindo. Aí… pau nele! Não eram nada ecológicos esses roceiros!

Outras expressões sobre bêbados: está com a cachorra cheia; bebaço, avinhado, encarraspanado (ou, dizem, “tomou uma carraspana”), envernizado, borracho (este herdamos dos países de língua espanhola).

Para quem costuma beber rotineiramente, todos os dias, a palavra mais comum é boêmio, mas conforme o caso usa-se as expressões, pé-de-cana, bebum, funil, biriteiro, beberrão, caixa-d’água, irmão da opa, mamarrote, pinguço, borrachão, troviscado, ébrio…

Barão de Itararé e a cachaça

O glorioso Barão tem muitas histórias boas sobre bebidas. Aí vai apenas uma amostra:

Teatro sintético

1º ato
(No balcão da confeitaria)

– Vira uma pinga com limão!

2º ato
(Entra um amigo e fala)

– Você não deve beber pinga com limão. É veneno!

3º ato
(O primeiro personagem responde)

– Suspenda o limão!

(Pano de boca, depressa)

Ditos sobre cachaça e afins

Listo primeiro, uns poucos ditados populares entre os muitos que existem. Em seguida frases de alguns pensadores:

Ditados

Cachaça pode mais do que Deus: ele dá juízo, ela tira.

* * *

Quem não bebe, cheira o copo.

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Bebe só duas qualidades de bebidas: nacionais e estrangeiras.

* * *

Deixou de beber: está comendo com farinha.

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Cachaceiro não tem segredo.

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Mulher, cachaça e bolacha em toda parte se acha.

* * *

In vino, veritas.

Assim falaram dela

Dorintho Morato (de Nova Resende): “Pergunte a qualquer roceiro aí sobre esses matinhos. Eles sabem que um serve pro coração, outro pro pulmão, outro pro estômago, outro pra dor de não sei do quê… Italiano não sabe nada disso, e não é porque seja mais bobo, e sim mais esperto: toma vinho, que serve pra tudo, não precisa de tomar chá de matinho”.

* * *

Tiago (morador do Jardim Nordeste, em São Paulo, quando tinha 5 anos de idade): “Lá em casa a gente só bebe pinga, mas tem que ser da ruim mesmo. Se for pinga boa, a gente põe limão pra ficar ruim”.

* * *

Monteiro Lobato: “Literatura é cachaça. Vicia. A gente começa com um cálice e acaba pau d’água na cadeia”.

* * *

Raymond Chandler: “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo e o terceiro é rotina. Depois dele, você tira as roupas da moça”.

* * *

Sabino de Campos: “A cachaça, quando não dá certo por dentro, dá por fora”.

* * *

Ernest Hemingway: “Um homem inteligente às vezes é forçado a ficar bêbado para gastar um tempo com suas bobagens”.

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Nabuco de Araújo: “O bêbado é o voluntário da loucura”.

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Josué de Castro: “Todo mundo faz hinos ao vinho, mas ninguém se lembra de fazer um hino ao leite”.

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Omar Khayam: “Ouço dizer que os amantes do vinho serão castigados no inferno. Se os que amam o vinho e o amor vão para o inferno, o paraíso deve estar vazio”.

* * *

Groucho Marx: “Eu bebo para fazer as outras pessoas interessantes”.

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Eu: “Tem baixinho que bebe só pra ficar alto”.

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Eu, de novo: “Há quem pense que círculo vicioso é cu de bêbado”.

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Eu, mais uma vez: “Músico clássico bêbado só toca Bach, Chopin e Brahms”.

E para terminar…

Um causo que publiquei no livro Santa Rita Velha Safada.

ROSÁRIO

Rosário, poeta analfabeto de pai e mãe, mas de memória de deixar elefante morrendo de inveja, era o cronista do povoado. Tudo o que acontecia ali, era relatado com riqueza de detalhes, em rimas cheias de insinuações.

Ficava o dia inteiro sentado à sombra de uma casa ou de uma árvores, encostado, com ar de bêbado. Poesia para ele se chamava “décima”.

— Ô, Rosário, fala uma décima pra mim.

— Então paga uma pinga.

— Pagavam, ele bebia, fazia um ar feliz e perguntava:

— Qualé o assunto que ocê qué?

Se ele tinha uma décima pronta sobre o assunto escolhido, declamava com voz pastosa; se não tinha, inventava na hora e falava — também com voz pastosa.

Um dia ele amanheceu particularmente irritado. Ficou sentado na porta de uma loja e não queria falar nada.

— Rosário, fala uma décima aí.

— Não, hoje não.

— Eu pago uma pinga.

— Não.

Para um fazendeiro que insistiu muito, ele acabou fazendo uma concessão. Rimando, começou a descreve Santa Rita Velha, com ironia, vendo o lado defeituoso de cada coisa, depois olhou para o fazendeiro e continuou:

Lá vem o caboclo da roça,
calçado de sapatão,
de relógio no pulso
e num sabe quantas horas são.

Foi daí pra pior, humilhando o fazendeiro até que ele foi-se embora. Mas, já que tinha começado a falar, continuou — rimando — a dirigir versos a todos os que passavam. Zé Passarinho, por exemplo mereceu esses versos:

Eu queria encontra
com esse tal de Zé Passarinho,
pra metê o pé nos ovos
e botá fogo no ninho.

Joaquim Bento, um negro que tinha a mão branca devido à doença chamada vitiligo, entrou alegre na loja, para fazer compras pro seu casório, esbarrou no Rosário e, em vez de pedir desculpa, resmungou alguma coisa qualquer. Rosário não deixou barato:

Fui chamado pruma festa,
casamento dum papudo.
Ele chama Joaquim Besta,
mão pelada e pé cascudo.

Ele é cambaio das perna,
é caolho e beiçudo,
tem o nariz esparramado
pro meio da cara tudo.

Ele gosta da prumaça,
lenço branco no pescoço,
cacunda de boi zebu,
barriga de sete almoço.

Levou uns tapas, antes que a turma do deixa disso segurasse o Joaquim Bento, mas mesmo assim continuou no mesmo estilo o dia todo. De tardezinha, num bar, um cigano começou a tentar fazer um desafio com ele. Falou um monte de versos provocativos e o Rosário nem ligava. Tanto encheu que o Rosário resolveu responder, falando da “nação” cigana:

Ô nação disgramada,
ô nação dissoluta,
os homens são breganhista
e as muié são tudo puta.

Não deu pra continuar. Levou mais uns tapas, antes que a turma do deixa disso interviesse novamente, segurando o cigano.

* * *

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

1 comentário em Cultura inútil: Algumas considerações sobre a cachaça

  1. humilde contribuição aos ditos: nunca ouvi nenhuma boa história que comece com “ontem, eu e meus amigos tomamos uma jarra de leite…”

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