O reino da cozinha: o cordeiro pascal
Por Flávio Aguiar.
Meus pais tinham uma casa na praia. Praia de rio, do outro lado do Guaíba, no alto de um morro onde não havia estrada. O morro não era muito íngreme, de modo que chegar lá a pé era fácil, apesar das bagagens que a gente tinha de levar.
A casa era pequena, o terreno era grande, pelo menos para o meu tamanho na infância. Tinha desníveis atraentes, além de outros atrativos, como os lagartos enormes e cinzentos que vinham cercar a cozinha. Tinham fama de cães de guarda: matavam cobras com o rabo. E havia cobras, além de escorpiões e aranhas. Lembro de uma caranguejeira enorme que vivia na cisterna, sob a casa. Dediquei-lhe um poema:
A UMA CARANGUEJEIRA QUE VI CERTA
VEZ NO INTERIOR DE UMA CISTERNA
Lustroso coração da noite,
Suspensa no facho da lanterna:
No bojo deste ventre aquoso
Arfas o peludo corpo em guarda.
Logo deslizas a severa confusão das patas
Para gozo de nosso maravilhado nojo.
Admiro tal pose de rainha,
O florido gesto, mesmo na liquidez do fim.
Se te flecha a rapidez da vespa
Ou se a vassoura o teu passo corta,
Guardas o recato, ao corpo recolhendo as patas.
Deixas a vida como quem se fecha em copas
Íamos para lá no verão, depois do Natal. E voltávamos depois do Carnaval, em fevereiro. Era o reino da liberdade: eu tirava meus sapatos na chegada e só os punha no dia da volta, quando eu regressava a Porto Alegre com a pele queimada pelo sol, o que mais tarde me valeu o apelido de “Negrão”.
De resto, os dias eram ocupados pelas idas à praia, de manhã e de tarde. De manhã a maré estava baixa, as águas do rio pareciam um espelho. À tarde a maré enchia, havia vento e ondas mais ou menos grandes. E havia tempo para passear de bicicleta, jogar futebol, dormir à noite ouvindo o farfalho, às vezes violento, do vento nas árvores nos matos ao redor, sobretudo na enorme figueira que havia nos fundos da casa, coisa de 150 anos ou mais.
Também ali comecei a tomar contato com o mundo agreste da campanha gaúcha. Não longe da praia havia um matadouro. As boiadas chegavam do interior, conduzidas a toque de aguilhão, laço e cavalo. E depois os gauchões de chapéu de aba larga, pele mais queimada do que a minha, lenços vermelhos ou brancos no pescoço, vinham passear seus cavalos, dar-lhes de beber, na praia onde tomávamos banho. Eram imponentes para meu tamanho de piá, lembravam mesmo as antigas imagens dos “monarcas dos pampas”.
Raramente íamos para lá depois do verão. As viagens eram demoradas, havia que atravessar o rio com barcas que tinham sido compradas aos americanos depois da Segunda Guerra, tomar ônibus dos dois lados do rio, e além disto a partir de abril o tempo ficava frio demais. Assim mesmo, a Páscoa era uma espécie de última fronteira, se ela fosse cedo: ainda era possível ir para lá se ela acontecesse no fim de março.
Pois foi numa destas Páscoas precoces no ano que tomei conhecimentos de uma das primeiras independências que os homens podiam se dar, naquele mundo ainda beato e cheio de orações. Tínhamos um vizinho, o seu Oscar, um homem forte, grisalho, gritão mas boa gente, que vinha só para a casa ao lado. Era solteiro ou viúvo, hoje não sei mais. Pescava peixes no rio, que trazia num latão de querosene e os assava num braseiro improvisado.
Pois numa daquelas páscoas o seu Oscar veio até a nossa casa, e pediu à minha vó (que era, como já contei em outra crônica, a rainha-imperatriz da cozinha) que lhe fritasse uma linguiça, porque ele estava a fim de comer uma. Era de tardinha. Minha vó se escandalizou:
– Mas seu Oscar, hoje é Sexta-Feira Santa. Não pode comer carne.
O olhar de seu Oscar parou no ar. Acho que ele não tinha pensado no problema. Seria ateu? Agnóstico? Maçom? Comunista? Judeu ele não era…
Não sei. Mas sua resposta foi cristã.
– Dona Henriqueta [este era o nome de minha vó], certa vez perguntei ao padre: o pecado entra ou sai pela boca? O padre me respondeu: o pecado sai pela boca. A linguiça entra, portanto não pode ser pecado.
Minha vó era muito religiosa, mas muito prática e decidida. Convenceu-se do argumento, e pediu à Maria, que era a empregada, que fritasse a tal linguiça, com que o seu Oscar se refestelou, com farinha de mandioca e uns copos de vinho tinto que ele trouxera.
Aprendi a lição. Décadas depois, numa época iconoclasta que atravessei, eu fazia religiosamente um cordeiro pascal. Preparava-o com dias de antecedência, punha em vinha d´alhos e tudo. Mas comia na Sexta-Feira Santa, ao invés do bacalhau. E achava que assim eu estava tirando os meus pecados do mundo, vingando-me das minhas carolices dos tempos de guri.
Hoje não faço mais isto. Reservo meu cordeiro para o domingo e na sexta prefiro o bacalhau de sempre.
Mas guardo minha admiração pelo seu Oscar, que considero, em suas grisalhices e seus rompantes, tão guapo como aqueles gauchões que chegavam com seus cavalos à praia de minha infância, trazendo sopros de uma mítica liberdade inesquecível.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Feliz Páscoa!
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