O reino da cozinha: Com a mão na massa
Por Flávio Aguiar.
Na última – e primeira – crônica desta série, “O reino da cozinha”, contei como minha avó exercia a monarquia absoluta naquele reino. Mas havia momentos de exceção. Um deles ocorria de quando em quando, num fim de semana. Preparava-se e comia-se uma macarronada domingueira.
A festa começava no sábado a tarde. Porque naqueles idos não havia tanta massa pronta no supermercado. Aliás, a rigor, nem havia supermercado. O primeiro em Porto Alegre abriu quando eu já era grandote. Me lembro que foi na prefeitura do Brizola, e ele era público, como eram os recentes sacolões em São Paulo antes da privatização de tudo. Chamava-se Cobal, o super – gaúcho gostava de abreviar tudo, até de vez em quando a vida, naquelas revoluções apopléticas de antanho.
As massas eram feitas em casa. Reunia-se uma companhia: amigas, tias, primas, todas mulheres, é claro. E tocava-se a fazer a massa.
Primeiro tinha aquilo maravilhoso de misturar a farinha e os ovos. Eu, que gostava de amassar barro no quintal, adorava meter a mão na maçaroca feita da farinha branca, dos ovos divididos ente a transparente clara e a dourada gema, e ficar amassando aquela mistura entre os dedos. Depois vinha o momento em que as massas informes se reduziam a verdadeiras línguas longas e amarelas de massa pronta ao serem passadas na máquina cheia de bobinas e com uma manivela que – maravilha das maravilhas – era eu quem tocava. E ainda havia um segundo momento – em que as línguas de massas passavam novamente pela máquina, com bobinas trocadas, que as reduziam a fios, que eram os que seriam comidos no almoço do domingo, com o molho de carnes e tomates que, exclamo, minha avó preparava: o cetro voltava as suas mãos. Também aqui eu exercia meus dotes manuais, tocando as manivelas. Terá isto alguma relação com minha preferência no futuro por ser goleiro?
Este foi meu primeiro passo adentro daquele reino da cozinha, aprendendo com minha avó que tão importante quanto exercer o cetro era por vezes saber delegar o poder que ele representava. Uma lição que desenvolvi na minha futura vida de sindicalista.
Mas havia mais.
Naqueles sábados de convívio com as mulheres aprendi a curtir a sua conversa. Porque entre uma massa e outra, uma bobina e mais uma, passavam-se em revista as fofocas e futricas da semana. Era um desfiar – como as massas nas bobinas – de suspeitas, comentários maldosos, confidências traídas, medos, traições aventadas ou realizadas, enfim, um universo muito mais interessante do que as insípidas conversas dos homens sobre futebol, cavalos, carros, ou até política.
Desconfio que as mulheres então achavam que crianças que nem eu eram bobas demais para perceber o significado daquelas frases, como uma que guardei em minhas orelhas hoje tão fatigadas, mas então sempre alertas: “é, ele frequenta uma aqui na rua de cima, mas eu finjo que não sei”. Desconfio que foi aí que começou a se tecer minha veia de escritor. Afinal, seja como for, o que a gente desfia são fofocas sobre a vida alheia ou a própria.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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