Feliz dia da viradora emergente

15 03 08 Ludmila Abílio Dia da viradora emergente[Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio.]

Por Ludmila Abílio.

Quando Jurema escutou os tiros no escadão, quase desmaiou. Não precisava ver para saber que sua intuição de mãe não havia falhado. Ela era faxineira; trabalhou anos para a mesma empresa, que resolveu aderir ao cooperativismo. De funcionária passou a cooperativada, terceirizada, subcontratada. Durante toda aquela última jornada de trabalho outrora formal, a trabalhadora de 40 anos sentiu o frio na barriga que em realidade sempre acompanha as mães das periferias. Com o assassinato de seu filho de 20 anos, Jurema quase morreu de depressão, largou o emprego; mas sobreviveu, cuidou de si e do marido alcoólatra.

Após o falecimento do companheiro, seguiu, vivendo de bicos que nem ela mesma conseguia elencar; o principal foi o que lhe proporcionou sua moradia: cuidava de um casal de idosos que viviam num casebre e, quando ambos morreram, por lá ficou. Foi assim que, no inicio dos anos 2000, Jurema ingressou nos cadastros dos programas sociais: tornou-se beneficiária do programa “Começar de novo” da gestão petista da prefeitura de São Paulo. O recomeço oferecido pelo Estado envolvia a participação obrigatória em um programa de geração de renda voltado para a formação de cooperativas. Então Jurema adentraria uma rede que envolvia ONGs, incubadoras de cooperativas, poder público e financiamentos internacionais. Conheceu Marileide, mulher vinda da Bahia. Jurema veio do Ceará – o que para ela explicaria o jeito arretado com que peitou o corretor imobiliário que queria colocar o barracão a venda – “avisa aí que quem comprar vai levar junto uma mulher com dois filhos”.

Com auxilio dos capacitadores do programa, as duas montaram uma cooperativa de arranjos artesanais. A iniciativa não durou muito: no final, os arranjos se tornaram lembrancinhas para os mais chegados. Marileide voltou ao papel de dona de casa. Jurema partiu para a próxima tentativa: entrou numa cooperativa de marmitex, formada por evangélicos determinados a perseverar. Perseveraram; no jargão da cidadania, diríamos que o empreendimento se consolidou, ela se tornou cozinheira de marmitex. A renda era escassa, dividir os ganhos em seis não dava muita coisa. Mas como me resumiu um dos integrantes (ex-trabalhador da construção civil, vendedor de algodão doce, ex-cozinheiro do centro empresarial de Santo Amaro), “não estamos aqui pelo dinheiro, mas pelo trabalho”. Ter local de trabalho definido, reconhecimento do estatuto de trabalhador, uniforme e horário de trabalho pode valer mais do que o próprio salário no universo da viração. Passados quinze anos petistas, hoje Jurema e Marinalva têm um novo estatuto. Tornaram-se mulheres da classe média – não qualquer classe média, a nova classe média brasileira.

Empregadas domésticas, peões da construção civil, cortadores de cana… classe média? Somos vanguarda neste novo fenômeno mundial. Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), entre 1990 e 2010, a participação dos países do Sul na composição da classe média mundial cresceu de 26% para 58%. Entretanto, para o PNUD, a classe média inclui os que auferem ou despendem entre 10 e 100 dólares por dia.1 No Brasil, a nova classe média, segundo critérios do governo federal de 2012, é definida pela renda familiar per capita entre R$291 e R$1091.2 Mulheres como Jurema, se ganharem com seus bicos mais do que meio salário mínimo, forem portadoras de cartões de crédito com limites duas vezes maiores que sua renda e compuserem os cadastros dos programas sociais, já podem se considerar parte dessa classe, definida a cada ano sobre as disputas dos centavos que determinarão as linhas de pobreza e os índices dos progressos sociais.

Hoje as mulheres estão na linha de frente do dito desenvolvimento social brasileiro, ou, no bom jargão, são seu principal ‘público-alvo’. “As mulheres canalizam melhor os benefícios dos programas sociais” disse em 2010 o presidente Lula na Conferência Regional sobre a mulher da América Latina e do Caribe.3  “As mulheres são mais escolarizadas que os homens da mesma classe, chefiam mais famílias que as mulheres de elite, contribuem mais para a renda familiar do que as mulheres no topo da pirâmide, administram o orçamento doméstico e decidem a maior parte dos gastos e compras da família”, sintetiza a apresentação do Data Popular, instituto de pesquisa voltado para o novo filão de ouro do mercado consumidor.4 Mas nem só de cartões de crédito e benefícios vivem as mulheres da ‘nova classe média’. A ralação permanece a mesma, se é que não se intensificou. Quanto a isso sabemos muito pouco. Celebramos o crescimento das taxas de trabalho formal, a redução do desemprego, o aumento real do salário mínimo. A questão da extensão do tempo de trabalho e de sua intensificação está ao mesmo tempo evidente – de baixo ao alto sentimos todos na pele – e nebulosa: a crítica bambeia em suas formas, referências e potencialidades políticas frente às transformações do trabalho e da acumulação.

Mas não se trata apenas dos desafios da reestruturação produtiva; trata-se do intricado lugar que o trabalho informal e antigas ocupações desde sempre precárias ocupam no pensamento brasileiro. Enquanto o sonho da consolidação da produtividade do proletariado alemão não se realiza por aqui, nos debatemos com a invisibilidade social e o lugar que a “ralé”5, o “subproletariado”6, o “precariado”7 ocupam na modernização e acumulação brasileiras. Recorrentemente postos pela própria esquerda às margens do progresso, são classificados como os trabalhadores e trabalhadoras serviçais, das ocupações extremamente precárias, os que têm apenas sua energia muscular a vender, são os trabalhadores improdutivos que não integram os circuitos globais da produção. Vivem nos nebulosos “confins” do Brasil. Em um perigoso encontro entre biopolítica, inovação tecnológica e irrelevância do trabalho informal e de baixa qualificação, são facilmente reconhecidos como os descartáveis, desimportantes para a acumulação, reduzidos a objetos da nova gestão do social. Entretanto, nesta década ganharam novos estatutos: como eleitores que garantem o pacto lulista e como os novos consumidores que garantem a expansão do mercado consumidor interno e o sucesso da economia brasileira. Enquanto isso, operários da construção civil dão o sangue e despencam dos estádios dos megaeventos, morrem na ampliação das estradas do desenvolvimento, caem dos espigões da cidade global. Cortadores de cana morrem de exaustão enquanto garantem a produção do etanol. Trabalhadoras e trabalhadores perdem o braço nos frigoríficos das gigantes brasileiras. Operadoras de telemarketing hoje materializam o novo operariado, com suas doenças que vão da depressão à cistite. Dar – literalmente – a vida pelo trabalho é parte de sua sobrevivência.

Os serviçais também se modernizaram: vigilantes, manicures, faxineiras, cuidadoras, motoboys, entre tantas outras ocupações, hoje têm seu trabalho subsumido em empresas terceirizadas extremamente eficientes em gerenciar-lhes a produtividade e se apropriar de seu tempo de trabalho não pago, tais como as ‘furasóio express’, como bem me resume um trabalhador de motofrete. Beneficiárias costureiras de fundo de quintal pregam os botões das empresas transnacionais, integrando o mercado da cidadania e das cadeias produtivas globais ao mesmo tempo. Na casa delas tudo se cruza e se funde em um novo desenho da questão/gestão social, que é também um desenho atualizado da centralidade do trabalho socialmente invisível para a modernidade brasileira.

Mas, em se tratando de mulheres e modernização, também podemos podemos ir além da ‘nova classe média’, para ver como as formas contemporâneas de exploração do trabalho têm em seu cerne uma atualização das antigas e permanentes características do trabalho feminino. Dentre as ocupações tipicamente femininas, hoje o Brasil conta com 4,5 milhões de revendedoras – a maioria são mulheres – pelo sistema de vendas diretas. Esse setor movimenta hoje mais de R$40 bilhões.8 Uma das empresas-símbolo do desenvolvimento nacional tem hoje com um milhão de revendedoras. As ‘consultoras’ são responsáveis pela venda e distribuição dos produtos por todo o território nacional; conciliam suas ocupações em postos formais com a venda dos produtos, desempenham seu papel de donas de casa, vendendo sem “sair para trabalhar”. Outras vendem para as patroas, outras fazem desta sua ocupação principal.  Analisando de perto, esse trabalho sem forma-trabalho, tem tamanha flexibilidade que se combina e se entrelaça com as mais diversas ocupações e situações sociais. Concretamente e de modo incalculável, realiza-se como extensão do tempo de trabalho e preenche os poros de não-trabalho nas jornadas de secretárias, professoras, recepcionistas, enfermeiras, entre muitas outras profissionais. Também se realiza como transferência de riscos da comercialização e de estocagem dos produtos. Um trabalho espraiado e disperso – realizado por um milhão de pessoas – muito bem amarrado para o lado de dentro da fábrica e de sua produção. Uma consultora de RH me resume o imbróglio, “a consultora Natura é o que há de ultramoderno no mercado”. Indistinção entre tempo de trabalho e de não-trabalho, polivalência precária, ausência de direitos, indefinições sobre o que é e o que não é trabalho são características que fundam o trabalho em domicilio, o trabalho doméstico e o emprego doméstico – ou seja, indistinções que permeiam o trabalho e a vida das mulheres. São estas características que hoje se generalizam pelas relações de trabalho. Some-se a elas transferências de riscos e custos para o trabalhador e está definida a espinha dorsal da flexibilização do trabalho.

No caso das revendedoras, a empresa é extremamente bem sucedida em combinar as características do trabalho feminino com empreendedorismo e expansão do mercado consumidor. A Natura é um ‘exemplo de brasilidade’, me afirma a revendedora da elite paulistana, que hoje integra o seleto setor Crystal, o qual garante a distinção entre mulheres de classe alta e revendedoras da ‘nova classe média’. Sua definição cai como uma luva para a empresa que hoje se alimenta ao mesmo tempo da viração feminina generalizada e do crescimento exponencial do setor de higiene e cosméticos, fomentado pelas consumidoras da classe C, que se tornam então também revendedoras, mostrando que nem só de consumo vive o mercado brasileiro.

Saindo do trabalho que não é reconhecido como trabalho e voltando à invisibilidade social das viradoras brasileiras, confirmando o destino das mulheres da periferia, Débora Maria da Silva também teve seu filho assassinado. Edson Rogério Silva dos Santos era gari – outra profissão-símbolo da invisibilidade social, como demonstrou a pesquisa de mestrado de Fernando Braga da Costa,9 até que formaram um exército negro vestido de laranja que explicitou não só o fedor da exploração no Rio de Janeiro, mas também que a “ralé” faz política. Juntamente com mais de 600 pessoas, Edson foi vítima da matança promovida por grupos de extermínio e agentes do Estado naquele tenebroso mês de maio de 2006. Débora, juntamente com outras mães, politizou a dor do encontro entre exploração e extermínio dos debaixo, fundando o movimento das Mães de Maio. Atualmente a Comissão da Verdade Estadual Marcelo Rubens Paiva está sendo transformada em Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio”. A memória dos Edsons, regra e exceção, se encontram finalmente. O estribilho “quem é essa mulher” teria de ser agora atualizado nas linhas de um rap que nos evidenciasse a luta permanente – e sua força também política – das mulheres que carregam nas costas o país do futuro sem futuro.

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NOTAS

1 PNUD. Relatório do desenvolvimento humano 2013. A ascensão do Sul: Progresso humano num mundo diversificado. PNUD, 2013.
2 “Perguntas e respostas sobre a definição da classe média“. Site SAE. Acesso em 03.03.2015.
3 “Mulheres canalizam melhor os benefícios dos programas sociais“. Site da CEPAL.
4 Data Popular, Apresentação “Brasil Emergente: valores, visão de mundo e perspectiva de consumo“.
5 SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
6 SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia das Letras, 2012.
7 BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.
8 “Vendas Diretas ultrapassam R$ 40 bilhões em volume de negócios em 2013“. Site ABEVD. Acesso em 04.03.2015
9 COSTA, F. Garis: um estudo de psicologia sobre a invisibilidade pública. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, USP, São Paulo, 2002.


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Ludmilla Costhek Abílio é Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Possui graduação em Ciências Sociais pela FFLCH-USP (2001) e mestrado em Sociologia pela mesma instituição (2005). Atualmente faz seu Pós-doutorado na FEA-USP sobre a constituição da chamada nova classe média brasileira. É autora do premiado Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos (Boitempo, 2014).

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