Fundamentalismo narcísico
[Michael Keaton, em fotograma do filme Birdman, ou, a inesperada virtude da ignorância (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu.]
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
1. RESUMO DA ÓPERA
O artigo que Slavoj Žižek publicou aqui no Blog da Boitempo, pensando, em ato, o atentado contra o semanário Charlie Hebdo, começa suspendendo nossa recepção espontânea, que procura culpados e vítimas segundo geografias pré-estabelecidas. Apoiando-se em Nietzsche e Yeats ele imputa parte das razões do atentado a uma espécie de crise de nossas crenças, no contexto de um colapso regressivo das nossas teorias da transformação. Ao aventar a possibilidade de que os próprios terroristas desconfiem dos princípios que pregam, e que isso poderia ter os levado a confirmar sua crença em ato, como uma prova de fé, ele retoma uma perspectiva que é absolutamente liberal.
Retomando um de seus temas mais importantes – a crença – Žižek nos remete ao problema das comunidades autênticas, ao retorno de valores esquecidos e ao poder construtivo da indignação com o mundo que nos é oferecido. Seu argumento sugere que o fundamentalismo islâmico é um caso particular do fundamentalismo em geral e por isso não deve ser apreciado pelo seu conteúdo, como se a cultura islâmica devesse ser chamada ao tribunal. O ponto de Žižek é que esta é uma resposta muito pobre e pouco elaborada para este estado de crise permanente com relação a nossas próprias crenças. Certo, isso é um traço de nossa disposição ética na modernidade desde a noção cartesiana de moral provisória. Contudo, isso não explica porque só depois da queda do muro de Berlin, da intervenção irrestrita em regiões resistentes a este modelo civilizacional e da implantação inquestionada das políticas neoliberais que um novo tipo de terrorismo se alastrou.
A hipótese de Žižek não tem nada que ver com a repetição de um mantra marxista ou revolucionário. Ele afirma que o fundamentalismo é uma resposta exagerada, em meio a um cenário composto pela ausência de alternativas, sentidas como efetivamente reais, para a transformação de um determinado estado de coisas. A hipótese que não foi efetivamente discutida por seus críticos é de que os terroristas sentem-se inferiores e não superiores quando se trata dos valores que defendem. Esta indeterminação quanto ao que realmente acreditamos, não é oriental ou ocidental, mas um sintoma típico do excesso de crença que nos é exigido quando temos que engolir este mundo como o melhor dos mundos possíveis. Daí a ligação entre a ascensão do fundamentalismo islâmico e o declínio da esquerda no oriente:
“O fundamentalismo é uma reação – uma reação falsa, mistificadora, é claro – contra uma falha real do liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado à própria sorte, o liberalismo lentamente minará a si próprio – a única coisa que pode salvar seus valores originais é uma esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda fraterna da esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sob seus pés.” (Slavoj Žižek, “Pensar o atentado ao Charlie Hebdo”)
O texto de Žižek foi republicado pela Folha com resposta de João Pereira Coutinho, intitulada “Não é o ocidente que deve mudar, mas o Islã” e que declarava, em síntese, que
- o Islã precisa passar por uma reforma que desvincule vida comum e religião, modernizando-se e iluminando-se como nós;
- Žižek alinha-se com ideias de Hitler, Lenin e Carl Schmitt sendo ele mesmo um fundamentalista de esquerda, (“que deveria estar na cadeia”, como ele diz em outro artigo);
- Žižek engana-se porque desconhece os pormenores das formas religiosas islâmicas confundindo assim jihadismo, fundamentalismo e radicalismo.
É realmente incrível como críticos especializados, que ganham a vida com isso, sejam incapazes de ler: a única forma de salvar os valores originais do liberalismo é reconhecer que a nova esquerda tem alguma contribuição a dar em matéria de formação de convicções. Não se trata do comunismo, nem do socialismo, mas da importância da esquerda radical para o próprio liberalismo.
Para surpresa geral o texto de João Coutinho é ecoado por gente esclarecida como Contardo Calligaris (“O que me ofende“, Folha de S.Paulo), para quem nossa modernidade se funda na ausência de fundamentos. Mas premido pelo contra-fundamentalismo de ocasião, a tese de Žižek se transforma na ideia de que nossa fraqueza (a crise de convicções) é nossa força, de tal forma que não seria preciso “injetar um novo fundamentalismo no Ocidente”. Como se fosse isso mesmo que Žižek está a pregar. Como se o individualismo não fosse um dos fundamentos da modernidade. Como se só os de esquerda procurassem fundamentos, enquanto os de direita flutuam no ar. Também Paulo Ghirardelli (“Sobre o Islamismo: nem Žižek e nem Coutinho, mas redescrição rortiana“), apesar de mais ponderado, comprou esta versão neutralizante do texto. Tudo não passa de uma repetição de um estigma do que a esquerda (e Žižek em particular) diria em qualquer situação. Espero ter mostrado que isso se aplica ao espírito carniceiro de João Coutinho, mas não a Žižek, que raras vezes defende o retorno aos valores originais do liberalismo.
Ou seja, Žižek foi transformado no inimigo interno. Ele mesmo é o fundamentalista defensor de crenças perigosas. O fato de que Charlie Hebdo é uma publicação de esquerda foi esquecido. O fato de que seus quadrinhos davam sobrevida a um tipo de humor descendente de Maio de 1968, foi tornado irrelevante. A grande marcha triunfal que descreve a evolução de nossas crenças, que vão do animismo às religiões patriarcais, terminando na ciência e passando pelo liberalismo político e principalmente econômico, fica incólume. O atentado não coloca em questão nada do que estejamos realmente fazendo. Ele é apenas um fenômeno residual, externo à nossa própria forma de vida e ao nosso consequente regime de crenças. Uma forma que será saneada com o progresso da consciência e com a expansão do espírito de liberdade assim constituído. Até então devemos resignadamente acolher os efeitos colaterais da modernidade neoliberal.
A tese de que o fundamentalismo é uma solução simplória para um tipo específico de narcisismo talvez seja banal, mas é ela que deve ser discutida, não se as nossas crianças universitárias estão em perigo nas mãos do esloveno. O narcisismo, assim como o capitalismo, tem uma história que se transforma em relação direta com a gramática de nossas crenças. Incrível que nada disso tenha sido tocado, ou sequer reconhecido, pelos críticos de Žižek. Parece que o ódio prevenido contra o seu “fundamentalismo” os obriga a retratá-lo vomitando Marx, Lenin e Stalin, mesmo que o que ele esteja realmente fazendo seja sussurrar Nietzsche, Yeats, e talvez também Freud ou Lacan.
2. BIRDMAN
O debate em torno do Charlie Hebdo transformou-se assim em uma oposição inútil – esta sim repetitiva – entre os que defendem crenças envelhecidas, baseadas em valores comunistas (Cuba Khmer Vermelho, PT, corrupção, tudo isso junto e misturado com militância religiosa e política…), e aqueles que não precisam mais acreditar em nada porque já superaram este estágio primitivo de permanência no mundo. Em vez de insistir na inanidade desta falsa divisão, gostaria de mostrar como certos atos perturbadores, incompreensíveis e violentos podem emergir bem no centro de nossa forma de vida “correta”, ainda que advoguemos que não há nada de errado com ela.
O problema não está numa disputa entre valores mais arcaicos ou mais modernos, que nos faria ler os ataques terroristas como uma espécie de crise de crescimento. Os terroristas não vieram dos confins rurais do Afeganistão. Eles são pessoas nascidas e criadas na França, são imigrantes na Inglaterra, como poderiam ser adolescentes insatisfeitos em um colégio americano. Pessoas cuja insatisfação tornou-se tão sistemicamente impossível de ser acolhida e nomeada, que lhes resta o suicídio como mensagem. É esta divisão que o neoliberalismo não consegue pensar porque é ele mesmo que a produz.
Aquilo que Žižek chama de “reação falsa e mistificadora” ligada à “falha real do liberalismo” pode ser pensada também com o filme Birdman, ou, A inesperada virtude da ignorância (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu. O filme aborda uma espécie de tragédia que se dissemina e se aprofunda nas relações quando estas estão expostas a expectativas de reconhecimento totalmente fora da potência de auto-realização dos envolvidos. Ela não tem a ver com os valores envolvidos, girem eles em torno da família, do trabalho ou do amor, mas com a superestimação da crença e do modo como se realizam. Não tem a ver com a natureza das regras, sejam elas modernas, pré-modernas ou pós-modernas, mas com o sentimento de injustiça e de que não é possível sua transformação prática. Finalmente, não tem a ver com fundamentalismo ou radicalismo, com a pureza ou podridão de princípios gerais, mas com o nível de implicação e consequência que alguém coloca naquilo que faz.
Riggan Thomson (Mikael Keaton) é o protagonista de uma peça de teatro, cujo roteiro ele mesmo adaptou a partir de uma história de Raymond Carver, e que está prestes a estrear na Broadway. A peça é sua desesperada tentativa de voltar a fazer sucesso desligando-se do papel que lhe trouxera fama e fortuna, mas que agora torna-se um pesadelo que ele arrasta dentro de si. Birdman, o super-herói que ele interpretava no cinema, sobrevive como voz e sombra a puxá-lo para o passado, incitando seu lugar especial junto ao público. Sua tentação narcísica oscila entre provar que ele é mesmo super-poderoso, por trás da máscara, e as dificuldades em se fazer reconhecer por um sistema que ele não entende mais como funciona.
Assim como antes falávamos de um choque de civilizações, podemos dizer que o filme trata de um choque narcísico entre gerações.
No primeiro andar está o velho e decadente Riggan e sua problemática identificação com um personagem, que é também a síntese de tudo o que ele não é mais. Sua crise narcísica é vivida como solidão e esvaziamento. Falta crônica de amor. Como não ver aqui uma alusão a Ronald Reagan, que nos anos 1980 sai das telas para a presidência implantando, junto com Tatcher, a religião neoliberal.
No segundo andar encontramos, Mike Shiner (Edward Norton) com quem ele contracena na peça, que é um ator de meia idade marcado pelo cinismo e pela máxima de que “o real é o próprio palco”. Aqui está uma metonímia dos anos 1990 e sua brilhante (shine) promessa de consumo sem fim, de realização ilimitada e de ganhos infinitos. Ele é capaz de tudo, desde que perceba o olhar da plateia. Sem isso, sente-se impotente. Parece superior mas está obcecado pela inferioridade. Ele pode matar, mas só se perder o olhar do outro.
No terceiro andar está a filha de Riggan, meio debilitada, meio alheia, voltando da reabilitação e tentando achar seu lugar no mundo. Ela sofre na errância e no recuo defensivo com relação a crer, em qualquer coisa. Seu narcisismo digital foi formado em uma geração que cresceu advertida quanto aos poderes da imagem fabricada. Tatuada em seu ombro está uma pena de escrever que se dissolve em inúmeros pássaros que, qual um desenho de Escher, saem voando no desintegrar da pena.
Se nos anos 1980 tudo que é sólido desmancha no ar, e se nos anos 1990 tudo vem do pó ao pó retorna, nos anos 2010, tudo que se escreve evapora como pássaros à deriva. Sequelada pelo falso reconhecimento das gerações anteriores, ela está dividida entre o pai, excessivamente preocupado em ter sido um bom pai e ter fracassado na missão (preocupado com o sucesso aqui também), e o ator coadjuvante, que ela tenta seduzir, apesar dele estar excessivamente preocupado com seu próprio fracasso viril. Dividida entre verdade ou consequência ela pratica o narcisismo do distanciamento, sedento de autenticidade.
Óbvio que os determinantes do descontentamento e da insatisfação são de natureza material, mas o capitalismo não sobrevive sem um espírito. A reação “falsa e mistificadora” de que fala Žižek é o correlato narcísico deste problema. A crise de crenças não é uma crise no quê acreditar (Bíblia ou Corão), mas na própria gramática narcísica e simbólica das crenças. Por isso as palavras de Alain Badiou sobre o episódio do Charlie Hebdo são também como comentário involuntário sobre Birdman:
“Várias identidades falsas, cada uma se considerando superior a outra, fixam ferozmente sua dominação local em pedaços deste mundo unificado. Elas dividem o mesmo mundo real, onde os interesses dos agentes são os mesmos em toda parte: a versão liberal do Ocidente, a versão autoritária e nacionalista da China ou da Rússia de Putin, a versão teocrática dos Emirados, a versão fascista dos grupos armados…” (Alain Badiou, “O vermelho e o tricolor”, Blog da Boitempo)
A ideia de que a vida é um teatro está nos fundamentos da modernidade, de Caldeirón de La Barca a Shakespeare, mesmo que se queira acreditar, como Shiner, que não há fundamento algum, só palco e plateia. Birdman é uma anatomia do narcisismo de nossa época porque o mundo não é só palco e plateia. Ele tem coxias, iluminação, camarins, bastidores e até mesmo a beirada do telhado, na qual meditam os candidatos a anjos caídos; o café da esquina, o teatro da frente, os tipos periféricos da rua, a bilheteria, o público pagante e até mesmo o crítico especializado.
Tudo isso permite que a trama se desenrole absorvendo uma das características formais mais típicas de nosso narcisismo fundamentalista: a passagem das cenas ocorre sem corte. Há aceleração do tempo, transições escalonadas pela imagem, câmera no pescoço do protagonista, mas não há o tão decisivo corte em que uma cena termina e outra começa, ainda que com um diminuto intervalo. A trilha sonora baseada quase que exclusivamente em percussão trabalha na mesma direção, pois não permite inferir modulações de humor, apenas momentos de intensificação e depressão. Ocorre que o relógio da história não marca a mesma hora em todos os seus quadrantes. A solução terrorista, não é somente a do suicídio, nem a agressão ao olhar do outro que não o reconhece, ela é também um apelo errante e à deriva, para criar um lugar em meio a um diálogo sem cortes.
Nos diálogos de Birdman não há campo e contra-campo, a câmera foca um objeto intermediário, geralmente decisivo para a compreensão do encontro. Também os travelings citam Godard, não para apreender a totalidade da situação, mas para mostrar como a ilusão de que com a totalidade mostrada vamos perder o essencial. Se Bird, o filme de Alan Parker (1984), retrata o narcisismo dissociativo de dois egressos do Vietnam (um sem rosto, outro que se acha um pássaro), Birdman (2014) é o retrato de um narcisismo associativo, que vive um estado perene de indeterminação, às vezes calculado, entre público e privado, entre solilóquio e diálogo, entre representação e real, entre ficção e verdade.
Portanto quem acha que os atentados são coisa de quem está querendo voltar para a Idade Média, de que sua mensagem representa um anseio de retorno a valores sólidos, comunitários e estáveis, que falaciosamente a esquerda estaria defendendo, está simplesmente equivocado.
Aqui existe uma diferença entre o atentado contra o Charlie Hebdo e as decapitações e imolações promovidas pelo Estado Islâmico. A nova esquerda defende o corte, a suspensão, a retomada da lógica do conflito. Sem ela não haverá mais lugar para a dissonância que não no ato de violência, na encruzilhada das ilusões. O choque narcísico vivido pelos imigrantes, refugiados, excluídos e pelas demais formas de vida primitivas ou ultrapassadas, nada fica a dever ao heroísmo de nossos próprios ídolos. Eles acham que vão sair voando, e às vezes fazem por onde. Eles se revoltam contra o sistema, ignorando suas transformações. Só que a eles não concedemos a virtude da ignorância. Não vamos dar o Oscar para eles, nem exterminá-los como eles fazem conosco, não vamos fazer nada até que entendamos que eles são intimamente como nós.
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A Boitempo lança este mês o novo livro de Christian Dunker: Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros. A integrar a coleção Estado de Sítio, coordenada por Paulo Arantes, o livro parte de uma psicanálise da vida em condomínios para desenvolver uma aprofundada reflexão interdisciplinar sobre a privatização do espaço público e a inserção da psicanálise no Brasil. Confira a aula dele, no Café filosófico do CPFL Cultura, sobre as transformações no sofrimento psíquico:
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Texto agudo e perspicaz,dessas manifestações abruptas e cheia de ideologia viral.Toda amalgama infernal ,tóxica,devastadora…de seres assombrados com visceral paradoxo que os atormentam…(na encruzilhada das ilusões).
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Belo texto Christian! Não se poderia pensar também que esta onda nativista ( uma busca pelo real da origem) guarda relação com a dívida narcisica que voce aponta?
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